FOTOS LEO CALDAS
01 de Maio de 2013
Foto Léo Caldas
Qualquer sertanejo sabe que o bode, por sua resistência inata, adapta-se melhor que os demais tipos de gado às condições adversas do semiárido nordestino: ele suporta mais a escassez de pasto e o calor e secura intensos; é mais acessível aos pequenos criadores, pelo preço de sua cabeça ser menor do que a do gado bovino; e requer poucos cuidados para a manutenção do rebanho. Esse fatores são apenas alguns dos que esclarecem como a carne caprina se disseminou por todo o Nordeste, incluindo as capitais, e passou a fazer parte da cozinha regional.
Mas já se foi o tempo em que ela só era comida sob a forma de buchada, assado ou guisado, ao menos em cidades como Petrolina, onde a prefeitura municipal destinou uma área do tamanho de um campo de futebol para restaurantes especializados em culinária caprina. Localizado a cerca de 10 minutos do centro da cidade, numa viagem de táxi que não custa mais do que R$ 15,00, o Bodódromo tornou-se, de imediato, um ponto de atração para turistas e moradores petrolinenses, e alberga 10 restaurantes, área para shows e barracas de artesanato.
A procura pela carne de bode, desde então, cresceu ao ponto de não poder mais ser atendida pelos criadores. Daí foi preciso apelar para os carneiros, que se mostraram ótimos suplentes. “Antes se comia realmente bode, porque a demanda era pequena. Depois, acabamos até vendo que o carneiro era melhor para churrasco”, explica Isaías Mororó, dono do Bode Assado do Isaías e presidente da associação que congrega os comerciantes do Bodódromo, inaugurado em 2000.
Hoje é possível comer carne caprina em pratos mais elaborados
O piauiense radicado em Petrolina desde 1987, que trabalhou como cobrador de ônibus e funcionário de supermercado antes de entrar no setor gastronômico, detalha que a maior parte da carne fornecida aos restaurantes do Bodódromo vem de Dormentes – cidade vizinha a Petrolina e detentora do maior rebanho ovino de Pernambuco – e que 90% do consumo no centro de alimentação passou a ser de carneiro.
As diferenças entre bodes e carneiros, dentro e fora da panela, não são poucas, por mais que ambos sejam apreciados indistintamente e possam ser preparados de maneira similar. Isaías enumera algumas: “O bode para churrasco tem de ser novo, de uns oito meses, enquanto o carneiro pode ser mais velho. Mas quando é para preparar guisados, o bode é melhor que o carneiro, sai mais cheiroso. Outra coisa: o carneiro dá duas crias por ano, enquanto as cabras só estão dando uma, e bode é ruim de ser criado em cercado, como se faz com o carneiro. Ele só presta em lugar solto”.
Antes, nos restaurantes do Bodódromo, só se servia carne assada ou guisada com as guarnições; depois, outras opções de preparo foram sendo inventadas ou incrementadas. No Bode Assado do Isaías, já existem 28 pratos diferentes à base de carneiro ou de bode, que incluem risoto, fondue, pizza e estrogonofe, por exemplo. Alguns, como o medalhão de carneiro com bacon, servido com batatas sauté e arroz, incorporam em seu molho vinhos e uvas da própria região do São Francisco, vendidos também no local.
Dentre os cuidados necessários à conservação dos cortes de bode, Isaías Mororó explica que ela não pode ser congelada, apenas resfriada: “Se congelar, perde a qualidade”, diz. Assim, após a desossagem, o bode é colocado na salmoura; transferido para a estufa, depois de duas ou três horas; e, finalmente, posto num freezer com temperatura entre cinco e 10 graus. Vale lembrar, por fim, que outra das grandes virtudes da carne caprina está em seu baixíssimo teor de gordura. Ou seja, podemos comê-la até nos esbaldarmos (a não ser que ela sirva de tira-gosto a uma boa cerveja).
Isaías Mororó, dono do Bode Assado do Isaías é presidente da associação que congrega os comerciantes do Bodódromo
O mesmo se aplica ao leite de cabra, o qual possui menos colesterol que o de vaca e agrega mais fósforo, potássio e cálcio que o outro. O leite caprino, ao contrário do bovino, não precisa ser homogeneizado (isto é, misturado nele mesmo para a gordura ser melhor distribuída) e é digerido mais rapidamente. Nos países árabes e entre os alérgicos ao leite de vaca, ele é o predileto.
