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Simulacro: Parece... mas não é!

Ardis culinários são capazes de fazer-nos acreditar que estamos comendo determinados ingredientes, mas isso pode ser só truque

TEXTO Eduardo Sena

01 de Abril de 2013

Empadas e canudinhos recheados com mix de legumes e leite de coco simulam o camarão

Empadas e canudinhos recheados com mix de legumes e leite de coco simulam o camarão

Foto Wagner Ramos/Cortesia

Pode fazer o teste, perguntando. Nem todo brasileiro sabe, por exemplo, o motivo do feriado nacional de 15 de novembro. Sabe que é dia de folga e isso parece ser o suficiente – pouco importa a Proclamação da República. Mas basta alguém fazer menção ao 1º de abril para que o Dia da Mentira seja lembrado. Bom, há várias versões para a data ter-se transformado em mote para inverdades. A mais difundida delas aponta que a brincadeira surgiu na França, no começo do século 16. Como, à época, o Ano Novo iniciava no dia 25 de março e terminava uma semana depois – portanto, em 1º de abril –, o rei Carlos IX, após adotar o calendário gregoriano, definiu que a celebração da virada do calendário seria em 1º de janeiro.

Houve resistência à mudança e os franceses mantiveram-se seguindo o calendário antigo. Esses teimosos passaram a ser ridicularizados, recebendo convites para festas que não existiam. Nascia, assim, o Dia da Mentira. No Brasil, começou a ser difundido em Minas Gerais, quando um jornal divulgou a morte de Dom Pedro, em 1º de abril de 1928, desmentida logo no outro dia. Neste mês de abril, sob esse pretexto, rememoramos a farsa, a fantasia, aquilo que parece, mas não é, também no que diz respeito à alimentação.

A data nos lembra como a gastronomia é fértil na arte de achar genéricos para alguns dos seus ícones. Seja em nome de uma vida mais saudável, seja para tornar os custos de produção mais baratos ou simplesmente para fazer adequações no preparo de uma receita, o fato é que comida também mente. Levante a mão quem nunca comeu chuchu pensando que fosse cereja! Bom, na verdade, você pode só estar descobrindo isso agora. Mas, grande parte das “cerejas” em calda, vendidas nos supermercados, são produzidas por meio do legume. E muitas padarias e confeitarias recorrem à réplica bastarda para driblar a sazonalidade e o preço da legítima.

“Além da textura adequada, o chuchu não tem personalidade: o sabor que você der, ele aceita”, afirma a chef Sofia Mota. Segundo ela, o preparo da conserva fake é bem simples. “Basta cozinhar o chuchu até ficar al dente e fazer bolinhas com um utensílio chamado boleador. Em seguida, despeje as bolinhas em calda quente de groselha, deixe no fogo baixo. Assim que descerem, retire-as da calda. Quando a calda esfriar, ponha licor tipo marasquino”. Cereja: de chuchu.

Também nessa linha do simulacro está o frozen yogurt (gelado à base de iogurte natural), que vem se tornando uma opção mais saudável em relação ao sorvete tradicional, já que conta com 70% a menos de gordura que o original. Nesse caso, estamos falando da cópia da cópia. Segundo uma pesquisa da Unicamp, liderada pela nutricionista Adriane Moraes, o iogurte usado no preparo dessa sobremesa, na maioria das vezes, é desidratado (sendo apenas dissolvido no leite e refrigerado), o que representa uma perda nutritiva. “O iogurte tem culturas de bactérias que deixam o leite mais digestivo. Quando é desidratado, parte dessas culturas se perde”, pontua a profissional.

OUTROS TRUQUES
O que não se perde é a herança culinária de décadas passadas, como o conhecido camarão sintético. Recheio falso do crustáceo, que já enganou muitos paladares, empada e canudinho adentro. Curioso pensar que a pasta em questão não leva na receita uma unidade sequer de camarão. Quanto ao sabor, passa despercebido aos menos atentos. “O que proporciona o gosto típico de camarão, na verdade, é a presença do leite de coco no preparo, que remete aos ensopados tão praticados no nosso litoral”, revela a banqueteira Bethânia Araújo, que guarda a receita de sua mãe, mesmo sem utilizá-la.


Feitas com proteína de soja, almôndegas parecem à base de carne. Foto: Wagner Ramos/Cortesia

Nada mais do que a mistura de cebola, tomate, pimentão e coentro picados mais leite de coco, farinha de trigo, ovos e manteiga.

A quituteira também destaca outros ingredientes que podem ser mascarados, sobretudo se forem encorpados a um molho, ou quando utilizados como recheio. É o caso da proteína de soja, que faz as vezes da carne moída. “Atende bem aos avessos à carne vermelha que querem comer receitas que têm como principal base o ingrediente bovino”, pontua. O segredo, segundo ela, está na hora de hidratar o grão. “Não pode ser com água, tem que ser com caldo de carne aquecido; o de tablete mesmo.”

Esse é o ponto de partida do preparo do sanduíche vegetariano da hamburgueria gourmet Kangaroo, em Casa Forte (Recife), o Adelaide Veggie Burguer. O sanduba traz disco de proteína de soja, cebolinha frita, molho barbecue e queijo provolone. Mistura estrategicamente pensada para disfarçar a ausência do gosto particular da carne. “Como o provolone é um queijo cujo sabor é proeminente e o barbecue proporciona um toque de defumado, o comensal acaba não sentindo falta da carne vermelha. Além de ser uma opção mais leve”, defende Eduardo Borba, proprietário da casa.

