Corria, então, o século 17, mais precisamente 1661. Os jesuítas que ocupavam um terreno próximo ao forte de Buenos Aires – onde atualmente é a Casa Rosada, sede do governo nacional – são transferidos, por questões militares, para outro local. Tinha início a construção provisória e precária do novo templo da Companhia de Jesus, a Igreja de Santo Inácio de Loyola.
A igreja, ainda hoje em pleno funcionamento, seria a primeira das construções daquele quarteirão. Vinte e cinco anos depois, principiam as obras que completariam a quadra: a fachada e o o átrio do solar, as bases das torres e o campanário sul.
O conjunto de edificações ocupa uma quadra inteira e abriga os muros mais antigos de Buenos Aires. Foto: Divulgação
O Colégio de Santo Inácio já havia sido transferido para o local, ocupando um prédio provisório, mas, só em 1729, o claustro do educandário seria concluído. A planta tinha características austeras, como tudo ali, de cal e tijolos, com térreo e primeiro andar. Os pilares, pilastras e arcos evidenciavam sua qualidade arquitetônica. Ainda hoje existe a ala norte do educandário, anexada à igreja.
“Desde 1662 até 1767, o Colégio de Santo Inácio foi o grande centro cultural e intelectual da cidade de Buenos Aires. Desde a sua origem, destacou-se pela música, canto, drama e até em danças artísticas”, escreveu o historiador Guillermo Furlong (1889-1974), estudioso da presença dos jesuítas no país.
Levados pela guia turística, chegamos a um pátio interno amplo, de onde avistamos a parte posterior da Igreja de Santo Inácio e a parte do colégio que resistiu ao tempo. “Este pátio e tudo o que vocês estão vendo ao redor fazem parte da antiga Procuradoria das Missões”, diz ela. Observo aquele edifício também de térreo e primeiro andar, com arcos de tijolos aparentes que cercam o pátio e escuto suas explicações. Não é difícil me transportar para o século 18 e ver como era aquele lugar no passado, com sacerdotes, índios guaranis catequizados nas missões, trabalhadores, estudiosos, moradores, enfim, da então colônia, circulando por ali.
Na Procuradoria, morava o chefe da ordem jesuítica e se administrava e capitalizava o comércio das missões. Era quase uma pequena cidade, com escola, escritório, depósitos, pomar. “Aqui funcionava um mercado. Imaginem as carroças passando por um enorme portal e deixando as mercadorias”, sugere Balice.
Ela continua: “Atrás dessas três portas que ainda vemos aqui funcionava uma botica onde havia inúmeras caixinhas diminutas de madeira com ervas que serviam para preparar medicamentos na hora”. O lucro apurado com as atividades era destinado a ajudar na manutenção das missões e do Colégio de Santo Inácio.
Chega o momento do tour anunciado no início e pelo qual eu mais esperava: conhecer os misteriosos túneis de La Manzana de las Luces. Através de uma estreita escada caracol, descemos 6m no subterrâneo do quarteirão e ficamos no meio de uma encruzilhada, de onde partem três túneis em diferentes direções. Com a queda de temperatura, a guia explica que ali existe um sistema de refrigeração e umidificação do ar para manter a construção.
Descobertos em 1917, aqueles enigmáticos caminhos ligavam igrejas, edifícios públicos, o forte, a então sede do governo (o Cabildo de Buenos Aires, ainda hoje erguido na Praça de Maio), o Rio da Prata, que costeia a cidade, e até a casa da viúva do vice-rei do Pino, administrador da colônia indicado pela coroa espanhola.
Foto: Divulgação
Devido ao progresso de Buenos Aires, redes de esgoto, energia, gás e metrô destruíram parte dessa intrigante rede subterrânea. “O que hoje vemos aqui é tudo o que pudemos encontrar e foi restaurado para que os visitantes pudessem conhecê-la”, explica a guia, acrescentando que apenas 20% dos tijolos aparentes vistos ali são originais.
Mas, afinal, para que serviam? Não se sabe, mas a porcelana inglesa e moedas de ouro de invasores encontradas nos túneis mostram que o contrabando era uma das suas funções. Conta-se que, na segunda invasão inglesa a Buenos Aires, no início dos anos de 1800, soldados estrangeiros foram surpreendidos na casa da viúva do vice-rei pelo exército que saía de um dos túneis.
EXPULSÃO
Os jesuítas foram expulsos de Buenos Aires em 1767, por determinação do rei espanhol Carlos III. Os bens da ordem foram confiscados e La Manzana de las Luces passa a ser administrada pela Junta das Temporalidades. Diante da informação da guia, supus que a importância histórica da congregação terminaria ali, mas estava completamente enganada.
