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“O teatro tem que imprimir algo na alma”

Jornalista, crítico e pesquisador teatral, Sebastião Milaré fala sobre a obra e o método de formação de atores de Antunes Filho e sobre a situação das artes cênicas hoje no Brasil

TEXTO Pollyanna Diniz

01 de Maio de 2013

Sebastião Milaré

Sebastião Milaré

Foto Bob Sousa/Divulgação

Quem estava no palco era a atriz Cleyde Yáconis. Interpretava Yerma, personagem que dá título à peça de Federico García Lorca. A encenação do Teatro Brasileiro de Comédia (TBC), sob direção de Antunes Filho, deixou um jovem de 16 anos impressionado. Ali, Sebastião Milaré começava a compor a sua compreensão sobre o teatro que, décadas depois, define como “encontro com o sagrado”. O hoje jornalista, crítico e pesquisador ainda iria se deparar muito com aquele diretor: uma figura de jeito peculiar, e um gênio do teatro no Brasil, criador de um método para atores e de encenações que marcaram época, como Macunaíma, de 1978.

Sobre Antunes Filho, escreveria três livros: Antunes Filho e a dimensão utópica, Hierofania – o teatro segundo Antunes Filho e ainda Antunes Filho – poeta em cena, este último o mais recente, elaborado a partir dos registros fotográficos de Emidio Luisi. “Antunes sempre gostou do que eu escrevia, desde que comecei a fazer reportagens sobre o trabalho dele. Construímos um respeito mútuo”, diz.

Se as obras de Milaré sobre Antunes Filho são fundamentais para a história do teatro brasileiro, agora, o pesquisador tem nas mãos um material de dimensão inédita. Por conta da série Teatro e Circunstância, do Sesc TV, Milaré entrevistou mais de 100 grupos de Belém a Porto Alegre, delineando a produção teatral desde a década de 1970. No Recife, conversou com o Teatro de Amadores de Pernambuco, o Coletivo Angu de Teatro, o Mão Molenga Teatro Bonecos, a Companhia Teatro de Seraphim, o grupo Magiluth e ainda com os jornalistas e pesquisadores Leidson Ferraz e Luís Reis. Com todo esse arquivo, vai se dedicar a escrever um livro sobre o teatro brasileiro contemporâneo.

CONTINENTE Quando você viu uma peça de Antunes Filho pela primeira vez?
SEBASTIÃO MILARÉ Aos 16 anos, em 1962, no Teatro Brasileiro de Comédia (TBC), vi Yerma, de García Lorca. Não conhecia Antunes, nem o texto. Ia ver muitas coisas, mas não conhecia as figuras do teatro. Quando vi aquela Yerma, o teatro começou a significar o extraordinário. No dia seguinte, comprei as obras completas de García Lorca, comecei a ler tudo e a acompanhar o que Antunes fazia. Depois, em 1965, ele foi convidado para ser o professor de interpretação do 3º ano da EAD (Escola de Arte Dramática da USP), que era o responsável pela encenação do final do curso. E optou por fazer A falecida, de Nelson Rodrigues. Eu tinha vários amigos dentro da EAD, então acompanhei a montagem. E foi aí que tive os meus primeiros contatos com Antunes. Só bem mais tarde, quando já estava na revista Artes, comecei a fazer matérias sobre o seu teatro. Lembro Peer Gynt, de 1971. Era o grande espetáculo daquele ano e pedi uma entrevista. Quando cheguei ao teatro, Antunes me pegou pelo braço: “Vem cá, vem cá”, e me levou para uma sala. Para a minha surpresa, numa mesa estavam Maria Bonome, que era a figurinista, Laonte Klawa, cenógrafo, Stênio Garcia, que fazia Peer Gynt, Jonas Bloch, Ariclê Perez. E Antunes me disse: “A entrevista tem que ser com todos, porque todos são criadores do espetáculo”. Isso, em 1971, era uma visão bastante avançada do teatro de grupo. Antunes foi o primeiro que fez laboratório no teatro brasileiro, em 1964, com Vereda da salvação.

