O que não se perde é a herança culinária de décadas passadas, como o conhecido camarão sintético. Recheio falso do crustáceo, que já enganou muitos paladares, empada e canudinho adentro. Curioso pensar que a pasta em questão não leva na receita uma unidade sequer de camarão. Quanto ao sabor, passa despercebido aos menos atentos. “O que proporciona o gosto típico de camarão, na verdade, é a presença do leite de coco no preparo, que remete aos ensopados tão praticados no nosso litoral”, revela a banqueteira Bethânia Araújo, que guarda a receita de sua mãe, mesmo sem utilizá-la.
Feitas com proteína de soja, almôndegas parecem à base de carne. Foto: Wagner Ramos/Cortesia
Nada mais do que a mistura de cebola, tomate, pimentão e coentro picados mais leite de coco, farinha de trigo, ovos e manteiga.
A quituteira também destaca outros ingredientes que podem ser mascarados, sobretudo se forem encorpados a um molho, ou quando utilizados como recheio. É o caso da proteína de soja, que faz as vezes da carne moída. “Atende bem aos avessos à carne vermelha que querem comer receitas que têm como principal base o ingrediente bovino”, pontua. O segredo, segundo ela, está na hora de hidratar o grão. “Não pode ser com água, tem que ser com caldo de carne aquecido; o de tablete mesmo.”
Esse é o ponto de partida do preparo do sanduíche vegetariano da hamburgueria gourmet Kangaroo, em Casa Forte (Recife), o Adelaide Veggie Burguer. O sanduba traz disco de proteína de soja, cebolinha frita, molho barbecue e queijo provolone. Mistura estrategicamente pensada para disfarçar a ausência do gosto particular da carne. “Como o provolone é um queijo cujo sabor é proeminente e o barbecue proporciona um toque de defumado, o comensal acaba não sentindo falta da carne vermelha. Além de ser uma opção mais leve”, defende Eduardo Borba, proprietário da casa.
Com a mesma proteína de soja, podem ser feitos cachorros-quentes, kibes e almôndegas. Essa última pode ser facilmente mascarada, depois de mergulhada em molho de tomate. “É fundamental dar uma fritada nas bolinhas, para que o sabor defumado, característico da carne, seja liberado”, ensina Bethânia. Igualmente pensada para a turma vegetariana é a berinjela à parmigiana, que sacia o desejo de quem quer comer a clássica e suculenta receita italiana, abrindo mão da carne vermelha. “Pode-se dizer que é um clássico da casa, e há quem jure de pés juntos que é o mesmo sabor do prato original”, conta André Rosemberg, do Bar Central, casa boêmia que aposta forte no segmento de comida vegetariana no menu.
Truque mesmo, literal e negativamente falando, é o que fazem alguns cozinheiros na hora de confeccionar o tiramisu, sobremesa ícone da Itália à base de queijo mascarpone e pão-de-ló. Para ganhar tempo e (mais) dinheiro, há restaurantes que fazem o doce com cream cheese e substituem a massa de bolo por biscoito tipo champagne molhado. Para ninguém perceber, aumentam a dosagem de café na receita, mascarando o sabor típico do mascarpone.
Estampar mostarda dijon no cardápio e substituir, na prática, pela tradicional amarela com creme de leite condimentado com molho inglês e ralar queijo muçarela para se passar por parmesão fresco estão na mesma cartilha de golpes. Ilusão também para quem costuma pedir filé ao molho madeira: quase nunca é filé mignon, tampouco o molho é madeira. “Usam bastante um pó industrializado e dissolvem com vinho. Parece uma redução de dias de um demi-glacé original”, conta Sofia Mota, que também já viu muito “bacalhau” que era um peixe merluza – bem mais em conta – desfiado e salgado.
Hambúrguer de soja, para os vegetarianos. Foto: Léo Motta/Divulgação
HISTÓRIAS MASCARADAS
A história da alimentação também é permeada por algumas farsas, mesmo que sem esse objetivo de fraude. Na verdade, tradições aparentemente históricas são muito recentes e pairam no imaginário popular, e nos livros, como se “desde sempre” fossem dessa forma. Dá para pensar na culinária italiana sem a dupla macarrão com molho de tomate? Parece que não. Mas, na verdade, o prato não está nos primórdios da cozinha milenar daquele país, uma vez que o tomate, fruto americano, só chegou por lá com Colombo, no período das Grandes Navegações (nos séculos 15 e 16). E, antes de virar molho, decorou muito jardim principesco.
Quem também viajou à Europa nesse período foi a batata, igualmente originária da América do Sul. Ela chegou séculos depois ao Brasil, com o sobrenome gentílico de inglesa, por conta de sua importância na Revolução Industrial – mas essa é outra história. O primeiro registro da presença da batata na Europa é uma nota dizendo que ela foi servida em um hospital de Sevilha, na Espanha, em 1573. Em contrapartida, especiarias, temperos, mamíferos, aves e cana-de-açúcar vieram em outra mão.
Tomemos o coqueiro e seu fruto, o coco, como exemplo. É a maior “farsa vegetal” de que se tem notícia. Originário da Ásia e transportado para cá pelos colonizadores portugueses, é uma planta que se impôs. Naturalizou-se como se nativo fosse e, com cara da tropicalidade brasileira, alastrou-se até virar sinônimo de litoral no Nordeste. Para isso, expulsou os antigos moradores. Quem ainda encontra uma praia mais ou menos deserta, em meio ao surto imobiliário à beira-mar, pode vislumbrar. Entre os coqueiros, eles vão estar lá: o cajueiro e a mangabeira, estes, verdadeiramente nativos.
E o que falar da feijoada, que os livros didáticos rezam que nasceu na senzala? A origem defendida é que os “senhores de engenho ficavam com os cortes nobres do porco, a exemplo do pernil, na casa-grande, e desprezavam o restante das partes, como orelha, costela e pé, oferecendo-as aos escravos”. Mas, se lembrarmos que, por motivos de escassez de alimentos decorrentes de constantes confrontos bélicos, os europeus sempre incorporaram à sua culinária ingredientes pouco nobres, essa história vai perdendo o sentido...
Pratos comuns por aqui, como o sarapatel (feito com miúdos de porco), têm ascendência lusitana. Em Portugal, é chamado de sarrabulho. Segundo a pesquisadora da alimentação no Brasil Maria Lectícia Cavalcanti, “nem índios nem negros tinham o costume de misturar feijão com carnes. A técnica é mais antiga: vem do Império Romano”, afiança. Segundo ela, os romanos costumavam cozinhar carne com legumes, entre eles, o feijão branco. Essa seria a origem de pratos como o cassoulet francês – um ensopado de feijão branco com linguiça de porco e carne de pato. “Na região das Astúrias, norte da Espanha, também há uma iguaria desse tipo: a tradicional fabada, que mistura feijão branco com carnes pouco nobres, como orelha e rabo de porco.”
Quer dizer: muito daquilo que pensamos ser, parece, mas não é. E isso não se restringe ao Dia da Mentira. Não é verdade?
EDUARDO SENA, jornalista.