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Uma central de cultura

TEXTO Kleber Mendonça Filho

01 de Junho de 2013

Ilustração Karina Freitas

Não há aqui a intenção de ser nostálgico miserabilista, mas o tema é o cinema e o passado. Há a sensação de entender as mudanças naturais das coisas, e o cinema geralmente age como uma pasta de documentos. Se esses documentos serão vistos no futuro, ou destruídos, não sei. Esse documento escrito me faz lembrar Silva.

Há um prédio no Bairro do Recife, construído nos anos 1940, quem sabe nos anos 1920. Ainda hoje, na frente desse prédio, há trilhos de bonde que ainda estão no chão. Nas ruas vizinhas, os paralelepípedos e outros segmentos dos mesmos trilhos foram cobertos por massas recentes de asfalto. Nessa rua, a Barbosa Lima, os trilhos chegam a um fim repentino, pois começa a capa de piche da Avenida Rio Branco.

Para falar desse prédio específico, melhor começar pela sua lixeira, que era localizada nos fundos, numa minirrua que parecia indecisa entre ser espaço público ou privado.

De qualquer forma, ali ficavam latas de lixo invariavelmente abarrotadas de dejetos cinematográficos. Não adiantava ir pela manhã catar o lixo, à tarde era sempre melhor. Muito desse material era coletado por caminhões, mas algo dele terminava no sebo do seu Paulo, que, no final dos anos 1980 e início dos 1990, acontecia na calçada do extinto Cine Trianon, na Avenida Guararapes.

Na lixeira, pequenos tesouros. Cartazes dobrados, enrolados ou picotados. Rolos de filme 16mm e 35mm com as marcas da Warner, Gaumont, Fox, Paramount, Metro Goldwyn & Mayer, Universal Pictures, Pathé e Embrafilme. Latas de trailers, fotos de cena de alta qualidade (Litho in USA), em cores e em preto e branco, stills de pornochanchadas com estrelinhas cobrindo os biquinhos dos seios das atrizes nuas. Documentos de cinema descartados por aquele prédio, no Bairro do Recife.

Que prédio era esse? Esse prédio abrigava a central regional da distribuição cinematográfica para a Região Norte-Nordeste. Durante décadas, todos os filmes e seus materiais de divulgação, estrangeiros e nacionais, milhares de bobinas de filmes, entravam e saíam dali. Uma central de cultura e entretenimento para milhões de brasileiros da Bahia para cima, a partir de filiais comerciais do grande businesscinematográfico.

Esse business tinha, para além desse endereço, elementos de fascínio na própria matéria-prima do cinema. Tinha também rostos que davam nome a todo esse business.

Gusmão, da Aquarius, não apenas distribuidor da Fox e Paris Filmes, mas à frente de um acervo de cópias guardadas de 16mm e 35mm na sala atrás, uma filmoteca informal, com épicos (El Cid), karatês e bangue-bangues que, mesmo nos anos 1980, já não encontravam mais espaço na década que viu a popularização do VHS.

Tinha também Josué, já falecido, ex-Universal e Paramount (“Psicose foi um fracasso no Recife, quando o lancei em 1960”). Quando o conheci, representava a Embrafilme, até o momento em que Collor extinguiu a estatal brasileira, em 1990. Tinha Edmilson, o caçula de uma turma de veteranos, à frente da Warner. E tinha Silva, o mais veterano de todos esses cavalheiros.

Para chegar ao escritório de Silva, eu passava pela entrada do edifício. O capacho de entrada ficava a metros dos trilhos de bonde ali na frente, e o chão era ladrilhado. No alto, na testa interna do térreo, havia uma pintura da cidade de Nassau também recebendo os visitantes.

Os dois elevadores eram do lado direito de quem entra, e cada elevador tinha um ascensorista, sentado, resignado, num banco de madeira, geralmente mal-humorados e abafados. Eles trabalhavam uma peculiar maçaneta vermelha, totalmente gasta. A maçaneta dava ao elevador um ar de bonde vertical.

O prédio fervilhava durante a semana, com os escritórios de engenhos de açúcar, firmas de advocacia e contabilidade, e representantes de bombas hidráulicas alemãs. De qualquer forma, o que realmente me chamava a atenção naquele lugar era o aspecto cinematográfico das suas atividades.

Silva ficava no primeiro andar. Um luminoso de acrílico anunciava a representação da Columbia Pictures-Tri Star Pictures na entrada da Sétima Arte, o nome da sua empresa. Silva representava a Columbia desde os anos 1950. Na sua sala, cartazes de A um passo da eternidadeGilda e Lawrence da Arábia. Na sua mesa, eu vi durante anos um peso de papel de Contatos imediatos do terceiro grau. No formato de uma meia lua de vidro, era eu quem não tirava o olho desse peso de papel, ou era o peso de papel que não tirava o olho de mim?

As conversas bissextas com Silva, ao longo de pouco mais de 20 anos, tentavam esconder discretamente o interesse ávido de um jovem cinéfilo pela carga de história que Seu Silva tinha sobre o cinema, as salas de cinema, os costumes de décadas atreladas ao ato de ir ver um filme. Ele era um arquivo vivo, e sua voz modulada, muito boa de ouvir. Ligar para Silva no seu escritório era a garantia de que sempre ouviria do outro lado um modulado e elegante... “Sil...va...”.

Não era fácil esquecer, ao olhar para Silva durante uma conversa, que o seu interlocutor esteve como pracinha em Monte Castelo, que esteve na noite de inauguração do Trianon, em 1940 (“caiu um reboco do teto, deu má fama à sala durante anos”), que lançou a Ponte do Rio Kwai, em 1957, no Cinema São Luiz, e Homem Aranha 3, em 2007, em todas as salas de multiplex do Norte-Nordeste.

Silva viveu uma série de mudanças históricas ao longo do seu trabalho, a chegada da TV, o fim dos cinemas de bairro, a popularização dos cinemas de shopping, chegando à atual revolução digital, que também explica o fechamento dos escritórios regionais de cinema na Barbosa Lima, atividade hoje centralizada no Rio, em São Paulo e Los Angeles. Silva faleceu nesse mês de maio, aos 89 anos. 

KLEBER MENDONÇA FILHO, crítico e cineasta.

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