FOTOS TÉO PITELLA
01 de Junho de 2013
Foto Téo Pitella
Quem não viu Sevilha não viu maravilha, diz um ditado popular andaluz. João Cabral de Melo Neto não só a viu, como por ela se apaixonou. O poeta pernambucano morou na capital da Andaluzia em duas oportunidades – nos anos 1950 e 1960 – e dedicou o livro Sevilha andando, além de outros muitos poemas, à cidade e sua gente. Chegou a dizer que, se não tivesse nascido no Recife, queria ter nascido lá. “A paisagem espanhola, o homem espanhol, a literatura espanhola, todas as manifestações culturais da Espanha me abalam profundamente”, afirmou o poeta, que também viveu em Madri e Barcelona. Mas foi na cidade do sul da Espanha onde ele se encontrou. Ali fez morada, e a levou consigo até o final da vida (“Tenho Sevilha em minha casa (...) É Sevilha em mim, minha sala/ Sevilha e tudo o que ela afia”).
Mas o que foi que encantou tanto um homem tão viajado, que durante décadas trabalhou como diplomata e conheceu os quatro cantos do mundo? Na tentativa de responder essa pergunta, viajei a Sevilha, com a ideia de percorrer os lugares por onde passou o escritor, falecido em 1999. Descobri não apenas que é fácil se maravilhar com a cidade, como é possível criar uma para si, como fez Cabral.
A casa de João Cabral ficava nessa rua, calle Sierpes, fechada para
carros, na parte antiga de Sevilha
Para isso é imprescindível andar, muito. Andar para se perder e assim encontrar (-se). O grande poeta sevilhano Antonio Machado (1875 – 1939) dizia que o caminho se faz ao andar (“caminante no hay camino/ se hace el camino al andar”). Pois andar sem mapa, guiado pelo instinto, pelos sons e pela intuição, é uma boa maneira de percorrer a cidade, de construir caminhos para no futuro tê-los como recordação (“Diversas coisas se alinham na memória/ numa prateleira com o rótulo: Sevilha”, escreveu o poeta pernambucano).
Em Sevilha, é preciso estar com os sentidos em riste, dizia Cabral (“Sentidos que nem se sabia/ antes de andá-la, que existiam”). Quem seguir o conselho perceberá que a cidade tem um cheiro próprio. As laranjeiras, que dão enormes e amargos frutos, estão espalhadas por toda a cidade, e a perfumam. Perfume que instigou João Cabral a apelidá-la de “a cidade cítrica”.
Na terra andaluza, é fundamental andar com porte de toureiro, cabeça alta para descobrir os detalhes das construções centenárias, da arquitetura mourisca, fruto dos muitos séculos em que os árabes dominaram a região. As sacadas coloridas decoram as ruas estreitas, feitas à medida do sevilhano, como poetizou Cabral. E a imponente Giralda, a torre do campanário da gigantesca catedral, serve de bússola para o viajante, porque pode ser vista e admirada de qualquer lugar.
De arquitetura mourisca, Palácio Real Alcázar testemunha domínio árabe na região
Sevilha tem vários sons. O som de água das fontes árabes que decoram as dezenas de praças e pátios. Do trote dos cavalos que puxam as charretes turísticas. O som dos guitarristas flamencos tocando sua arte por algumas moedas. Vi, às três da tarde, um cantador exibir-se a palo seco (sem guitarra). Ia de um lado ao outro da calçada, caminhando, batendo palmas e cantando, dignamente, seu lamento. Expunha-se. E quem é de Sevilha diz que, se bem procurado, encontra-se, perdido em uma da estreitas ruas, o silêncio.
