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Noise: Um barulho que se propagou

Lançado em manifesto há 100 anos, gênero musical ganhou adeptos emblemáticos, como os compositores John Cage, Lou Reed e a banda Sonic Youth

TEXTO Yellow

01 de Julho de 2013

O grupo americano Sonic Youth é o mais radical e bem-sucedido no uso das premissas do noise

O grupo americano Sonic Youth é o mais radical e bem-sucedido no uso das premissas do noise

Foto Divulgação

Há 100 anos, o pintor Luigi Russolo (1883-1947) escrevia o manifesto futurista L’arte dei rumori (A arte dos ruídos), considerado um dos mais importantes e influentes textos para a estética musical do século passado. Inspirado na poesia onomatopeica de Marinetti, Russolo argumentava que o ouvido humano havia se acostumado à velocidade, à energia e ao barulho da paisagem sonora urbana industrial, e que essa nova paleta sonora requeria uma abordagem diferente da instrumentação e composição musicais existentes. Ele propunha que a eletrônica e outras tecnologias permitiriam aos músicos futuristas “substitutos para a limitada variedade de timbres que a orquestra possui hoje”, estimulando a produção musical cacofônica, e a adoção de técnicas que começavam a ser usadas nas artes plásticas, como o ready-made e o fluxo da consciência dadaístas.

A música produzida por Russolo, que causou tumulto em sua primeira apresentação, era feita através de instrumentos que o artista construiu com seu irmão (osciladores elétricos que alguns defendem serem os primeiros sintetizadores), apresentando explorações rudimentares do mundo dos barulhos. Uma delas, por exemplo, replica instrumentalmente os sons de veículos automotores; outra fazia referência aos de uma máquina de escrever. O artista alertava, entretanto, que a arte dos ruídos não deveria ser limitada à imitação.

Um século depois, a influência do manifesto pode ser ouvida na música popular, e não serve apenas a círculos de acadêmicos que trocam tapinhas nas costas uns dos outros a cada nova estridência atonal que criam. A música que emprega o ruído como recurso principal é conhecida hoje pelo amplo termo noise music, e inclui uma grande variedade de estilos e práticas sonoras criativas.

Teóricos debruçaram-se sobre o tema, criando uma vasta literatura. Notadamente o compositor John Cage (1912-1992), que fez experimentos com música concreta, criou propostas de notação musical e compôs peças para instrumentos quebrados, ou que incluíam a destruição de instrumentos. A abordagem artística do barulho viria a ser apropriada, na segunda metade do século 20, por artistas do movimento Fluxus, como Yoko Ono, que conseguiu infiltrar sua arte em nada menos que a maior banda de rock de todos os tempos. Revolution 9, do chamado Álbum branco dos Beatles, explicitava um tipo de exploração musical inédita na música comercial. A influência vanguardista do noise possibilitou experimentos como Household objects e Alan’s psychedelic breakfast, da então jovem banda inglesa Pink Floyd.


O pintor italiano Luigio Russolo escreveu, em 1913, o manifesto A arte dos ruídos.
Foto: Reprodução

Ao final da década de 1960, vários músicos começaram a incorporar a microfonia aos seus solos de guitarra. Jimi Hendrix, com seu estilo único, inovou no uso do instrumento, os efeitos fuzz e wah-wah, e praticamente inventou a tradição da parede de amplificadores Marshall, que garantia atrozes microfonias harmônicas, as quais o guitarrista domava com técnica e sensibilidade jamais repetidas. A figura de Hendrix e sua popularidade abriram ainda mais os ouvidos do grande público para os novos e estranhos sons.

O encontro entre vanguardas das artes plásticas com a música dos jovens aconteceria novamente ao final da década de 1960, quando Andy Warhol resolveu dar respaldo à banda nova-iorquina Velvet Underground, criada pelo compositor Lou Reed, que viria a ser um dos melhores letristas do rock, e pelo músico de vanguarda britânico John Cale, que já experimentava composições de dissonantes drones (a repetição de uma mesma nota ou acorde, presente na música indiana clássica e na medieval do Ocidente).

Encantado com a mistura de temas sombrios das letras de Reed às caóticas sessões de barulho e microfonia que a banda produzia, Warhol os apresentou como acompanhamento musical de seu espetáculo multimidiático Exploding plastic inevitable, além de produzir e desenhar a mítica capa do primeiro disco do VU, a da banana. Diz-se que poucos ouviram esse álbum, quando foi lançado, mas todos os que ouviram começaram uma banda. A sonoridade crua e o tom sincero com que eram abordados assuntos como drogas e sadomasoquismo viriam a inspirar o nascimento do punk, nos anos seguintes.

Anos depois, Lou Reed criaria uma das mais absurdas obras da história do rock. Metal machine music foi um álbum duplo, com quatro lados de microfonia de guitarras, gravadas na sala do seu apartamento, e lançado em 1975, quando o músico desfrutava do auge de sua popularidade. O disco pode ser entendido como um trabalho conceitual, ou como o maior desacato que um artista já perpetrou à sua gravadora e seu público. Reed defende com unhas e dentes a sua criação, e insiste que tentou convencer a RCA a lançar o LP sob o selo de música clássica da empresa.

PUNK E NO WAVE
Por volta dessa época, surgiu o movimento punk. Idealmente, o gênero musical deveria ser caracterizado por revolta contra os padrões vigentes, e foi extremamente bem-sucedido ao divulgar a ideia do faça-você-mesmo contra as regras pré-estabelecidas do sistema. O fanzine homônimo que deu origem ao levante artístico, editado por Legs McNeil, chegou ao cúmulo de publicar um diagrama mostrando posições de três dedos no braço de uma guitarra, sobre a seguinte legenda: “Aqui está um acorde, aqui estão mais dois, agora vá formar sua banda”. Porém a música punk produzida pelos Ramones e Sex Pistols ainda era essencialmente derivativa do rhythm and blues e rock’n’roll das décadas anteriores.