CONTINENTE E daí para o primeiro livro, Antunes Filho e a dimensão utópica, qual foi o caminho?
SEBASTIÃO MILARÉ Escrevi muitos artigos sobre Antunes. Quando o Centro de Pesquisa Teatral (CPT) já estava instituído dentro do Sesc, e ele tinha esse lugar que possibilitava a continuidade do trabalho, fiz um ensaio sobre o CPT. Percebi que Antunes estava trabalhando um método para ator, embora ele dissesse que não. Falei para Ulysses Cruz, que era assistente dele, que pensava em escrever um livro. Mas Ulysses disse que não falasse nada para ele, porque Antunes tinha medo: “Ele acha que escrever um livro sobre ele é anunciar a morte”. Mas eu não podia fazer uma biografia não autorizada! Fiz um projeto e mostrei a Antunes. E ele fechou comigo! Passei a acompanhar o CPT, a montagem toda de A hora e a vez de Augusto Matraga (1986). Para ir me assegurando de como era o trabalho dele. Os processos do Antunes são sempre demorados e o meu também foi. E fiz Antunes Filho e a dimensão utópica, que foi o primeiro livro, que trata dele até Macunaíma (1978).


Antunes Filho. Foto: Divulgação

CONTINENTE Mas por que até Macunaíma?
SEBASTIÃO MILARÉ Porque ficou cada vez mais claro – e aí o Antunes já começou a admitir – que ele estava constituindo um método para ator, mas estava muito no início, embora já desse resultado em cena. E sabia que tinha que fazer um livro especificamente sobre o CPT e sobre o processo criativo do Antunes lá dentro. Já na introdução do primeiro livro, prometo o segundo, que avança no aspecto da sua obra a partir de Macunaíma, no CPT e dentro do grupo Macunaíma. Era um projeto desde aquela época, mas não sabia que iria demorar tanto! Eu só poderia dar por terminado um livro sobre o método quando ele desse por concluída a sistematização que estava fazendo. Por isso foram quase 20 anos!

CONTINENTE Para Antunes, o ator é a peça fundamental.
SEBASTIÃO MILARÉ Antunes deixa claro que, para fazer teatro, você pode dispensar cenário, luz, figurino, até o texto. Mas sem ator não tem teatro. Antunes fez no Brasil a mesma coisa que outros da geração dele, fora do Brasil, como Jerzy Grotowski e Eugenio Barba. Antunes fazia um trabalho sintonizado com tudo isso. Sempre briguei muito com essa história: “Ah, o Antunes está fazendo Grotowski”. Não está fazendo Grotowski! Ele bebe nas mesmas fontes, porque é da mesma geração, tem a mesma inquietação, o mesmo espírito do tempo o está dominando.

CONTINENTE O que fazer para ser um ator, segundo Antunes Filho?
SEBASTIÃO MILARÉ O ator tem que lutar para terminar com todos os bloqueios, tanto no físico quanto no espírito. Para o corpo, há uma carga extraordinária de exercícios, até que ele fique destravado e obedeça a um comando qualquer que você dê. O corpo não pode ter tensões desnecessárias. Ombros duros acabam com a respiração. Quando o ator consegue chegar a um estado de relaxamento ativo, consegue ter domínio da respiração. E quando há domínio da respiração, ele consegue tudo. Porque, para Antunes, ator é respiração. E, por outro lado, a questão do intelecto, da psique, do espírito. O ator tem que ser desbloqueado. Temos muitas travas culturais, preconceitos. O ator não pode ser assim; é a mesma coisa de ter travas no corpo, a trava de um pensamento condicionado a certas manias. Acaba com a possibilidade de criação. Então, para isso, é preciso muita leitura, conversa e um permanente trabalho de autoconhecimento. O processo do Antunes está atrelado ao processo de individuação, como prega Jung.

CONTINENTE Quais os paralelos entre Nelson Rodrigues e Antunes? Como foi a relação entre os dois?
SEBASTIÃO MILARÉ Quando falamos em Nelson, estamos falando do maior poeta dramático de língua portuguesa desde Gil Vicente. Ele está à altura dos grandes clássicos, de Shakespeare, de Ibsen. O que Shakespeare fez foi contar seu momento, e construir toda uma visão de mundo a partir disso. Nelson fez a mesma coisa e num nível poético de extraordinária beleza, força e vigor. A relação de Antunes com Nelson foi importante para os dois, e transformadora. Porque, quando Antunes fez, em 1981, Nelson Rodrigues – o eterno retorno, mudou a visão das pessoas em relação a Nelson Rodrigues. Infelizmente, Nelson não chegou a ver o espetáculo: morreu seis meses antes da estreia. Mas a assistente de Antunes na época, a Leonor Chaves, ia para o Rio e era recebida por Nelson, para consultá-lo sobre questões. Uma pena que ele tenha morrido antes da estreia.