Com a mesma proteína de soja, podem ser feitos cachorros-quentes, kibes e almôndegas. Essa última pode ser facilmente mascarada, depois de mergulhada em molho de tomate. “É fundamental dar uma fritada nas bolinhas, para que o sabor defumado, característico da carne, seja liberado”, ensina Bethânia. Igualmente pensada para a turma vegetariana é a berinjela à parmigiana, que sacia o desejo de quem quer comer a clássica e suculenta receita italiana, abrindo mão da carne vermelha. “Pode-se dizer que é um clássico da casa, e há quem jure de pés juntos que é o mesmo sabor do prato original”, conta André Rosemberg, do Bar Central, casa boêmia que aposta forte no segmento de comida vegetariana no menu.

Truque mesmo, literal e negativamente falando, é o que fazem alguns cozinheiros na hora de confeccionar o tiramisu, sobremesa ícone da Itália à base de queijo mascarpone e pão-de-ló. Para ganhar tempo e (mais) dinheiro, há restaurantes que fazem o doce com cream cheese e substituem a massa de bolo por biscoito tipo champagne molhado. Para ninguém perceber, aumentam a dosagem de café na receita, mascarando o sabor típico do mascarpone.

Estampar mostarda dijon no cardápio e substituir, na prática, pela tradicional amarela com creme de leite condimentado com molho inglês e ralar queijo muçarela para se passar por parmesão fresco estão na mesma cartilha de golpes. Ilusão também para quem costuma pedir filé ao molho madeira: quase nunca é filé mignon, tampouco o molho é madeira. “Usam bastante um pó industrializado e dissolvem com vinho. Parece uma redução de dias de um demi-glacé original”, conta Sofia Mota, que também já viu muito “bacalhau” que era um peixe merluza – bem mais em conta – desfiado e salgado.


Hambúrguer de soja, para os vegetarianos. Foto: Léo Motta/Divulgação

HISTÓRIAS MASCARADAS
A história da alimentação também é permeada por algumas farsas, mesmo que sem esse objetivo de fraude. Na verdade, tradições aparentemente históricas são muito recentes e pairam no imaginário popular, e nos livros, como se “desde sempre” fossem dessa forma. Dá para pensar na culinária italiana sem a dupla macarrão com molho de tomate? Parece que não. Mas, na verdade, o prato não está nos primórdios da cozinha milenar daquele país, uma vez que o tomate, fruto americano, só chegou por lá com Colombo, no período das Grandes Navegações (nos séculos 15 e 16). E, antes de virar molho, decorou muito jardim principesco.

Quem também viajou à Europa nesse período foi a batata, igualmente originária da América do Sul. Ela chegou séculos depois ao Brasil, com o sobrenome gentílico de inglesa, por conta de sua importância na Revolução Industrial – mas essa é outra história. O primeiro registro da presença da batata na Europa é uma nota dizendo que ela foi servida em um hospital de Sevilha, na Espanha, em 1573. Em contrapartida, especiarias, temperos, mamíferos, aves e cana-de-açúcar vieram em outra mão.

Tomemos o coqueiro e seu fruto, o coco, como exemplo. É a maior “farsa vegetal” de que se tem notícia. Originário da Ásia e transportado para cá pelos colonizadores portugueses, é uma planta que se impôs. Naturalizou-se como se nativo fosse e, com cara da tropicalidade brasileira, alastrou-se até virar sinônimo de litoral no Nordeste. Para isso, expulsou os antigos moradores. Quem ainda encontra uma praia mais ou menos deserta, em meio ao surto imobiliário à beira-mar, pode vislumbrar. Entre os coqueiros, eles vão estar lá: o cajueiro e a mangabeira, estes, verdadeiramente nativos.

E o que falar da feijoada, que os livros didáticos rezam que nasceu na senzala? A origem defendida é que os “senhores de engenho ficavam com os cortes nobres do porco, a exemplo do pernil, na casa-grande, e desprezavam o restante das partes, como orelha, costela e pé, oferecendo-as aos escravos”. Mas, se lembrarmos que, por motivos de escassez de alimentos decorrentes de constantes confrontos bélicos, os europeus sempre incorporaram à sua culinária ingredientes pouco nobres, essa história vai perdendo o sentido...

Pratos comuns por aqui, como o sarapatel (feito com miúdos de porco), têm ascendência lusitana. Em Portugal, é chamado de sarrabulho. Segundo a pesquisadora da alimentação no Brasil Maria Lectícia Cavalcanti, “nem índios nem negros tinham o costume de misturar feijão com carnes. A técnica é mais antiga: vem do Império Romano”, afiança. Segundo ela, os romanos costumavam cozinhar carne com legumes, entre eles, o feijão branco. Essa seria a origem de pratos como o cassoulet francês – um ensopado de feijão branco com linguiça de porco e carne de pato. “Na região das Astúrias, norte da Espanha, também há uma iguaria desse tipo: a tradicional fabada, que mistura feijão branco com carnes pouco nobres, como orelha e rabo de porco.”

Quer dizer: muito daquilo que pensamos ser, parece, mas não é. E isso não se restringe ao Dia da Mentira. Não é verdade? 

EDUARDO SENA, jornalista.

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