A cidade está cortada por um rio, o Guadalquivir. A cidade mais antiga e interessante está num raio que contempla três pontes. Com um compasso mental, o visitante traça o meio círculo com a ponta seca na Ponte San Telmo, e extremos na Isabel II e na De Los Remedios. Dentro da área criada está a Sevilha a ser explorada. O próximo passo é andar, tendo sempre como referência o rio, mas sem preocupar-se muito com rota. Perder-se até chegar à impressionante Plaza de España, construída para a Exposição Ibero-americana de 1929; para encontrar o palácio Real de Alcázar, uma construção com mais de mil anos de história, perfeitamente conservada, e cujos jardins e muralhas são uma preciosidade. E, logo ao lado, descobrir o Arquivo das Índias, edifício levantado no século 16 e que hoje guarda os principais documentos referentes à conquista espanhola da América.
Dos becos, o andante pode avistar os monumentos locais e observar detalhes das fachadas
Navegar pelas ruas estreitas (“a cidade mais bem cortada/ que veste o homem sob medida”) para sair em plazoletas, pátios, jardins e becos. Lugares cheios de histórias, mistérios e lendas (como as de Don Juan, nascida em uma dessas ruelas).
Vagar até deparar-se com a praça de touros da Maestranza, onde Manolete (“o toureiro mais deserto/ mais agudo/mais visceral e desperto”) teve tardes memoráveis. Nos arredores, estão os bares em que os aficionados (os fãs das touradas) passam horas discutindo sobre o assunto. Cabral, em sua época sevilhana, era um deles. E chegar à Plaza de la Encarnación, que sofreu uma remodelação na década passada e ganhou uma imponente construção apelidada de Parasol (guarda-sol) – de lá do alto há uma vista privilegiada.
No fim de tarde, entre as pessoas que se exercitam ou as que simplesmente relaxam na beira do Guadalquivir, vale a pena sentar-se e deixar o tempo passar; e assistir à cidade mudar de cor. E, de noite, do outro lado do rio, na Rua Betis, conhecer as discotecas e os lugares de flamenco. A noite sevilhana é tão famosa quanto suas laranjeiras.
Tira-gosto tradicional, tapas são geralmente pedidas para
acompanhar bebidas
A RUA DO POETA
João Cabral escolheu uma rua para ser sua. A Calle Sierpes, que segue pela parte antiga da cidade – toda ela fechada para os carros –, era onde o poeta, em suas palavras, navegava. De uma ponta a outra são 500 metros, serpenteando (por isso o nome da rua) a zona antiga. O Bar La Campana, fundado em 1885, segue na esquina. Lá, João Cabral tomava sua caña (um chope), ou café, e cruzava até o outro extremo, onde estacionava para uma nova rodada. Los Corales, o ponto final da rota cabralina, já não existe como tal.
Nesse bar, vestido com seu impecável terno branco de linho, o poeta participava das tertúlias com toureiros. Falava-se dos touros e das sevilhanas. Foi ali que conheceu Juan Belmonte, um dos maiores matadores de touros da história, a quem dedicou um poema (“Por amor de moça mocinha/ que o recusara e às suas quintas/ mostrou que enfim era o mais forte/ suicidou-se, mandou na morte (...) convocou-a, mas quando quis”).
Moradias populares são caracterizadas pela estrutura fechada em torno de pátio central
Entre os dois extremos da Sierpes, está o Círculo de Labradores, um clube da elite sevilhana, frequentado por fazendeiros e, por tradição, pelos cônsules. Ali, o poeta se sentava para ler o jornal e ver o movimento. O porteiro, que há 37 anos trabalha no lugar, conta que muita coisa mudou desde a época do cônsul Cabral de Melo Neto. Já não é mais obrigatório o uso de gravata no clube, já quase ninguém usa chapéu e os pequenos comércios da rua, em que se vendiam e compravam sacas e animais, deram lugar às lojas de grife. Mas o gentio continua a passar pela rua, e as belas mozas seguem chamando a atenção dos señoritos.
