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Por uma explicação naturalista da arte

O filósofo Denis Laurence Dutton defende que os critérios para as preferências estéticas não podem ser vistos apenas como frutos de “construções sociais”

TEXTO Eduardo Cesar Maia

01 de Maio de 2013

Para o filósofo, nosso gosto por fotos ou pinturas de natureza remonta à vida pré-histórica

Para o filósofo, nosso gosto por fotos ou pinturas de natureza remonta à vida pré-histórica

Foto Reprodução

Considerar que uma determinada perspectiva teórica é tão completa e objetiva que pode prescindir de todas as demais talvez seja a presunção intelectual mais perniciosa às investigações nos campos da teoria da arte e da estética. No complexo e confuso âmbito das ciências humanas, no qual tais disciplinas se inserem, é comum o aparecimento intermitente de vozes apregoando alguma nova forma de monismo teórico como panaceia capaz de elevar o conhecimento humanista ao status de verdadeira “ciência”, nos moldes das exatas e naturais.

Um dos méritos do filósofo norte-americano Denis Laurence Dutton (1944-2010), autor de The art instinct, é justamente o de não cair em disjunções absolutas ou reducionismos facilitadores, no momento de analisar um tema tão complexo. O filósofo aceita de antemão que sua perspectiva – fruto da simbiose entre seus estudos sobre filosofia da arte e seus conhecimentos da ciência evolutiva de base darwiniana – fornece boas explicações para alguns fenômenos ligados ao mundo da arte e da estética, mas não é capaz de esgotar o tema e muito menos suas implicações em outras áreas da vida humana.

Em um ponto, no entanto, o autor é taxativo: “Nenhuma filosofia da arte pode prosperar, se ignora as fontes naturais da arte ou seu caráter cultural”. Para Dutton, a origem de certas preferências estéticas e artísticas pode ser localizada em nossa história evolutiva, em traços que foram se conformando através da seleção natural e que passaram a ser inatos ao homem. A própria necessidade criativa de realização de obras de caráter artístico já seria, em si, um “universal humano” que, apesar de manifestar-se de forma variada em lugares, épocas e civilizações diferentes, aparece, de alguma maneira, em todas as culturas humanas, pois a arte, assim como a linguagem, é resultado de uma estrutura psicológica – modelada pelo processo evolutivo – comum a todos os seres humanos.

Após as polêmicas suscitadas pela publicação de A origem das espécies, o próprio Charles Darwin já havia passado a refletir sobre outras implicações que sua teoria poderia ter na concepção do ser humano, não só como parte do reino natural. Nessa obra, o cientista ampliou o alcance de suas ideias, a partir da afirmação de que a evolução não só interferiu na estrutura biológica do homem, mas também em certas características de ordem mais psicológica e cultural, como no desenvolvimento da comunicação, dos valores morais e, inclusive, das formas de arte.

De fato, as teses darwinianas já foram ampla e fecundamente aplicadas por outros investigadores mais recentes a áreas como a Linguística (aparecimento e desenvolvimento da linguagem), a filosofia da mente, a moral, a religião etc. Mas, somente agora, através obra de Denis Dutton, a tentativa darwiniana de uma explicação naturalista da arte é retomada, confrontada, matizada com outras áreas do conhecimento.

Assim, desde o ponto de vista defendido em The art instinct, a fruição artística e os critérios para as preferências estéticas não podem ser explicados simplesmente como frutos de “construções sociais” ou opções meramente ideológicas, como vem defendendo boa parte dos teóricos e críticos acadêmicos desde o século passado até hoje.

O filósofo norte-americano propõe que abandonemos o terreno inerte das “guerras culturais” e busquemos recuperar o lugar central que a beleza, o prazer estético e a perícia técnica já tiveram como baliza dos valores artísticos. Para ele, a valorização do “belo” é uma herança natural comum a todas as culturas, e muitas outras de nossas preferências artísticas também possuem esse caráter universal.


Em seus estudos, o norte-americano Denis Dutton une filosofia da arte e ciência evolutiva de base darwiniana. Foto: Divulgação

No primeiro capítulo da obra, por exemplo, o autor analisa a fascinação de pessoas de diferentes culturas e regiões do planeta pela representação pictórica ou fotográfica de paisagens que conjugam harmonicamente os tons azuis da água e do céu claro com árvores ao fundo (imagem de calendário encontrada no mundo todo), pois isso evocaria a vivência ancestral – pré-histórica – do ambiente das savanas, a partir do qual evoluímos como espécie.

TRANSCULTURAL
Traçando um panorama do pensamento estético, que vai de Platão e Aristóteles até Hume e Kant, e passando por cientistas contemporâneos como Steven Pinker e Joseph Carroll, Dutton tenta resgatar a ideia de que é possível reconhecer uma natureza humana transcultural, definida por características e habilidades naturais da mente, encontradas, pois, em qualquer ser humano. É a partir dessa natureza comum que ele propõe uma concepção também transcultural de arte. Para chegar a essa definição geral, a estratégia do pensador é a de valorizar as formas de manifestações artísticas mais recorrentes, e não os exemplos marginais (os experimentalismos vanguardistas, por exemplo).

Ele reconhece que existem diferenças importantes entre os conceitos de arte dos mais diversos povos, mas defende argutamente que seríamos incapazes de falar que “outros” têm um conceito de arte diferente do nosso, se não compartilhássemos algo desse conceito, ainda que de forma analógica: “Todas as culturas humanas exibem algum modo de conduta expressiva que as tradições europeias identificariam como artística, ainda que isto não signifique que todas as sociedades possuam todas as formas de arte”. Dessa forma, ele se coloca na trincheira oposta à do relativismo cultural e, de maneira sem dúvida curiosa, invoca agora o darwinismo, com a colaboração da filosofia da arte, para propor uma nova versão do universalismo humanista.

Por outra parte, a afirmação de que a arte tem um valor e um caráter adaptativo – e a explicação de seu surgimento e desenvolvimento a partir disso – parecerá imprópria para aqueles que endossam a natureza não utilitária do trabalho artístico como um de seus predicados essenciais.

Afinal, a proposição kantiana de que a contemplação artística é algo “puro e desinteressado” não pode coexistir pacificamente com a noção de que, desde suas origens, a arte respondeu a impulsos adaptativos de nossa espécie e possuía, portanto, um valor claramente instrumental e pragmático. A indagação que persiste, portanto, é a seguinte: será que a aceitação do argumento de Dutton, de que a arte é um produto derivado do processo de evolução da espécie humana, é uma forma de degradá-la como prática cultural?

Polêmicas à parte, The art instinct é uma obra que merece ser lida e debatida dentro e fora da academia, porque propõe um caminho alternativo e profícuo para as investigações contemporâneas no campo da estética e da teoria da arte, ainda quando discordamos de algumas de suas argumentações. 

EDUARDO CESAR MAIA, jornalista, mestre em Filosofi a e doutor em Teoria da Literatura.

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