Antes de seguirmos na análise desse trabalho de Roberta Guimarães, é oportuno considerar as restrições com que se deparam os que pretendem pesquisar ou fotografar manifestações tradicionais de cultura. Como afirma Sylvain Maresca, ao examinar a longa documentação empreendida por Jorma Puranen junto a uma pequena comunidade de lapões, é difícil fugir dos passos da antropologia, quando nos voltamos para temas muito “etnologizados”, como geralmente são os de matriz popular e tradicional. Soma-se ao olhar “etnologizado”, outro, esse mais conhecido do grande público, o da “espetacularização”, muito frequente em coberturas jornalísticas que visam o “extraordinário ordinário” dessas manifestações.
O desafio, nesse caso, para pesquisadores e fotógrafos, é o de levar em consideração os registros anteriormente feitos – conhecendo previamente o tema que se abordará, para ser capaz de trazer aos seus estudos novas contribuições – e evitar o olhar meramente curioso, superficial, deslumbrado, que não raro redunda em clichês e estereótipos. Sobre o assunto religiosidade de matriz africana e o “povo de terreiro”, a que se propôs Roberta Guimarães, pesam ainda por parte desse grupo a desconfiança nos outros (decorrente de preconceitos e perseguições sociais que usualmente sofrem) e as interdições ou segredos comuns a esses cultos.
Isso posto, podemos voltar às questões colocadas no início deste texto, relativas ao entrosamento entre a fotógrafa e seu tema.
CAPTAÇÃO
Roberta Guimarães conta que teve a ideia desse livro em 2010, quando levou alunos de uma oficina que ministrava para fotografar uma caminhada de terreiros. Ali, um filho de Oxum lhe chamou a atenção, não apenas pelas roupas e paramentos, mas, sobretudo, pelo porte, pelo que ela identificou como “o orgulho de fazer parte do candomblé”. Meses depois, esse rapaz posaria para suas lentes, vestindo as roupas femininas e douradas de seu orixá protetor, numa incorporação comum nos terreiros, em que as questões de gênero se apequenam diante das filiações espirituais, apontadas pelo ifá.
A partir dali, ela começou a desfiar o novelo de contatos que a levariam à definição dos terreiros a serem visitados e fotografados, bem como as leituras e pesquisas que lhe dariam suporte teórico sobre o assunto. Quem já viu Roberta em campo, sabe de sua tenacidade e envolvimento. Ainda assim, lembremos, não se tratava de uma iniciada, mas de uma profissional que tinha interesse por um tema com o qual buscava contato mais profundo que a cobertura jornalística. Embora não tenha vivido aquilo que a etnografia chama de “observação participante”, permanecendo como um “outro-que-observa”, no tempo que dedicou ao trabalho, Roberta foi tocada pelo tema que escolheu, ainda que isso tenha se dado de modo desigual (mais ou menos intenso, de acordo com as trocas estabelecidas).
Completa a documentação a realização de retratos de iniciados em estúdio montado nos terreiros. Foto: Reprodução
“Em relação à proximidade com o tema, devo dizer que, após um ano, frequentando os boris (assentamentos de santos) e os xirês (cerimônias) dos terreiros, minha visão do candomblé mudou bastante. Talvez porque a ideia que temos da religião se restrinja às festas públicas, em que os orixás, incorporados nos iniciados, têm contato com o público. Mas fazer parte da comunidade de terreiro requer bem mais do que normalmente é mostrado: a reclusão da iniciação, as privações dadas pelas obrigações, o comparecimento às comemorações que se desenrolam por mais de três horas, os boris, os amassis, as restrições ao uso de certas cores, a ingestão de certas comidas, dependendo do orixá do(a) filho(a) de santo”, relata.
Afora o entendimento trazido pelo contato mais próximo, houve o entrosamento com as pessoas que a receberam nas comunidades, deram-lhe acesso e informações importantes para a realização do ensaio documental. E o entrosamento leva ao comprometimento, que se reflete naquilo que a fotógrafa pode oferecer em troca do tempo que lhe foi dedicado, bem como da exposição daqueles indivíduos diante das câmeras: as imagens captadas. Roberta tem boas histórias para contar dessas trocas, ainda de quando estava no processo de captação, quando muitas vezes foi orientada pelos fotografados sobre como deveria fazê-lo, a despeito do seu domínio técnico. Pois, ali, tratava-se de uma neófita em assuntos de terreiro. Ali, pouco importava sua expertise, mas sua capacidade de ser fiel ao que estava sendo documentado.
Assim é que, enquanto, para ela, vários elementos estavam em jogo (aqueles próprios da linguagem fotográfica – luz, cor, enquadramentos, angulações, movimentos – e os signos religiosos apresentados), para o “povo de terreiro” o que interessavam eram as representações, seus agentes e suas etapas.
EDIÇÃO
Chegamos ao momento da edição das imagens, quando a fotógrafa deve decidir que história enredará e que encadeamento encontrará para isso, contando exclusivamente com imagens como elementos da narrativa. Essa é uma fase do processo em que entram em consideração a ética e a estética, a ordem e a entropia, necessárias para que a “leitura” das imagens seja tão justa quanto bela, tão inteligível quanto intrigante.
Há em O sagrado, a pessoa e o orixá um raciocínio editorial semelhante ao de Martelo, do citado projeto Brincantes da Mata, sobretudo no movimento de dentro para fora, construído pelas imagens. Uma sequência inicial de paisagens e geografias, objetos e ambientes sugerem o que virá, num gesto de achegamento a indícios evidenciados aos poucos.
Se não houvesse se mantido fiel à proposta apresentada às instituições de fomento, provavelmente, esse trabalho documental tivesse encontrado um foco nas “mães d’água”, Oxum e Iemanjá, orixás de grande popularidade nas cidades litorâneas de Pernambuco. Mas, compromisso mantido, o livro registra o sagrado no candomblé, expresso nas pessoas que vivenciam o variado panteão de divindades nos seus numerosos e meticulosos rituais.
Junto à documentação das dinâmicas próprias dos terreiros, tanto as de caráter privado quanto público, Roberta Guimarães também realizou a interpretação pessoal do tema, através do retrato. Nesse caso, a encenação da incorporação do orixá pelo devoto, no gesto de “vestir o santo”, semelhante ao ensaio que havia feito anteriormente com o filho de Oxum, avistado na caminhada de terreiros.
“Tento ligar o objeto a algo mais que a própria realidade, quando é possível. No caso dos orixás, por exemplo, isso aconteceu quando pude ficcionalizar a passagem da pessoa para o orixá, no momento do vestir. Fiz esse processo com alguns iniciados e a relação de intimidade, considerando que é uma série de retratos, deu-se melhor com uns do que com outros. E vejo que isso tem a ver com o dar-se para a atividade. Não é só o fotógrafo que deve colocar toda a sua possibilidade de ‘sedução’, mas o fotografado também precisa entrar no processo”, observa.
O sagrado, a pessoa e o orixá, portanto, é um livro de encontros. Ele não inaugura nem encerra o nosso encontro com esse tema que, embora esteja entre aqueles “etnologizados” e “espetacularizados”, ainda demanda estudos e documentações que o tirem da margem e da incompreensão. Basta que, para isso, assim como fez Roberta Guimarães, encontremos um lugar de aproximação com ele.
ADRIANA DÓRIA MATOS, editora-chefe da revista Continente.