A ligação do compositor Lou Reed (na foto, o 2º da dir. para esq.) com o estilo musical começou no nova-iorquino Velvet Underground. Foto: Reprodução

Na década de 1970, mais especificamente no ano de 1978, surgiu (e, de certo modo, também entrou em colapso) a cena nova-iorquina no wave, como uma resposta à música punk produzida até então. O movimento foi tão breve, que existe praticamente um disco apenas como registro (fora outros de menor importância, lançados anos depois), a coletânea No New York, produzida por Brian Eno. As bandas do gênero tinham como objetivo limpar de vez a paleta sonora e varrer os últimos resquícios de blues e rock’n’roll que os punks haviam deixado. Algumas das bandas, como James Chance and the Contortions, não foram bem-sucedidas na tarefa, e suas performances e composições ainda eram bastante influenciadas pelo rockabilly. A mais experimental e efetiva banda do no wave foi DNA, liderada por Arto Lindsey.

Arto, que viria a se tornar o produtor de alguns dos melhores discos da MPB das últimas décadas (sua guitarra está infiltrada em Estrangeiro, de Caetano Veloso, e Mais, de Marisa Monte), nasceu nos Estados Unidos, e passou grande parte de sua infância em Garanhuns (PE), acompanhando seus pais missionários. De volta a Nova York, ele envolveu-se em coletivos artísticos e musicais. A banda DNA desconstruía harmonia, ritmo, performance, criando um som primitivo e de vanguarda.

O no wave foi determinante para diversos nomes que surgiram na década de 1980. A atonalidade serviu de matéria-prima para a expressão do inconformismo em grupos de hardcore, como Big Black e Shellac, do produtor Steve Albini, e Black Flag, uma das mais influentes bandas californianas. O underground americano ainda serviu de berço para muitos artistas, que pontuavam melodias pop com barulho, como Dinosaur Jr. e Yo La Tengo.

Do outro lado do Atlântico, o barulho representou uma reação ao pop eletrônico, nos anos 1980. The Jesus and Mary Chain sobrepujava todos com sussurros e guitarras simples, porém em alto volume e distorcidas ao extremo. Os roqueiros ingleses da virada das décadas de 1980 e 1990 ficaram conhecidos como shoegazers – jovens curvados, com o cabelo sobre o rosto, falando baixo e ouvindo música ensurdecedora. A exploração das guitarras chegou ao extremo com a genial banda My Bloody Valentine, que cria delicadas melodias e harmonias através de tanto barulho, que chega a distribuir protetores de ouvidos em seus shows. Uma grande influência da My Bloody Valentine e do Metal machine music está no estilo de bandas de drone metal, como Sunn e Boris.

Adentrando mais no continente europeu, na Alemanha, o guitarrista Blixa Bargeld fazia barulho na banda Einstürzende Neubauten, que ainda existe. Entre 1983 e 2003, integrou a Nick Cave and the Bad Seeds.


Músico John Cage foi pioneiro no uso de instrumentos não convencionais.
Foto: Divulgação

NOISE ROCK
Acima de todas as bandas de noise rock, está Sonic Youth. Os guitarristas Thurston Moore e Lee Ranaldo conheceram-se, no final dos anos 1970, como participantes da orquestra de guitarras de Glenn Branca, na qual aprenderam a explorar afinações não convencionais do instrumento. Eles admitem ter roubado de lá suas primeiras guitarras, e formaram o grupo ainda durante o movimento no wave, com a namorada de Thurston, Kim Gordon. Com o passar dos anos, o SY afastou-se cada vez mais da mera atonalidade das primeiras composições, e passou a ficar cada vez mais melódico, sem abandonar o experimentalismo e a exploração de novas afinações e técnicas de extrair sons de suas guitarras.

Após décadas tocando e aprendendo juntos, os músicos conseguiram formar um combo irrepetível, que constrói paisagens sonoras simultaneamente radicais e palatáveis. É fácil fazer um grupo de improvisação livre de barulho. É difícil fazer uma música dissonante chegar a paradas de sucesso, como o Sonic Youth fez com 100%.

Embora o noise continuasse sendo feito com guitarras por grupos como No Age, LIARS e HEALTH (de influência do hardcore), surgiram apenas nos anos 2000 as primeiras manifestações realmente interessantes de noise eletrônico. Puristas podem alegar que o noise e o experimentalismo eletrônicos sempre existiram, mas raramente com a vitalidade de bandas como Animal Collective, Die Antwoord e Death Grips.

Existem raros registros sonoros e audiovisuais, mas, em meados dos anos 1990, em plena era do manguebeat, várias bandas pernambucanas de noise surgiram. A pioneira foi a olindense Heads Bacon, à qual se seguiram Garapa Nervosa, O Crivo e Suellen, sempre reunindo músicos autodidatas. Ex-integrantes dessas formam hoje a banda de hardcore Black Soda e a de eletroacústica AnnaLovesThompson. Paper House, Embuás, Geladeira Metal, Monstro Amor e Estranhas Ocupações são alguns dos coletivos de improvisação musical e noise que estão em atividade no Recife. Russolo ficaria orgulho em saber até aonde o seu barulho chegou. 

YELLOW, designer, músico e professor.

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