Arquivo

Recife sem rival

TEXTO José Cláudio

01 de Julho de 2013

'Praça do Corpo Santo' (baseado na obra de Luis Schlappriz). Acrílica e técnica mista sobre tela, 120 x 170 cm, 2012. Coleção do Palácio do Campo das Princesas, Governo do Estado

'Praça do Corpo Santo' (baseado na obra de Luis Schlappriz). Acrílica e técnica mista sobre tela, 120 x 170 cm, 2012. Coleção do Palácio do Campo das Princesas, Governo do Estado

Imagem Félix Farfan/Reprodução

O Recife. Deve ser sempre escrito com exclamação. O Recife! Não há lugar mais bonito de se chegar. A piada fácil seria perguntar se só de chegar e respondo que também de viver. Há muitos anos que sei que quero morrer por aqui. E não me chamem para sair daqui nem um dia. Quando digo “morrer” significa viver até o último dia. Minha formação no Recife: de quem mesmo? Gilberto Amado. Sergipano. É esse o maior título a que pude aspirar e não concebo outro maior, o de ter tido minha formação no Recife. Sou de perto, de Ipojuca, região metropolitana, e talvez visse o Recife melhor do que quem já nasceu aqui justamente porque eu tinha esse privilégio de chegar no Recife. Não me lembro ou não me toca tão belo chegar como quando se entra pela bacia do Pina mas me contentaria com a chegada no Pátio do Mercado e logo outros pátios, de São Pedro, do Carmo, do Terço, do Livramento, de Santa Cruz, onde morei na rua de mesmo nome. Morei antes na Rua Nova, numa pensão em cima do Cinema Royal, pegado com a Conceição dos Militares. Outra chegada linda era pela Rua Imperial, quem vinha do litoral sul, o bonde, as casas de azulejos, o tamborilar das ferraduras dos cascos dos cavalos no calçamento. Barcaças do Cais de Santa Rita. A Ponte Giratória, que girava, deixando as barcaças passarem. Por isso, repito, não há lugar mais bonito de se chegar. E olhe que já cheguei em Veneza uma meia dúzia de vezes. Aliás, em Veneza sempre se chega, mesmo já estando nela, como eu chegava todo dia, quando ia da Giudecca a São Jorge ou São Marcos. Pois é. Já cheguei em muitos lugares bonitos: Viena, Nápoles, Roma, Paris, Madri, sem falar do Brasil, Bahia, Rio de Janeiro. Mas você vê que o Recife é única quando visita uma exposição como a organizada por Leonardo Dantas no Instituto Ricardo Brennand Velhas imagens do Recife (19 de março a 11 de abril). Sei que quem mora em Bruges ou Armsterdã poderá dizer o mesmo mas o que acontece é que nada pode superar para mim a emoção de ver o Recife nascendo da água nessa gravura de Frans Post de 1645 Povoado do Recife e da Cidade Maurícia vistos dos arrecifes. Será que existe outra imagem do Brasil ou quem sabe até do continente dessa data? A impressão que se tem é de flagrar o exato momento do parto do Novo Mundo, pouco mais que uma lista que se vislumbra, quase miragem no horizonte infinito. Se não minto, em termos de pintura, é esse o momento da descoberta do Brasil e não somente da nossa cidade.

Daí, desse registro espetacular do despontar da nossa primeira dentição rasgando as gengivas da história (gostou, Arthur Carvalho?), pulamos para o Pernambuco atual ou quase, do século 19, esse ontem que se confunde com hoje, que ainda podemos palmilhar, prédios que continuam intactos como por milagre, Teatro Santa Isabel e Palácio do Governo (Emil Bauch, 1852), a encantadora vista a partir de dentro do salão do mesmo teatro, vendo-se o piso, a balaustrada, duas sinhazinhas de saias-balão ladeando um rapaz de casaca (Luís Schlappriz, 1863), o sítio de João José Rodrigues Mendes, hoje Academia Pernambucana de Letras (idem), Ponte Santa Isabel, Assembleia e Ginásio Pernambucano e, noutra gravura, a propriedade do Dr. Augusto Frederico de Oliveira, hoje Museu do Estado (L. Krauss, 1878) além de igrejas, cais, pontes e também locais que continuam reconhecíveis como a vista do Recife a partir da Igreja da Misericórdia em Olinda (W. Bässler, 1847) ou a atual Praça Maciel Pinheiro, antiga Praça da Boa Vista (Schlappriz) ainda sem a fonte, ou a Detenção vista do outro lado do rio, que nos dão a sensação de estar hoje pisando no mesmo chão. E o Rio Capibaribe, que é o nosso maior protagonista, que aparece e reaparece, como ainda hoje quando se anda pela cidade. E gentes, e burros carregados e lugares que permanecem iguais, como o Pátio do Terço (Krauss). Muitas vezes é como se estivéssemos na janela de um prédio, neste Recife do século 21, contemplando o mesmo Recife de séculos passados, isto é, vendo, com o olho. E também igualmente o tamanho do estupro sistemático de um Recife varrido do mapa violentado por demolições para nada e arranha-céus. Porque, mesmo sem querer, temos guardado um Recife que nos é caro, que existe dentro de nós como bem inalienável, como parte nobre de nós próprios e que ninguém nem o tempo, tem direito de amputar: isso mesmo, estupro, amputação, amputação sem consulta ainda mais, sem aviso e sem necessidade de ninguém ainda por cima. É esse Recife que essas vistas nos recuperam e também denunciam quando nos deparamos hoje com o vazio e as substituições absurdas. Muitas vezes ali, nessas vistas, nos reconhecemos, nos encontramos, os chegados aos oitenta, para quem a história do Recife não poucas ocasiões nos parece a história de sua destruição. Muitas vezes, no centro do Recife, me surpreendo à procura dos prédios e ruas que não existem mais, dos cais que foram aterrados, do Colégio Marista onde fiquei interno cinco anos e que foi decepado, e outro Recife mais antigo, quando meu pai me trazia com quatro ou cinco anos de idade, e procuro antigos espaços como à procura da luz de uma estrela extinta e que só eu vi e se apagou e eu mesmo penso que estou delirando, Recife dos anos 30. Será que morri? Mas essas gravuras me restituem a mim próprio, me mostram que não estou doido nem virei zumbi, restabelecendo o recifense que sou.

Agora, falando sobre pintura atual, essas antigas vistas de Pernambuco que permanecem no inconsciente de nossa paisagem, no sangue da minha geração, raramente vêm à tona retomadas ou recriadas pelos nossos pintores. Surgem às vezes nos quadros de José Barbosa. Lembro-me da belíssima exposição de Aloísio Magalhães em São Paulo, década de 1950, A aventura da linha evocando essas perspectivas e depois, do mesmo autor, um álbum de litografias. A propósito, ilustro esta crônica com quadro do sempre muito bom pintor recifense atual, nascido no Acre por engano, Felix Farfan. 

JOSÉ CLÁUDIO, artista plástico. 

veja também

A boca de Deus

Entre o digital e o analógico

Diane Arbus: Mundo estranho e fascinante