A sequência mostra, jocosamente, o processo de embriaguez pelo consumo de absinto, bebida de forte teor alcoólico. Fotos: The Virtual Absinthe Museum/Divulgação
RUM REVOLUCIONÁRIO
Mais para cima do Equador, o rum, igualmente extraído da cana-de-açúcar, ajudou a fazer os Estados Unidos da América. “Além da venda para consumo local, os destilados da Nova Inglaterra encontraram um mercado pronto em meio aos comerciantes de escravos para os quais o rum tinha se tornado a forma preferida de moeda alcoólica com a qual podiam negociar na costa ocidental da África”, segue o autor, lembrando que os destiladores chegaram a produzir versões ainda mais potentes da bebida, confirmando a lógica geral dos destilados: quanto mais álcool comprimido, maior a quantidade de riqueza engarrafada.
Mas o rum que patrocinava a compra de escravos, para que os ingleses mantivessem suas grandes colônias americanas, terminou também por embriagar demais o colonizador: ajudou a precipitar a independência americana. Para impedir que os produtores da Nova Inglaterra comprassem melaço das colônias sob o domínio da França concorrente, a Inglaterra sobretaxou as importações, exigindo que se comprasse apenas o melaço produzido nas ilhas britânicas. Como a produção das colônias inglesas não era suficiente para abastecer a indústria de rum nos estados que ainda não eram unidos, os produtores ignoraram a lei do melaço por completo, contrabandeando o artigo das colônias francesas.
“A taxação do rum e do melaço, que dera início à hostilidade entre a Grã-Bretanha e suas colônias norte-americanas, tinha conferido ao rum um sabor distintamente revolucionário. Muitos anos depois da rendição britânica em 1781 e da independência dos Estados Unidos, John Adams – já então como um dos fundadores do país – descreveu para um amigo: ‘Não sei por que deveríamos ter vergonha de confessar que o melaço foi um ingrediente essencial na independência norte-americana. Muitos grandes acontecimentos resultaram de causas muito menores’”, escreve Tom Standage.
ANESTÉSICO SOCIAL
A popularização das aguardentes estimulou a reflexão sociológica. Camarada da primeira e de todas as horas de Karl Marx, o Frederich Engels que ajudou a urdir o Manifesto comunista se preocupava com as consequências sociais do consumo de álcool. Para ele, havia uma relação sociológica e diretamente proporcional entre a exploração do trabalho operário e o abuso de bebidas: o copo como consolo mais fácil e tranquilizante à mais-valia capitalista: “A aguardente é para os trabalhadores quase a única fonte de gozos e tudo conspira para que se feche o círculo ao seu redor”. Engels, no entanto, abonava o vinho e a cerveja que gostava de bebericar. Mas demonizava a aguardente, para ele uma fonte irrestrita de apatia entre os trabalhadores, um verdadeiro anestésico social.
No seu ensaio A situação da classe operária na Inglaterra, de 1845, Engels diz que o baixo preço da aguardente teria produzido grande indiferença entre os trabalhadores nas lutas classistas de 1830. “No movimento operário europeu do final 19, o debate sobre o uso do álcool pela classe trabalhadora foi um divisor de águas entre dois polos no interior da Segunda Internacional Comunista: dos defensores da proibição, que viam na embriaguez uma forma de degeneração e uma neutralização do potencial de mobilização política e sindical; e dos que se posicionavam contra qualquer medida proibicionista, por identificarem na bebida não só suas formas de consumo compulsivo e alienante, mas também formas moderadas e construtoras de laços de sociabilidade”, explica Henrique Carneiro, professor de História Moderna da Universidade de São Paulo e autor de Bebida, abstinência e temperança – na história antiga e moderna (Ed.Senac).
Um dos pais da sociologia moderna, Durkheim tratava o álcool e o alcoolismo como fatos sociais. Curiosamente, não via qualquer relação entre o consumo exagerado de bebidas e altas taxas de suicídio. Ponto alto de sua trajetória, o sociólogo classificou o suicídio, seja ele qual for, como um gesto social. Em situações de crise, por exemplo, as ocorrências aumentariam mais nos países ricos que nos pobres – já que os menos favorecidos teriam mais escopo psíquico para lidar com problemas cotidianos. Durkheim, como que fortuitamente, percebeu apenas que as taxas de suicídio seriam menores em regiões com mais tradição no consumo de vinhos que de destilados.
A história das civilizações começa, desde seus princípios, molhada de álcool. Quando, há cerca de 12 mil anos, os homens do chamado Oriente Próximo trocaram o estilo nômade de vida e a coleta pela agricultura e o sedentarismo, as primeiras fixações humanas se viabilizaram com os dois principais produtos feitos dos cereais domesticados. “Com a mudança de estilo de vida de caça e coleta para um mais sedentário, os homens vieram a contar com uma nova bebida derivada de cevada e trigo, as primeiras plantas intencionalmente cultivadas. Esta tornou-se o núcleo central da vida social, religiosa, econômica, e foi a principal bebida das primeiras civilizações. Foi a primeira a ajudar a humanidade ao longo do caminho para o mundo moderno: a cerveja”, lembra, de novo, Tom Standage.
Usada também como moeda de troca, a cerveja era o lado líquido de uma moeda que tinha na sua outra face o pão. “Um mingau grosso podia ser cozido ao sol ou numa pedra quente para fazer um tipo de pão; um mingau fino podia ser deixado para fermentar e virar cerveja”, diz ele, confirmando que um chopinho é mais que um exercício de sociabilidade depois do expediente. É uma das matrizes da civilização.
BRUNO ALBERTIM, jornalista especializado em gastronomia.