Embora me mantivesse à distância, num encontro que tinha Jorge Amado, Rubem Fonseca, Nélida Pinon, Mário Chemie, Marcos Rey e outros tantos, vi a humilde Lygia arrumar a mesa, escolhendo copos, pratos e talheres para tradutores, editores, agentes e até editores europeus e norte-americanos. Depois, recebia-os com um sorriso feiticeiro para almoços e jantares, num gesto de absoluto despojamento material que, aliás, transmitiu em sua numerosa obra literária. Solícita, jamais perdeu a respeitabilidade. Feminina, revelava o afeto natural nas mulheres.
Escritora clicada ao lado do poeta Carlos Drummond de Andrade. Foto: Reprodução
Na verdade, a obra de Lygia é muito diversificada, sobretudo em temas e questionamentos, que vão do romântico, sobretudo no início da carreira, ao político. A ponte pode ser ligada desde o romance de colegiais, em Ciranda de pedra e As meninas. Ambas as obras tratando das questões sociais, através de pontos de vista femininos.
Talvez por isso, Lygia tem declarado, sistematicamente, que sua preocupação central é ser “uma escritora do seu tempo”. O que quer dizer que estará sempre atenta aos nossos conflitos, aos nossos problemas, para torná-los visíveis, numa obra que, desde o início, só amadurece e engrandece a literatura brasileira. Sem pertencer a nenhuma escola literária específica, a escritora paulista revelou sempre as características ficcionais da Geração 45, com abertura para muitos temas e a investigação da psicologia dos personagens, sobretudo os femininos, que resultam no amplo painel da sociedade brasileira, como em As meninas, que mostrou uma Lygia mais vigorosa e contundente, a coroar uma obra consagrada através de Lorena, Lia e Ana. Sem esquecer o romance As horas nuas, que traz uma escritora amadurecida, com o perfeito domínio da narrativa, já consolidado em muitos livros de contos.
Agora, aos 90 anos de idade, Lygia mantém o vigor, o mesmo que a tornou militante política em plena ditadura, e escritora decisiva, admirada pela feminilidade e paixão. De quem se pode esperar bons lançamentos, sobretudo porque mantém um público fiel, que garante as sucessivas edições, sempre disputadas por grandes editoras nacionais. Lembrando, principalmente, a repercussão internacional de sua trabalho. Em Iowa, onde estive em 1990 para participar do International Writting Program, encontrei uma universitária, Mildred, que defendia mestrado na obra de Lygia Fagundes Telles.
Uma confissão: nas minhas férias do internato do Colégio Salesiano, de calças curtas, com caderno e caneta em punho, trancava-me na sala de visitas da nossa casa em Salgueiro para imitar os contos de Lygia, copiando as frases longas, às vezes pontuadas, num ritmo preciso, com pouca ou quase nenhuma adjetivação, com um toque de ternura sem perder a gravidade, investigando, em geral, o inconsciente dos personagens, quase sempre das personagens. Queria sentir melhor aquele estilo, que envolvia a vida e o encanto das histórias, até que percebi que devia ser mais austero. Foi quando substituí Lygia por Adonias Filho, o baiano que criava personagens e histórias vigorosos. Mas não posso esquecer o tempo em que Lygia conduziu os meus primeiros passos literários, ali na casa austera e forte de Salgueiro.
RAIMUNDO CARRERO, jornalista e escritor.