“Nas bases do colégio da Companhia de Jesus começa a funcionar o Colégio de São Carlos (mais tarde rebatizado de Colégio Convictorio Carolino), por onde passaram vários dos heróis da independência argentina. Além disso, nesse quarteirão, teve início a medicina nacional e foi rodado o primeiro jornal argentino, na gráfica dos jesuítas, deixada para trás quando eles foram expulsos”, explica Balice.
La Manzana albergou, ainda, a primeira biblioteca pública, o Museu de História Natural, a Escola de Desenho e o arquivo público. Na antiga Procuradoria, foi fundada a Universidade de Buenos Aires, em 1821, onde mais tarde se formariam dois prêmios Nobel.
Na sequência de importantes instituições intelectuais e educacionais, que funcionariam no quarteirão, vieram a Legislatura da Província de Buenos Aires e o Banco da Província. O jornal La Prensa funciona no prédio e dali é feita, em 1878, a primeira ligação telefônica do país. Naqueles idos, surgem várias educandários e, finalmente, o Colégio Nacional de Buenos Aires, num imponente edifício de estilo francês, erguido ao lado da igreja.
Na excursão pelo emblemático quarteirão portenho, descubro que a passagem de dois séculos não demoliu, mas conservou a Sala de Representantes, na qual funcionaram o Congresso Geral Constituinte e o Congresso Nacional. Um anfiteatro com capacidade para 300 pessoas, em que juraram governadores da província e presidentes argentinos no século 19. Mais tarde, aquela seria a sala principal da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de Buenos Aires (UBA).
A igreja que leva o nome de Santo Inácio foi a primeira construção do quarteirão, ocupado pelos jesuítas. Foto: Divulgação
Já no século 20, em 1925, La Manzana de las Luces recebeu Albert Einstein para uma aula na UBA. Minha viagem no tempo chega ao final, quando ouço a guia contar que a universidade foi inteiramente transferida para o campus. La Manzana começaria então a ser recuperada e se transformaria num centro cultural e ponto turístico, embora pouco difundido, da cidade. Para mim, ela seria também uma fabulosa e secreta passagem em direção ao passado.
RUÍNAS
Ao contrário do que aconteceu em Buenos Aires, as construções jesuítas na então denominada Província das Missões – nos territórios do que hoje são Argentina, Paraguai e Brasil – não resistiram à expulsão da ordem em 1767. As 30 missões erguidas nos séculos 16 e 17, na Bacia do Rio da Prata, sucumbiram em ruínas.
O que foi quase um império, segundo o livro Misiones jesuitas & guaraníes, una experiencia única (ed. Golden Universe), com 140 mil habitantes em 1732, ficou escondido em meio à frondosa selva da região e à mercê de saques e incêndios.
Pela sua importância histórica e cultural, as ruínas das missões das cidades de San Ignacio, Loreto, Santa María e Santa Ana, na província de Misiones, todas restauradas, e outras três na província de Corrientes, foram declaradas, em 1984, Patrimônio Histórico Mundial pela Unesco.
Os resquícios ainda hoje dão conta de uma estrutura organizada e grandiosa – umas mais do que outras –, formada por moradias, templo, pátio, igreja, cemitério, praça, plantações, fundição, gráfica e unidades de produção variadas. Uma sábia e controvertida forma desenvolvida pela Companhia de Jesus de catequizar e proteger a população guarani da escravidão espanhola e portuguesa, ao mesmo tempo em que ocupava o território.
“O ostracismo das ruínas foi tanto, que moradores da cidade de Concepción de la Sierra construíram casas usando como base as ruínas de alguma missão que existiu no local, sem saber”, conta a coordenadora de turismo da província de Missões, Cintia Marin. “Hoje, elas são um destino muito importante, que faz parte de um circuito religioso que inclui igrejas da região. O turista não visita apenas as Cataratas do Iguaçu.”
As ruínas na província de Misiones são as mais reconhecidas e estão em um raio de até 60 quilômetros da capital, Posadas, e a 240 quilômetros de Puerto Iguazu. Delas, as de San Ignacio Miní, na cidade de San Ignacio, de características barroco-guarani, são as mais grandiosas. Além de ver ruínas restauradas e visitar o museu, o turista assiste a uma projeção de imagens sobre elas que recria o que se viveu ali no passado.
MARIANA CAMAROTI, jornalista, residente em Buenos Aires, com trabalho voltado à cobertura cultural.