Diário das frutas
TEXTO José Cláudio
01 de Junho de 2013
'A manga', de Tereza Costa Rêgo. Acrílica sobre madeira, 0,8 x 2,2m, 2012
Imagem Reprodução
Sempre que medito na vida, paixão, morte não, ou morte sim de uma primeira Tereza que ainda alcancei, mais ressalta a presença da zona do Recife, no tempo em que ocupava todo o Bairro do Recife, genericamente chamado de Rio Branco, zona que a pintora conhecia através dos relatos de seus irmãos, das farras que praticavam, daquela fronteira da liberdade que ela, adolescente, nunca mais pôde esquecer. Tanto que a essa mesma zona já dedicou uma inteira exposição, quando deu o depoimento a que me refiro. E acredito que, não somente na arte, na vida pessoal, no rompimento com essa Tereza anterior, senhora da sociedade, na decisão de “cair na vida”, tenha pesado a autenticidade e destemor daquelas mulheres, que não tinham nada, nenhum apoio de ninguém, nem material nem moral, lançando-se ao mundo com a cara e a coragem. Ela, que tinha tudo, precisava de coragem ainda maior.
Sumamente gratificante a exposição recente, 12 de março a 26 de maio, no Centro Cultural Correios, ter sido feita exatamente “lá dentro” no front olhando para o Chanteclair, em plena Avenida Marquês de Olinda, uma das artérias daquela cidade fantástica, Rua do Bom Jesus, Rua da Guia, Vigário Tenório, fantástica mesmo em si e não somente nas fantasias de Tereza: Jorge Amado disse não haver nada igual na época, década de 1950, a não ser parecido, a zona de Hong Kong. Não foi só uma exposição da pintora Tereza Costa Rego mas um marco comemorativo, um canto épico ao heroismo das mulheres que ali viveram, ‘derramaram o seu sangue’, como sugerido no quadro A manga.
A decoração transformou as salas num ambiente intimista. Substituindo as sedas, a aspereza e obscuridade dos corredores entre caixotes de frutas acenam para alguma brutalidade ou animalidade quem sabe inerente ao ato carnal, em contraste com a delicadeza dos nus. Também transparece a ideia religiosa do pecado, do fruto proibido, do perigo, da árvore do bem e do mal, através da serpente, ou das serpentes, não sei se às vezes ou sempre mais de uma em cada quadro, a expulsão do Paraíso que o materialismo dialético não conseguiu vencer. Uma aristocracia, um pudor, um recato. Diferente do “como beber um copo d’água”, no dizer dos revolucionários russos da primeira hora, 1917 (vide Estudantes, amor, tscheka e morte de Alia Rachmanova). Há um quadro de corpos, inúmeros corpos entrelaçados, nus, que lembra os quadros de Juízo Final, no tempo da Inquisição, quando, para pintar nus, o pintor precisava justificá-los como representação das almas dos condenados sendo engolidos pelo fogo do Inferno: Tereza, no lugar do fogo, opta pelo recorte de uma grande maçã em vermelho. Se ontem os pecados, o da luxúria entre eles, podiam nos levar às chamas da lenha da fogueira, ainda hoje corre-se o risco de ser queimado pelas chamas da hipocrisia, que a pintora felizmente não teme. Tereza cada dia mais pura, mais conscientemente pura, livre, tanto a pureza estética, do aprimoramento de sua capacidade de pintar, cada vez mais segura, fluente, sem titubeio, como, e do que o mais é reflexo, a pureza moral, seu direito de índia livre do pecado original, seu direito de ser fêmea e de ser bonita e de ser quem ela quiser, e não somente ela, um direito extensivo a todas as mulheres, a ela principalmente, que se bota a si própria como exemplo, porque toda pintura é confessional, sendo toda mulher que ela pinta ela própria em corpo, alma e divindade, digo, bravura. É incrível que esse que deveria ser o primeiro dos nossos direitos, o direito que todos os animais possuem, o homem não: o direito ao próprio corpo e suas funções naturais. Mesmo na Grécia antiga, na época do paganismo, ao contrário do que se pensa, o nu da mulher era aceito apenas no terreno da arte e não no da realidade. Em público, do corpo das mulheres só se viam os calcanhares (vide O nu, Sir Kenneth Clark).
Esse ser erótico, Tereza Costa Rego, nunca devia morrer. Digo em carne e osso. E de fato não morrerá. Porque a essência, o frescor juvenil, no ponto mais alto, está na sua pintura. Seu ânimo. E olhe o que ela já passou! Ninguém merece tanto uma biografia. Biografia, digo pleonasticamente, escrita. Salve Tereza, que não perde, e faz com que não percamos, não reneguemos, a mocidade, nem inventemos subterfúgios para mascarar sua perda.
PS. Escrito este texto, recebi uma visita de surpresa uma tarde: Tereza Costa Rego. A visita era de Lúcia Vieira de Melo, com quem me dou desde a Artespaço. Vieram de quebra Tereza e o cirurgião plástico Eduardo Carvalho, que tem quadro meu. Li, para eles ouvirem, a matéria. Cara a cara, o artiguete me pareceu de uma banalidade total. Felizmente a Continente precisou, por questão de mudança na diagramação, acrescentar um parágrafo. Procurei apurar, nessa acareação, até que ponto a política influíra na decisão de largar o marido de boa família para se unir ao prócer comunista Diógenes Arruda. Respondeu, corajosamente, que tinha sido uma questão de atração física, “de cheiros”, como nunca tinha sentido. Perguntei se já lera o Manifesto Comunista de Marx e Engels. “Claro que li.” Lamentou que num documento recente o PCB, lembrando os grandes do partido, tenha omitido Diógenes. Disse que, em Paris, aproveitando a época da clandestinidade, estudara sociologia na Sorbonne. Escolheu, como tema da tese de conclusão do curso, em vez de movimento dos pintores de Olinda, por exemplo, a situação do proletariado no Brasil. Quando me gabei da minha terceira dentição, dos implantes, declarou nunca ter extraído um dente. Bem que Oswald de Andrade dizia que o problema do homem não é ontológico mas odontológico.
JOSÉ CLÁUDIO, artista plástico.