Considerado um dos mais bem- estruturados parques nacionais brasileiros, o da Serra da Capivara é um portentoso museu natural com 214 km de perímetro, no qual é possível voltar ao tempo em que o sertão era povoado por animais gigantes, florestas tropicais e dezenas de tribos indígenas. As marcas desse período podem ser apreciadas em fósseis e ferramentas encontradas nas escavações arqueológicas e, sobretudo, nos conjuntos de pinturas rupestres produzidas há milhares de anos e que relatam com detalhes o cotidiano dos nossos mais antigos parentes. Chama a atenção a qualidade de preservação das pinturas, naturalmente esquecidas entre os cânions durante os milênios e que, depois de um minucioso processo de pesquisa, estão abertas à visitação. Cenas de caça, sexo e até mesmo de um beijo podem ser apreciadas.
O parque possui mais de 35 mil conjuntos de pinturas rupestres
Administrado pela Fundação Museu do Homem Americano, instituição que desde a década de 1970 gerencia os trabalhos científicos na região, o parque oferece uma estrutura que inclui passarelas construídas no alto dos paredões – e que permitem o acesso de pessoas portadoras de deficiências –, estradas bem-cuidadas, áreas de repouso, camping, albergues, sinalização bilíngue, guias especializados, iluminação noturna e centros de visitantes com auditório, loja, lanchonetes e banheiros. Isso sem falar no imperdível Museu do Homem Americano, localizado na cidade de São Raimundo Nonato, que guarda as mais importantes peças encontradas em três décadas de pesquisa.
CONTROVÉRSIA
Coordenados pela equipe da arqueóloga Niéde Guidon – brasileira naturalizada francesa –, os estudos interdisciplinares que revelaram o tesouro da Serra da Capivara constituem hoje um substancial conjunto de documentos que vem contestando as teorias acerca da presença humana no continente americano. Segundo essas pesquisas, há cerca de 50 mil anos o homem já perambulava pela caatinga nordestina, pelo menos 200 séculos antes do que defende a teoria oficial de povoamento do continente.
Escultura feita pelo vento batiza o sítio arqueológico Boqueirão da Pedra Furada
Graças ao trabalho persistente dos pesquisadores, hoje é possível apreciar de perto esse patrimônio e conhecer um pouco da história dos brasileiros que habitavam essas paisagens muitos milênios antes da chegada das caravelas portuguesas. Localizada numa região selvagem do interior nordestino, onde ainda é possível encontrar onças e outros animais silvestres, a Serra da Capivara tem o mérito de oferecer conforto e segurança, através de uma excelente rede de serviços e possibilitar que pessoas das mais variadas faixas etárias possam conhecer as suas atrações. No circuito da Serra Vermelha, por exemplo, trilhas que beiram os cânions descortinam mirantes naturais de tirar o fôlego e levam o visitante por lugares que seriam impossíveis de serem alcançados, caso não fosse a eficiente estrutura montada pela fundação.
As águas que já tomaram conta do espaço abriram cânios e grutas
A inclusão do Parque Nacional da Serra da Capivara na seleta lista do Patrimônio Mundial da Unesco, em 1991, é facilmente explicada quando se visita algumas das tocas decoradas pelos antiquíssimos artistas da região. Durante vários milênios, as paredes foram pintadas no que hoje é considerado um complexo código de comunicação. Além do caráter documental verificado nas cenas cotidianas, que contam muito da vida em épocas remotas, outro aspecto que chama a atenção é a qualidade artística dos desenhos. Ao lado do patrimônio cultural e científico, representado pelos milhares de conjuntos rupestres e pelos importantes sítios arqueológicos escavados na região, a Serra da Capivara resguarda ainda um tesouro natural incomum no Nordeste brasileiro.
MEIO AMBIENTE
A caatinga, muitas vezes vista como um território árido e sem vida, na área do Parque Nacional mostra toda a sua beleza. Centenas de espécies da flora e da fauna nativas da região vivem nos cânions que abrigam vegetação abundante. Algumas dessas espécies, como as dos jacarés amazônicos que ainda são encontrados nas vizinhanças do parque, são a prova do tempo em que grandes florestas cobriam a região e serviam de abrigo para tigres-dentes-de-sabre, mastodontes e preguiças gigantes.
O parque representa vasta área de preservação da fauna e flora
Muitos outros animais, no entanto, não tiveram a mesma sorte dos jacarés. As pesquisas baseadas nos desenhos deixados nas paredes mostram que, cerca de seis mil anos atrás, animais como capivaras e veados com chifres iguais aos do cervo-do-pantanal foram extintos na região, devido à escassez de água. Dezenas de répteis podem ser vistos com facilidade, com destaque para o camaleão, ou iguana, que é o maior lagarto encontrado na área do parque e um dos mais bonitos do Nordeste.
Durante cerca de 12 mil anos, os grupos humanos que habitaram essa região do Piauí evoluíram culturalmente e registraram essas transformações em seus painéis. Através do estudo das pinturas, os pesquisadores puderam descobrir as variações temáticas e os estilos que foram surgindo e se misturando com o tempo, formando um surpreendente mosaico gráfico.
A Tradição Nordeste, caracterizada por cenas que retratam figuras humanas, de animais e de plantas, domina a maior área do parque. Em alguns painéis, cenas inteiras relatam acontecimentos e dão o testemunho de uma época em que a arte gráfica era vista como algo sagrado, um sofisticado código de comunicação eternizado em paredes de arenito.
Depois de visitar o sítio arqueológico do Boqueirão da Pedra Furada, a pedida é apreciar o pôr do sol na rocha que dá nome ao lugar. Pacientemente esculpida pelo vento, a majestosa pedra furada, destacada ali, no coração da caatinga sertaneja, leva-nos à percepção da genuína qualidade artística das pedras junto à natureza intocada.
AUGUSTO PESSOA, fotógrafo e jornalista.