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Oratório: Proteção para a casa e contra a Inquisição

Peça do mobiliário religioso doméstico, que chegou ao Brasil com os portugueses, tinha a função inicial de evidenciar a adesão ao catolicismo, mas, com o tempo, ganhou o apreço dos devotos

TEXTO DANIELLE ROMANI
FOTOS ANA ARAÚJO

01 de Junho de 2013

a peça em estilo dom João v, com entalhes e douramento, tem alta cotação no antiquariato

a peça em estilo dom João v, com entalhes e douramento, tem alta cotação no antiquariato

Ana Araújo

Mobiliário atualmente em desuso, restrito a colecionadores, museus, casas-grandes e ermidas de antigos engenhos, os oratórios eram peças de destaque na maioria das residências brasileiras. Símbolos de proteção e reverência aos santos católicos, consistiam-se em elemento obrigatório nas moradias do Brasil colonial e imperial.

“A partir do final do século 15, toda casa cristã que se prezasse tinha que ter o seu”, afirma Reinaldo Carneiro Leão, pesquisador em História e Patrimônio. A presença do mobiliário, entretanto, não se devia à mera devoção, mas à necessidade de ostentar obediência ao catolicismo. “Uma fé ‘extremada’, provocada pelo temor de represálias por parte dos inquisidores espanhóis e portugueses”, diz Reinaldo.

A criação dos oratórios data da Idade Média, quando essa produção era usufruto apenas de reis e nobres, embora seu uso tenha se intensificado e se popularizado no final do século 15, com o recrudescimento da Inquisição na Península Ibérica. Em 1496, por ordem do rei D. Manuel, todos os judeus e mouros que não se converteram ao catolicismo foram obrigados a deixar Portugal. O monarca português agiu pressionado pelos reis espanhóis, radicais católicos, que lhe cobraram medidas repressivas aos “hereges”.

Nesse período, diante do rigor e das penalidades da Santa Sé, os fiéis começaram, por uma questão de segurança pessoal, a ter que ostentar sua religiosidade e sua adesão ao catolicismo. Além de frequentar a igreja, tinham também que ter um exercício religioso no âmbito privado, portanto, nada melhor do que um oratório em casa. Dessa forma podiam demonstrar o quanto eram devotos. “Foi um período em que os cidadãos professavam suas religiosidades com um forte, e necessário, cunho de exibicionismo”, observa Reinaldo.


Com características do início do Barroco, oratório destaca-se pelo rico entalhe e variação cromática

O que nasceu como uma imposição, com o tempo, virou um hábito religioso, mas também decorativo. Os oratórios se transformaram em acessórios imprescindíveis em qualquer residência, tanto nas abastadas quanto nas populares. Em Portugal, décadas depois, todas as casas possuíam o mobiliário que, dependendo da posição social do dono, podiam ser simples ou bem-elaborados.

MANEIRISMO
Com o descobrimento do Brasil e a necessidade de colonizar o território, a partir de 1530, alguns portugueses se deslocaram com suas famílias para o país recém-conquistado. “Quase 100% dos portugueses que migraram para Pernambuco no século 16 vieram por necessidade, e tinham como origem o Minho, Trás-os-Montes, Porto e as vizinhanças do Douro. Regiões essencialmente agrárias, elas perderam seu poder político depois que os mouros as atacaram, obrigando o deslocamento da então capital Guimarães para Lisboa, à beira-mar. Com a decadência do Norte luso, o Brasil mostrava-se como uma tábua de salvação para essas famílias, que haviam perdido quase tudo, e precisavam recomeçar a vida”, afirma Reinaldo.

A maioria dos imigrantes era formada por homens. Mas, entre as levas de varões que aportavam em terras brasileiras, diversas mulheres – esposas, irmãs, mães – vinham junto para cuidar das tarefas caseiras e viver no novo continente, uma vez que não teriam como subsistir em Portugal.

“A mulher, especialmente, trazia seu oratoriozinho, que seria instalado na nova casa. Por isso, pode-se dizer que, até o século 17, quase todo oratório encontrado no Brasil era produzido e trazido de terras lusitanas, uma vez que inexistia quem os preparasse por aqui”, aponta o pesquisador.


Pequenos e ideais para serem carregados em deslocamentos, os oratórios mineiro e pernambucano, ambos do século 18, eram usados pelos viajantes



Os exemplares dessa época, segundo Reinaldo, tinham feições maneiristas ou jesuíticas, retilíneas, no mesmo estilo adotado na construção dos ornamentos das igrejas do período.

“Boas mostras disso estão na Igreja de São João Batista dos Militares de Olinda e na Capela do antigo Seminário de Olinda, esta última construída pelo irmão jesuíta Francisco Dias.” Os jesuítas, portanto, foram responsáveis pela feitura ou pela ordem de construção das primeiras peças e monumentos sacros em Pernambuco

Nesse período, o uso dos oratórios já estava arraigado e se tornara um hábito cultural caro às famílias, que passaram a se apegar ao mobiliário, a idolatrar uma divindade católica, eleita padroeira e protetora de todos os membros da casa. As virgens, em especial, eram muito cultuadas.

