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A bolinha vermelha

TEXTO José Cláudio

01 de Agosto de 2013

 'Caranguejo-rei', de Tina Cunha. Ferro, resina, bucha resinada e arames, 190 x 320 cm de circunferência, 2013

'Caranguejo-rei', de Tina Cunha. Ferro, resina, bucha resinada e arames, 190 x 320 cm de circunferência, 2013

Fotos Reprodução

Um dos melhores quadros da exposição do Imip última, no Museu do Estado, foi o de Armando Garrido, um quadrinho de uma mulher, Mulata, pintura fluente, solta e precisa, um momento extraordinário nesse que virou o principal salão da produção da arte de Pernambuco, ao lado do Arte em toda parte, de Olinda.

Que diferença entre o dia de hoje e os salões do Museu do Estado quando comecei em 1952! Naquela época não existia uma única galeria de arte no Recife. Só mesmo um louco ou suicida pensaria em viver de pintura. Aliás, em algum lugar escrevi: “Eu não conhecia ninguém que tivesse vendido ou comprado um quadro”. A única esperança era o salão anual do Museu do Estado que distribuía prêmios de escultura, pintura e desenho, um dinheirinho curto, quem sabe um salário mínimo se fosse hoje, mas era a glória, sair no jornal como premiado. Acho que os prêmios eram aquisitivos porque muitas obras do nosso Atelier Coletivo da S.A.M.R. (Sociedade de Arte Moderna do Recife) desapareceram do acervo do Museu numa cheia, o Capibaribe levou tudo. Algum arqueólogo do futuro encontrará esculturas de Guita Charifker e Wilton de Souza, até um quadrinho meu se não me engano. Mas não havia nenhuma possibilidade de venda. Atualmente, percorrendo as paredes do salão do Imip, no mesmo Museu, e vendo as bolinhas vermelhas, sinal de “vendido”, na plaqueta ao lado dos quadros, me lembrei daqueles tempos em que não podíamos nem ao menos sonhar com aquilo, ou quem sonhasse sonhava em vão, pois não existia bolinha vermelha. Portanto, amigos pintores, escultores e afins, não percais as esperanças, sonhai! Para alguns pintores restava o emprego de professor de desenho em colégio, que serviam de zombaria porque desenho, como música, não botava ninguém no pau, ou desenhar clichê de jornal. Elezier Xavier e Baltazar da Câmara foram professores de colégio. Esporadicamente, os pintores faziam caricatura para jornal ou desenhavam algum rótulo de aguardente. A salvação, para os escultores, era fazer anjinho para cemitério ou trabalhar em marmoraria, abrindo letreiros em placas de mármore. Abelardo trabalhou em marmoraria. Os escultores Edson Figueiredo e, antes dele, Carlos Holanda, ensinaram na Escola Técnica Profissional da Encruzilhada, que tinha também como professor de pintura o pintor Álvaro Amorim, pai do pintor Carlos Amorim. O escultor Bibiano Silva ensinou na Escola de Belas Artes, de que foi um dos fundadores.


Mulata, de Armando Garrido. Óleo sobre papel,
70 x 50 cm, 2008. Imagem: Reprodução

Diferente do que era no prédio do Santander lá dentro do Recife, dividido em três andares, e do Arte em toda parte, de Olinda, espalhado em vários lugares pela cidade, o salão do Imip este ano no Museu do Estado reuniu todos os artistas no mesmo andar, um espaço belíssimo que permitiu a visão geral e a comparação. Eu disse a Garrido: “Você ali se achou”. E, ante a foto no celular: “Toda vez sinto vontade de dar um cheiro nesse peito”. Eu estava até dizendo: “Hoje, tudo que você diz, procuram uma razão menos nobre, uma indignidade por trás. E pra você, Garrido, que é advogado, ainda deve ser pior”. Ele disse: “É. Mas eu procuro sempre não deixar de dizer o que penso”.

Por exemplo. Eu sempre tenho vontade de falar de Tina Cunha. Mas não sei por onde começar. Ela é muito ágil, muito ativa e comunicativa, muito feliz, dessa felicidade que contagia a todos e o seu trabalho é o reflexo dessa sua capacidade da ação imediata diante dos mais improváveis desafios. Tudo para ela serve de, como se dizia antigamente, fonte de inspiração: garrafas de plástico, arames e outras sucatas, como se ela fizesse parte de uma ong de reciclagem e transformasse o feio em bonito, o perdido em achado, o lixo em vitórias-de-samotrácias. E como ela vibra com isso! Ela e seu fiel escudeiro Felipe que deve viver de perplexidade em perplexidade diante dos milagres operados pela sua deusa Tina (quase que era “desatino”). A arte para Tina é uma tenda de fazer milagres, de dar vida, através de algum sopro mágico, aos seres inanimados. É isso. Eu sentia que havia uma unidade, um fulcro, uma razão que validasse tudo aquilo, toda aquela disparidade e aparente descompromisso: no fundo eu sou um cara quadrado que precisa de explicação. Mas a arte é sempre a expressão de uma personalidade mesmo que o artista não esteja ligando para isso. A princípio eu me perguntava que ligação havia entre uma cabeçorra de bronze ou material que o imite, comprometida com a realidade, levada a sério – e tudo em Tina é levado muito a sério, embora passe essa impressão de leveza, de amadorismo, mas basta você ir ao seu atelier para constatar a profundidade do seu empenho: um atelier sempre diz muito da identidade de um artista, e por isso um dos nossos maiores artistas, Paulo Bruscky, resolveu expor o atelier – e uma instalação de fundos de garrafa pet espalhados pelo chão feito caranguejos de andada. Ela também aposta na imaginação, não somente nisso de parecer ou lembrar elementos do mundo real mas também na imaginação estética, na sua capacidade de evocar e emocionar-se, aposta essa que vai da arte grega à lama do mangue, com seus gaiteiros e aratus numa, desculpe o condoreirismo, síntese universal.

Voltando à conversa com Garrido e ao mesmo tempo a Tina Cunha. Tina, não pense que estou escrevendo sobre você porque você, num dos seus repentes, tirou de minha cabeça o chapéu de pano dado de presente pela minha netinha querida Emília nos meus 80 anos, botou o do seu marido Felipe, e na cabeça dele o meu, sendo o dele um belo panamá do Equador, sua terra, “GENUINE PANAMA HAT/MONTE CRISTI-ECUADOR”. Quero até desfazer a troca. O panamá vai terminar troncho, dada a diferença de formato das cabeças. “Cada cabeça, um mundo”, diz o ditado. E depois, como iria aparecer à minha neta, que comprou o chapéu, de grife, com todo carinho e o primeiro salário?. 

JOSÉ CLÁUDIO, artista plástico.

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