PRIMEIRA EDIÇÕES
Na primeira edição da Berlinale, em 1951, o principal destaque foi outro clássico de Hitchcock, Rebecca, a mulher inesquecível. Em 2013, ele voltou a ser um dos pontos altos do festival, com a versão restaurada em 3D de Disque M para matar. Luzes, sombras e o senso de humor mórbido do cinema expressionista alemão decididamente marcaram o trabalho de Alfred Hitchcock. No início de carreira, ele trabalhou nos estúdios Babelsberg (Potsdam) e UFA (Berlim), além de ter dirigido seus primeiros filmes em Munique. Décadas depois, ele mesmo confessou, na clássica entrevista concedida a François Truffaut, a forte admiração que nutria por Destino, de Fritz Lang.
A première europeia de Disque M para matar foi apresentada pelo diretor da Warner, Nicholas Varley. Ele disse que somente agora, 60 anos depois, esse clássico foi revelado em todo o seu esplendor. A restauração em digital 4K trouxe de volta as cores originais, nunca alcançadas nos negativos em película. E que, com o 3D, o filme tem condições de ser visto como o idealizado pelo diretor. O recurso, além de tornar Grace Kelly ainda mais linda, restitui o que Hitchcock chamou de visão natural estereoscópica.
Nada mal imaginar uma sessão de M no Cinema São Luiz, o palácio do cinema pernambucano que, em breve, estará equipado com projetor digital 3D. Sessões do tipo vem acontecendo uma vez ao ano, em programação de clássicos promovida pelo festival Janela Internacional de Cinema do Recife, que já exibiu Sérgio Leone, Stanley Kubrick e o próprio Hitchcock (Psicose) em versões restauradas. “Filmes apresentados digitalmente em 2K ou 4K são cópias interessantes e felizes dos filmes originais, apresentados dentro de uma nova estética, que é o digital”, diz Kleber Mendonça Filho, diretor artístico do Janela e um dos responsáveis pela implantação da futura Cinemateca da Fundação Joaquim Nabuco.
“Não há mais como evitar ou ignorar os processos digitais em cinema, seja qual for o estágio de produção, pós-produção e exibição”, diz Kleber. “Se eu tiver escolha, levarei em conta o filme e a sessão para decidir se exibo em 35mm ou DCP. Infelizmente, a escolha está sumindo a cada ano, e cada vez mais a única opção é DCP. Isso me desagrada um pouco. Mesmo assim, há muito mais a festejar do que reclamar.”
Dajendra Roy, curador-chefe do MoMa, também lamenta o ocaso do suporte película. “O 35mm é o melhor formato para preservação de arquivo. No entanto, a Fuji anunciou o fim da produção de celuloide”, disse, durante palestra no Festival de Berlim.
Diretor do arquivo da Deutsche Kinemathek (que este ano completa 50 anos), Martin Koerber diz que a restauração de filmes tem a função de resgatar a experiência cinematográfica na tela. “Ali é que acontece o cinema. Assim, não importa se o filme está sendo projetado digital ou mecanicamente. É preciso reaver um estado no qual se torne possível desfrutar novamente do filme como uma obra de arte.”
WEIMAR
Para a sessão retrospectiva O toque de Weimar, parte da Berlinale Classics, oito títulos foram restaurados digitalmente. O programa selecionou 31 filmes influenciados pelo cinema alemão do período 1918-33 (como Casablanca, Como era verde o meu vale, A marca da maldade e Quanto mais quente melhor) ou realizados por artistas alemães exilados na Inglaterra e nos Estados Unidos, expulsos pelo nazismo.
Na Berlinale Classics do ano que vem, será exibida cópia restaurada de O gabinete do Dr. Caligari. Foto: Reprodução
É o caso do diretor húngaro André De Toth, que, em 1942, radicou-se em Los Angeles, onde realizou o drama de guerra None shall escape, de 1944, em que oficiais nazistas são julgados por uma espécie de tribuna dos povos livres. O filme tem várias cenas fortes, sendo a maior a de um rabino que convoca os judeus, dentro do trem da morte, a se rebelar. E antecipa as atividades do Tribunal de Nuremberg, que ocorreu entre 1945-46.
Realizado na Hungria e Áustria, logo após o fim da República de Weimar, o musical Peter (1934) traz uma garota em roupas de rapaz que usa a nova identidade para arranjar um emprego e sustentar seu avô. Lição de otimismo durante a recessão do pós-guerra, Peter reflete a esperança do diretor Hermann Kosterlitz em voltar para a Alemanha. No entanto, a primeira exibição pública do filme em solo alemão se deu em 2013. O diretor se mudou para Hollywood e passou a se chamar Henry Koster.
Alocado em programa especial, O estudante de Praga retorna completamente restaurado. Rodado em 1913, no formato deutsche bioscop (adequado para a exibição volante), o trabalho de reconstrução mobilizou acervos de três países: Alemanha, Japão e Estados Unidos. Nenhuma cópia estava em condições de ser assistida integralmente. Até então, contava-se com uma versão alemã, restaurada no fim dos anos 1980. A sessão de lançamento teve acompanhamento musical da Orquestra Jakobsplatz de Munique, que interpretou a peça originalmente composta por Josef Weiss, discípulo de Lizst, que, com a peça, compôs uma das primeiras músicas originais para cinema.
Realizado durante o período da Alemanha Imperial (Reino da Prússia), O estudante de Praga trouxe a primeira representação visual para um poderoso mito local, o Doppelganger. Antes mesmo do Golem, cujo primeiro filme foi feito em 1915, tendo como protagonista Paul Wegener, o mesmo ator que interpreta Balduin em O estudante de Praga. Disposto a tudo para entrar na alta sociedade local, Balduin vende seu reflexo para um negociante. A cena em que seu duplo sai do espelho para a sala, e da sala para a rua, é impressionante.
Além de efeitos e truques óticos, encontrados em outros filmes da época, O estudante de Praga utiliza recursos narrativos incomuns até então. Após a exibição, em conversa com a imprensa, responsáveis pela restauração apontaram o filme de Hann Heinz Ewers como um dos precursores do cinema moderno, por utilizar recursos narrativos como a ação em diferentes pontos do mesmo quadro, o uso de perspectiva, além da criação de um tema musical para cada personagem. A ideia, diz Stefan Drössler, diretor do Museu do Filme de Munique e coordenador da restauração do filme, era alçar o cinema a algo mais do que um entretenimento submisso ao teatro, a dança ou ao circo, para se tornar uma arte independente.
“Ele é como o avô dos filmes modernos”, diz Drössler, que ainda ressalta que a produção teve a sorte de contar com Guido Seeber, fotógrafo inventor do bioscópio e posteriormente colaborador de Pabst e Murnau. “Havia a consciência de que algo novo estava sendo feito, no sentido de explorar possibilidades que só o cinema poderia alcançar. Os truques não eram novidade, naquela época, Méliès já era o grande mágico do cinema. Mas a complexidade psicológica (o doppelganger motiv), aliada a recursos técnicos, nos dá a sensação de assistir a um filme como O Golem ou Nosferatu que viriam anos depois”.
ANDRÉ DIB, jornalista e crítico de cinema.