Para os desbravadores de uma terra desconhecida e inóspita, a proteção de Nossa Senhora da Misericórdia, que acudia quem tinha ferimentos ou estava mal; ou de nossa Senhora da Soledade, para os que se encontravam sozinhos, eram mais do que apreciadas e recomendadas. Eram consolo e esperança numa terra vasta e a milhares de quilômetros da civilização.

BARROCO E ROCOCÓ
No final do século 17, início do 18, a primeira geração de artífices locais já estava formada. “Nesse período, a confecção de oratórios era, normalmente, em madeiras tipo o cedro, mais fáceis de trabalhar, mais leves e que não atraiam bichos. Podiam ser transportadas facilmente. Inclusive, porque – por serem de fácil manuseio – permitiam a confecção dos oratórios de viagens, visto que muitos precisavam se deslocar pelos interiores e sertões adentro, e desejavam ter a proteção do seu santo ou da Virgem”, explica Reinaldo. Ele observa que, antes desse período, tanto os santos quanto as peças sacras brasileiras ou portuguesas, em sua grande maioria, eram produzidas em argila ou barro.

Na primeira metade do século 18, uma mudança no formato e feitio das peças foi verificada. Com o advento do Barroco, os oratórios ganharam maior rebuscamento, com pinturas a têmpera, revestimento em jacarandá e adereços sofisticados e elaborados, típicos do estilo. “Passou-se, também, a utilizar bastante ouro e douramento nas peças, pois havia grande facilidade de obter o minério no período.”

A partir da segunda metade do século 18, com o Rococó, o rebuscamento chegou ao ponto máximo. “O exagero era total, as peças tinham muitos detalhamentos, bastante douramento e pintura a óleo”, ensina Reinaldo.

O museólogo Fernando Ponce de Leon, especialista em História da Arte – e assessor do restauro de várias peças sacras pernambucanas –, conta que, para confeccionar essas obras-primas da marcenaria e do entalhe, era necessário contar com vários profissionais.


José dos Santos, o Zé Santeiro, reuniu, ao longo das últimas décadas, mais de 300 oratórios de vários estilos e séculos

“O marceneiro de móveis podia fazer a caixa dos oratórios, mas um entalhador também seria necessário para a realização dos ornatos e um terceiro profissional, o pintor-dourador, poderia ser o responsável pelo douramento das peças mais elaboradas e comuns no período Barroco e, principalmente, no Rococó”, explica Ponce de Leon. Ele lembra que a habilidade desses profissionais não se resumiu aos oratórios. “As sacristias das igrejas recifenses e olindenses são verdadeiros museus de marcenaria e do mobiliário religioso.”

As peças desses dois períodos são denominadas, respectivamente, estilo D. João V e D. José e são as mais valiosas do mercado. O estilo dona Maria (a “Rainha Louca”) marcou o retorno à simplicidade, o início do Arcadismo, mas só vigorou no início do século 19, com a chegada da família real ao Brasil. O estilo seguinte, o D. João VI, é ainda mais simples e reflete a disseminação do neoclássico na arquitetura e na decoração.

Chama a atenção, principalmente na segunda metade dos anos 1800, a confecção do mobiliário em um novo formato: chamados por alguns de santuário, eles passam a ostentar, ao invés de portas de madeiras, vitrines e estilo menos rebuscado. Nítida influência da vidraçaria inglesa em território nacional.

IMAGINÁRIA
A pintura vista nas peças é outro aspecto fundamental para entendê-las. “Geralmente, ela vai ter uma relação com a iconografia da imagem central. É como se você entrasse numa igreja carmelita, que contará a história de Nossa Senhora do Carmo; ou franciscana, que tratará da vida de São Francisco nos seus afrescos, azulejos, pinturas, entalhes. Portanto, quando os oratórios mostram desenhos da via-sacra, referem-se ao crucificado; o resplendor diz respeito ao Cristo e as flores, normalmente, estão relacionadas às várias versões de Maria”, diz Pérfide Omena, restauradora responsável pela execução de dezenas de templos recifenses e olindenses.


No século 19, as peças ganharam linhas mais retas e vidros,
novidade importada dos ingleses

Nos oratórios populares, afirma Pérfide, isso é menos claro; às vezes, eles estão vinculados apenas aos elementos estéticos de um determinado período. “Nesses casos, podem ser vistos desenhos que refletem um estilo, ou um tipo de construção, ou símbolos recorrentes do período. Mas, nos eruditos, é certo que há um ligação com a iconografia”, ressalta.

Nas casas de engenhos, nos sobrados e residências recifenses e olindenses, os oratórios tinham lugar reservado: eram guardados nos quartos de dormir ou em salas próprias, usadas para meditação, oração, realização de novenas e terços. Eram espaços de reflexão das famílias e de seus convidados.

Eles consistiam em móveis de uso popular doméstico, eram utilizados por todos os grupos sociais com residências fixas, mas não ficavam expostos. Estavam na esfera da religiosidade privada, diferente da pública, uma espécie de esfera do sagrado, que recomenda reserva e recato. Portanto, não eram “revelados” e vistos de imediato por quem chegasse na casa”, diz Ponce de Leon.

