Antigas padarias, bares, lanchonetes e confeitarias disputam até hoje sua invenção. A clássica Confeitaria Colombo, instalada no centro do Rio de Janeiro, prepara o pitéu desde sua inauguração, há 119 anos. Contudo a origem da coxinha remete a tempos ainda mais remotos. No livro Histórias e receitas – sabor, tradição, arte, vida e magia (2000), a pesquisadora Maria Nadir Galante Cavazin relata que o empanado foi criado no século 19, na Fazenda Morro Azul, no interior de São Paulo. No local, morava um dos filhos da princesa Isabel e do conde D’Eu, uma criança portadora de necessidades especiais que vivia escondida da Corte.
A iguaria pode ser degustada com os mais variados recheios, como a carne de charque.
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Ocorre que o menino era enjoado à mesa e, quando gostava de um alimento, exigia-o repetidas vezes. Certa época, ele só comia coxas de galinha fritas, afirmando bem sua linhagem – há registros de que o rei Dom João VI, por exemplo, devorava seis frangos por dia. Num almoço, dispondo apenas de uma peça da ave, a cozinheira resolveu transformar uma galinha inteira em coxas. Por intuição, desfiou-lhe a carne, dividiu em porções, envolveu em massa, moldou no formato de coxa (ou pera) e depois fritou. O garoto aprovou imediatamente o prato.
Segundo Nadir, quando a imperatriz Tereza Cristina visitou Limeira – oficialmente há dois registros de sua vinda, em agosto de 1876 e outubro de 1886 –, hospedou-se na Fazenda Morro Azul. Ao ver o neto devorar as iguarias, ficou ansiosa para degustá-las. “Provou, gostou e solicitou que o modo de preparo fosse fornecido ao mestre da cozinha imperial. Assim, a humilde receita teve seu tempo de nobreza pelo acesso à corte, e altos salões, graças à especial indicação de sua majestade, a imperatriz Tereza Cristina”, conta a pesquisadora. A história se espalhou. Todavia não passa de uma lenda que Maria Nadir escutou da sogra que, por sua vez, tomara conhecimento por meio de outros familiares.
Ao que tudo indica, a receita da coxinha chegou ao Brasil em 1808, quando a trisavó de Isabel, a rainha Maria I, e seu bisavô, o príncipe regente Dom João, escapando das tropas de Napoleão que invadiram Lisboa, instalaram o governo no Rio de Janeiro. Em Portugal, já era comum encontrar o salgado nos bailes da corte. Provavelmente, foi introduzido no país pelo francês Lucas Rigaud, cozinheiro da rainha Maria.
No ano de 1780, Rigaud lançou, em Lisboa, o livro Cozinheiro moderno ou nova arte de cozinha, reeditado em 1999 pela Colares Editora, de Sintra, Portugal. Nas páginas 107 e 108 da última edição, há uma receita de “coxas de frangas ou galinhas novas”, bastante semelhante à que conhecemos hoje. Desossam-se 10 ou 12 aves, conservando a pele, e se recheia com um “picado fino”. Mergulha-se no bechamel (molho branco) ligado com gemas. Fecha-se com barbante, passa-se em ovos batidos, pão ralado fino e frita-se em banha. A típica comida brasileira, portanto, foi inventada na França.
EM FORMA DE PERAS
A obra L’art de la cuisine française au XIXème siécle – traité des entrées chaudes (Dentu, Librairie, Palais-Royal, Galerie d”Orléans, Paris, 1844), do parisiense Antonin Carême, traz nas páginas 268, 269 e 270 a receita do croquette de poulet (croquete de frango) e já aconselha moldá-la en forme de poires (em forma de peras).
No Brasil, contudo, ela sofreu modificações, sendo acrescida do nosso tempero e envolta em massa de batata ou macaxeira e trigo, para depois ser frita no óleo. Isso se deu, especialmente, no século 20, durante o período da industrialização de São Paulo, quando a coxinha foi resgatada para alimentar os empregados das fábricas.
Hoje, existem basicamente três tipos do salgado: a creme, a comum e a villeroy. A primeira é a mais tradicional, mantém-se a coxa inteira, com direito a ossinho. A comum traz a carne desfiada ou picada recheando a massa. A villeroy é servida espetada num palito e, ao contrário das outras duas, não constitui uma refeição – é entrada ou petisco. Dentre esses tipos, porém, há subtipos. Os recheios há muito que ultrapassaram o frango e chegaram a variantes como camarão e carne de charque (ou seca), além de opções veganas, que vão de soja e palmito até jaca desfiada. Nenhuma versão, porém, anda tão em voga quanto a goumert – que, por pouco, não descansa em estufas nas casas de alta gastronomia.
A Villeroy, servida espetada num palito, funciona como entrada ou petisco. Foto: Divulgação
Nos restaurantes grã-finos, o salgado dos dorme-sujos retorna às origens monárquicas e ganha status de chique – já que elegante é o que é feito com apreço, não o que é caro. De modo que nada de tamanhos absurdos e catupiry à base de maisena, acumulado no final.
É impossível não notar o requinte de uma receita feita com “frango marinado, temperado com capim-limão e cozido em baixíssima temperatura por horas até a carne ficar no ponto. A seguir, adiciona-se uma colher de queijo cremoso de boa qualidade. A mistura, então, é envolvida em uma massa cremosa, cuja técnica francesa de preparo chama-se pâte à choux, similar à usada para fazer profiteroles”. Assim é descrita a coxinha do restaurante Irajá, no Rio. Em São Paulo, o Las Chicas combina massa de mandioca a queijo roquefort; o Rothko usa confit de pato na preparação.
No Recife, o quitute também ganhou ares refinados. No Real Botequim, em Casa Forte, 500 coxinhas são servidas por mês, em versão creme, com diversos recheios. O Bazza, no Parnamirim, conta com coxinha de massa de batata temperada, recheada com frango defumado desfiado e cream cheese, em tamanho normal e villeroy. No Bistrô & Boteco, em Boa Viagem, ela é caseira, frita em imersão. No cardápio do estabelecimento, o destaque vai para a coxinha de massa de jerimum e recheio de charque. Ainda na Zona Sul, o Boteco Maxime oferece coxinha de caranguejo, com recheio do filé do crustáceo desfiado e apresentação com a pata do animal no lugar do osso da galinha. De volta à Zona Norte, em Casa Amarela, o Boteco do Barão traz o petisco cheio de personalidade, com queijo do reino.
A coxinha lançada na Television não era assim tão elegante. Felizmente, contudo, não chegava a ser daquelas tamanho família, que se encontram no centro da cidade, concorrentes fortes a desbancar do posto a coxinha feita em Rolândia (PR) e dona do título de maior do mundo, com seus 3,5kg. Era, porém, uma típica coxinha brasileira, com seu tom dourado e farinha de rosca dignos de um verão bronzeando-se ao sol de Porto de Galinhas (com perdão pelo trocadilho). Talvez por isso o vocalista, Tom Verlaine, tenha devolvido o acepipe tão delicadamente ao público. Em identidade nacional e memória afetiva não se mexe. Tratemos com carinho nossas madeleines tropicais.
INGRID MELO, jornalista.