BANQUETES MAÇÔNICOS
Uma das curiosidades que envolvem o consumo da carne de bode no Nordeste é a de ela ser especialmente preferida por maçons, nos costumeiros banquetes que organizam para se confraternizar ou com a participação de suas famílias. Como a maioria das lojas maçônicas se reúne nos dias úteis à noite, é de se admitir que um jantar à base de bode guisado e guarnição completa (junto com galeto assado, às vezes, como constatamos) pode parecer um tanto pesado para o estômago, mas o simbolismo que envolve essa prática a justifica.
Estatuetas e adesivos de carro de bodes vestidos com as insígnias maçônicas reforçam o tratamento que os maçons usam entre si, a exemplo de quando chamam os aprendizes, membros mais novos da instituição, de “bode novo”. Ou de quando brincam ao falarem que, nas cerimônias de iniciação, existem provas a serem cumpridas e uma delas seria domar e montar um bode trancado numa sala fechada. Tudo lenda para confundir os ouvidos curiosos. Esse tratamento, porém, só é empregado no Brasil; em conversa com maçons que moraram em outros países, eles afirmaram não encontrar ninguém que chamasse o outro por goat ou bouc (enquanto, em contrapartida, sabemos que poucos vocativos soam tão nordestinos quanto “cabra safado”).
Descobrir a origem do simbolismo do bode na maçonaria brasileira, por outro lado, revelou-se um embaraço para os maçons com quem conversamos; não pela discrição por que são conhecidos ao tocar nos assuntos internos perante o público, mas pela diversidade de explicações contraditórias. Eles declararam, primeiramente, que esse simbolismo deriva de Baphomet, representação simbólica descrita pelo ocultista Eliphas Lévi (1810-1875) como possuidora de corpo humano e cabeça de bode. Baphomet é mencionado no processo que a Igreja Católica moveu contra os Cavaleiros Templários, no século 14, ordem militar a serviço de Roma cujos princípios influenciaram a filosofia de alguns dos altos graus da maçonaria, a qual surgiu oficialmente em 1717, evoluída das corporações de pedreiros da Idade Média.
Para churrasco, o ideal é utilizar carne de carneiro ou de um bode novo, com até oito meses
Outra versão citada pelos maçons entrevistados associa o apelido à figura do bode expiatório, tradição bíblica entre os judeus em que um bode e um touro eram oferecidos em sacrifício e um segundo bode era poupado e enviado para o deserto, após um rabino confessar em seus ouvidos os pecados do povo de Israel. O caprino ficou conhecido, conforme enfatizam os maçons, graças aos segredos que guardava.
Esse hábito de confidenciar-se com um bode parece ter persistido durante a Idade Média e entre as pessoas em geral, segundo outros maçons que consultamos, de modo que qualquer pessoa que fosse inquirida por autoridades anticonspiratórias e não revelasse as informações desejadas era tida como bode, “pois nada se arrancava dela”. Mesmo assim, é de se desconfiar se aquele hábito confessional procede: falar com animais domésticos e plantas é uma coisa; já descarregar as culpas num animal de criação...
Acontece que todas essas referências estão disponíveis em artigos na internet, porém esse material não responde a contento às perguntas: como a alcunha se originou no meio maçônico e por que não se fixou fora do Brasil? A explicação mais plausível é a de que panfletos e livros antimaçônicos tenham espalhado o boato de que, nas iniciações da maçonaria, devia-se cavalgar em um caprino raivoso (o que algumas fraternidades universitárias norte-americanas, do século 19 para cá, assimilaram a título de trote, todavia usando uma armação de ferro e não um bode de verdade). Com isso, não se ouve entre maçons estrangeiros o vocativo de bode, mas vem de fora a expressão to ride the goat, que os pedreiros-livres anglo-saxônicos não rechaçaram para poder se divertir com o mistério que sempre os cercou.
Seja como for, dentre os muitos “bodes” de lojas maçônicas que praticam “canibalismo” depois das reuniões, estão os de Petrolina, que se juntam à multidão presente ao Bodódromo, sem que ninguém os perceba como tais, para comer cabrito (aliás, carneiro) assado ou guisado até bem depois da meia-noite.
CARLOS EDUARDO AMARAL, jornalista, crítico de música erudita e mestre em Comunicação.
LÉO CALDAS, fotógrafo, com trabalho publicado em vários jornais e revistas do país.