Tradicionalmente produzidas em grandes dimensões – os tamanhos médios estão em torno de 100cm de comprimento x 50cm de largura –, essas peças tornaram-se inadequadas às residências atuais, em geral, apartamentos que não possuem espaço para abrigá-las.


Peça do século 18 diferencia-se pela exuberância dos relevos e entalhes

“Os oratórios eram muito comuns até a década de 1950, quando eram considerados relíquias familiares, passavam de mão em mão, e se adaptavam bem ao tamanho das casas. Hoje, com residências diminutas, poucos puderam mantê-los. Até porque eram usados de forma suntuosa, condizente com os vastos aposentos. Eram colocados em cima de uma cômoda, que muitas vezes suportava uma papeleira, que por sua vez, apoiava o oratório. O conjunto todo demandava espaço. Quem o tem hoje?”, questiona Fernando, explicando um motivo de poucas residências na atualidade manterem oratórios.

ZÉ SANTEIRO
A redução do espaço de casas e apartamentos favoreceu o antiquário José dos Santos, que, com a dispensa de várias dessas peças, se tornou um dos maiores colecionadores de exemplares do país. Na sua residência, no bairro recifense das Graças, há centenas de oratórios de vários períodos e estilos. “Acho que esta é a maior coleção individual do país, com 300 peças”, contabiliza o antiquário, que, hoje aos 83 anos, é mais conhecido como Zé Santeiro. “Maior até do que a do Museu dos Oratórios de Ouro Preto, talvez não em valor, mas em quantidade”, diz ele, que guarda os oratórios junto a outras relíquias: imagens sacras valiosas, pinturas, mobiliário e artefatos recolhidos em antigos engenhos de açúcar.

Instalado em Ouro Preto, Minas Gerais, o Museu do Oratório a que se refere Santeiro foi criado em 1998 e possui 163 peças datadas dos séculos 17, 18 e 19. Todas possuem alto valor histórico e artístico e foram doadas pela colecionadora Ângela Gutierrez. Tecnicamente, é considerada a mais valiosa coleção nacional.

“Minha coleção vai do século 17 ao 20”, pontua o colecionador, que somente gostaria de repassar o acervo em lote único, para um comprador que a salvaguardasse. Há anos tenta vender o conjunto (que não está no catálogo do seu antiquário, no Bairro da Madalena) para uma instituição pública ou privada, a fim de que seja exibido em museu.


O Museu do Oratório, em Ouro Preto (MG), reúne a mais valiosa coleção nacional, com 163 peças raras

Em relação ao acervo, diz que quase tudo foi adquirido de pessoas que queriam se desfazer dos móveis herdados, que estavam em apuros financeiros ou que não tinham mais espaço para guardar peças de grandes proporções. “A maioria foi adquirida de parentes de pessoas idosas que morreram. Uma lástima, pois esse pessoal mais jovem não tem mais noção da importância histórica das peças, não tem mais sentimento, não dá valor a obras-primas que contam nossa história sacra, artística e social”, lamenta Santeiro, que trabalha em parceria com a mulher, Nadja Pena.

Entre suas peças, a mais valiosa é um oratório de madeira policromada e dourada, com desenhos de passagens da via-sacra nas portas, contendo um esplendor e um riquíssimo crucificado. Datada do século 18, e produzida em Pernambuco no estilo D. João V, a peça foi mostrada a especialistas, que a classificaram como uma das mais belas entre as relíquias do período. Ponce de Leon a descreve da seguinte forma: “É um oratório no estilo rocaille (rococó), com destaque para o frontão, recorte e entalhe ricamente trabalhados. A pintura elaborada e o douramento demonstram tratar-se de uma peça erudita, cujas origens remontam ao século 18”.

Na coleção de Zé Santeiro, várias pinturas de origem popular, ou primitivas, chamam a atenção. A mais antiga é um oratório em formato de ermida (espécie de capela encontrada nos engenhos), que tem as laterais retas e lisas (propícias ao encaixe nos cômodos). Trabalhada em cedro, bem no estilo dos oratórios produzidos pelos primeiros artífices brasileiros, data do final do século 17. “Deve ter sido uma das primeiras produzidas por aqui”, supõe o antiquário.

O motivo que o levou a reunir o mobiliário deveu-se à paixão que nutre pelos objetos do passado. E, principalmente, pela expressividade dessas peças, que se reportam ao sagrado, à fé, à devoção de tantos brasileiros. “Os oratórios me agradam por vários motivos. Primeiro, porque são peças em que eram guardadas as imagens sagradas. Segundo, porque são prova da criatividade e diversidade artística. Terceiro, porque eram locais onde as pessoas rezavam, depositavam esperança e fé. Eles simbolizam a devoção. Como católico, fascinei-me pela sua simbologia, beleza e religiosidade. Espero que um dia estejam expostas, a fim de que sua história possa ser mantida e reconhecida.” 

DANIELL ROMANI, repórter especial da revista Continente.
ANA ARAÚJO, fotógrafa.

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