Cena de Nelson Rodrigues - O eterno retorno, dirigida por Antunes Filho.
Foto: Emidio Luis/Divulgação

CONTINENTE O teatro é um processo histórico. Mas, mesmo sem o distanciamento exigido, você consegue delimitar em que momento estamos e que caminhos trilharemos?
SEBASTIÃO MILARÉ Acho que o teatro brasileiro tem maturidade e vitalidade, de Norte a Sul. Não estou falando do eixo Rio-São Paulo. O que se percebe é que existem projetos artísticos audaciosos e uma preocupação e uma consciência dos criadores de que, para chegar a realizar aquela ideia, é preciso se preparar intelectualmente, pesquisar muito, a cabeça tem que estar aberta.

CONTINENTE Como você enxerga o teatro feito no Recife?
SEBASTIÃO MILARÉ O Recife tem uma tradição de teatro que tem que ser respeitada. Acho sacanagem contar a história do teatro moderno brasileiro sem apontar o Recife: ficar naquela história que só cita Os comediantes e depois o TBC. Acho que tem que entrar nesse processo o Grupo Gente Nossa, Valdemar de Oliveira e o Teatro de Amadores de Pernambuco, Hermilo Borba Filho. Hermilo não estava importando o que estava acontecendo em São Paulo, mas traz a consciência: temos que trabalhar e transformar nossa realidade em códigos artísticos dentro do teatro. Isso tudo faz parte do processo de modernização do teatro brasileiro e o Recife participou de maneira intensa, com figuras importantes. O que percebo é que esse vigor e essa herança dão frutos hoje. Isso passa pela Companhia Teatro de Seraphim até o Magiluth, que é um grupo de uma capacidade de percepção teatral muito grande. Quando o Magiluth faz Um torto e Aquilo que meu olhar guardou para você, enxergo experiências cênicas importantes. E, ao mesmo tempo, eles têm a coragem de fazer O canto de Gregório (texto já montado por Antunes), com aquela capacidade artesanal, mostrando que sabem realmente fazer teatro. No repertório, tem ainda Viúva, porém honesta; e fazem como se fosse uma extensão do próprio Nelson; têm as mesmas condições de Nelson Rodrigues, porque são da mesma terra, têm as mesmas heranças culturais.

CONTINENTE Uma discussão recorrente: como formar plateia no Brasil?
SEBASTIÃO MILARÉ O teatro é o ator, antes de tudo, mas sem a plateia ele não existe. Porém é complicado formar plateia. A periferia de São Paulo tem vários grupos de um nível extraordinário, de um trabalho estético de importância: Brava, Dolores Boca Aberta, Clariô. O trabalho estético deles nasce do convívio com a comunidade onde atuam. Não é a coisa paternalista: “Ah, coitadinhos, nunca viram teatro”, mas, sim: “Esta é uma realidade que nos interessa como matéria-prima para a nossa criação e não para fazer discursos panfletários. Porque o drama humano está ali e isso é o que interessa”. Mas é preciso conhecer profundamente esse drama para conseguir transformá-lo em códigos artísticos em cena. Nesses grupos todos, quando vou para a periferia para ver um trabalho deles, percebo que a receptividade do público é extraordinária. Não lhes falta público jamais. São códigos que eles criaram. Não é uma coisa fácil, que você vê na televisão. É uma obra de arte! Mas tem um diálogo maravilhoso e aquele público está entregue. Isso é formação de plateia. Não é criar evento. Não é aquela plateia que vai ver espetáculo e depois come pizza. Essa plateia não me interessa. Como não me interessa quem faz teatro para isso. Acho que teatro é uma coisa muito mais séria. Aquelas “comediazinhas”...você ri, ri, depois vai comer pizza. E esquece, não leva nada daquilo. O teatro tem que imprimir algo na alma do espectador.

POLLYANNA DINIZ, jornalista e organizadora do blog Satisfeita Yolanda?.

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