Como João Cabral, o visitante pode escolher uma calle e navegar por ela, descobri-la, conquistá-la. Estacionar num bar para tomar uma caña de pé no balcão e comer uma tapa (petisco). Para saber onde aportar, a dica é simples: evite os lugares com muitos turistas, os garçons na calçada que convidam a entrar, e aposte nos locais pequenos, meio escondidos, que estejam cheios de espanhóis – quanto mais alta for a conversa, melhor.
Assim, cheguei ao Las Columnas, um típico bar de tapas espanhol, com ótima tortilla de camarón e onde o mesero, depois de atender, escreve com giz no balcão o valor da conta. Seguindo o barulho e guiado pela sorte, acabei no Casa Matias, um bar de flamenco nada turístico, onde quem canta são amadores amantes da música. Entre capas e roupas de toureiros, imagens religiosas, um violão assinado por Paco de Lucía e uma cabeça de touro presa na parede, sevilhanos de todas as idades se espremem para beber, dançar e cantar.
No final de sua vida, João Cabral perdeu a visão e a vontade de viver. Mesmo assim guardava na memória as imagens da cidade “mais encantadora da Espanha” e dizia que, mesmo cego, era capaz de percorrê-la, tão vivas eram suas lembranças. Sevilha foi sua casa, seu barco e seu porto. A “cidade feminina”, aconchego de mulher, marcou tanto o poeta, que o levou a deixar gravado em verso seu desejo de que o mundo fosse “sevilhizado”, de que a terra se tornasse uma enorme Sevilha. Quem visita a cidade consegue entendê-lo.
UMA SEVILHA PARA POUCOS
Há a Semana Santa, e há as Feiras de Abril, mas é possível que o mais típico de Sevilha seja algo bem menos turístico: os corrales de vecinos. São construções populares onde viviam milhares de famílias e que tinham como principal característica o fato de terem uma enorme fonte e um poço coletivo no centro. Ao redor deles, construíam-se as casas, iguais, para que todas as portas e janelas dessem para o pátio central.
Esse tipo de moradia teve início no século 16 e, nas últimas décadas, com a modernização da cidade, foi desaparecendo. João Cabral dedicou um poema aos corrales, e nele descreve a convivência entre os músicos decadentes, os assistentes de toureiros aposentados (e cheios de cicatrizes), as comadres fofoqueiras e os meninos que sonham em ser matador. Conta os bate-bocas e brigas, que depois terminam em abraços, a religiosidade dos moradores, e o cotidiano.
Dos poucos corrales que restaram, alguns foram recuperados pela prefeitura, após serem declarados bem de interesse cultural. Hoje, quem vive em um coletivo desses já não é necessariamente a camada mais baixa da população e nem famílias numerosas. São artistas, estudantes estrangeiros e jovens descolados que buscam esse tipo de moradia pequena, mas agradável. A obrigatória proximidade faz com que todos se conheçam e cria um ambiente pouco comum nos dias atuais, propício a festas e à amizade. E, no verão, quando é impossível dormir de tanto calor, o pátio comum, com suas enormes fontes e árvores, é lugar de refresco e conversas.
Embora não sejam “visitáveis” por turistas, existe a opção de se hospedar em um corral. Custam o preço de um hotel simples e são mais charmosos. Há anúncios na internet para estância de curta temporada. A pedagoga Paloma Cano, 35, é de Granada e mora em Sevilha desde 2009. Há pouco mais de um ano, mudou-se para o Corral del Conde, um dos mais míticos da cidade. Não pretende sair tão logo. “Cada vez que eu abro o portão e me deparo com o pátio, agradeço e digo para mim mesma: bem-vinda à república independente da sua casa. Aqui, é impossível não ser feliz”, diz, com um sorriso no rosto.
RICARDO VIEL, jornalista, atualmente radicado em Portugal, colabora com publicações brasileiras, entre entre as quais os jornais Valor Econômico e O Globo e as revistas Piauí e Bravo!.
TÉO PITELLA, fotógrafo.