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“O celular é o super-8 de hoje, portátil e barato”

César Oiticica Filho comenta o processo de realização do documentário sobre o tio, Hélio Oiticica, em que utilizou recursos de baixo custo, inspirado nas estratégias de criação do artista

TEXTO André Dib

01 de Abril de 2013

César Oiticica Filho

César Oiticica Filho

Foto Divulgação

Duplamente premiado no último Festival de Berlim, o documentário Hélio Oiticica é um painel não só do artista que dá nome ao filme, mas também da época em que ele desenvolveu suas obras. O pano de fundo, que não raro se torna tema principal, é dos mais interessantes: a contracultura do final dos anos 1960 ao início dos 1980.

Sobrinho do artista, o diretor carioca César Oiticica Filho demonstra habilidade ao pesquisar documentos e costurá-los numa instigante narrativa em primeira pessoa (na voz de Hélio), dando unidade a um acervo de sons e imagens em super-8 deixados pelo tio, para quem vida e obra eram uma coisa só. “Passo a me conhecer através do que eu faço. Na realidade não sei o que sou. Se eu já soubesse o que seriam essas coisas, não seriam mais invenção”, disse, em uma das gravações que deixou para a posteridade.

César vai além e produz imagens, ele mesmo, em diferentes formatos e suportes, analógicos e digitais. O resultado flui. Como escreve Júlio Bressane, no livro Cinemancia, adaptar para o cinema é traduzir palavras em luz. Tendo como guia dezenas de horas de depoimentos deixados pelo artista, o filme absorve com propriedade sua verve anarquista e febril. Bressane, aliás, está presente em entrevista feita por Hélio enquanto morava em Nova York e também em cenas de seu filme Lágrima Pantera, a míssil, em que este atua.

A trilha sonora é outro ponto forte do documentário. Dos sambas do carnaval carioca a pérolas do Tropicalismo, há espaço para o histórico concerto de Jimi Hendrix na Ilha de Wight e um belíssimo novo arranjo para You don’t know me, por Jards Macalé, produtor artístico da versão original, composta e cantada por Caetano Veloso.

Assim como o personagem, o filme exala autoimportância e resvala na completa falta de modéstia, sem que isso seja um problema. Pelo contrário, ao alinhar uma crítica de Glauber ao Tropicalismo com pensamentos de Oiticica sobre o tema e a própria obra, surge em comum aos dois artistas a consciência da própria genialidade e a necessidade de interpretar a própria obra, antes que outros o fizessem de maneira equivocada ou indesejável.


Hélio Oiticica. Foto: Divulgação

Eleito melhor documentário do último Festival do Rio, Hélio Oiticica foi exibido quatro vezes na Berlinale, em sessões lotadas. Além disso, o festival alemão exibiu os filmes de Hélio em super-8 e as instalações Cosmococa foram montadas no Liquid Room, com a presença de Neville D’Almeida e Thomas Valentin, parceiros de Hélio na obra.

No Cinema Arsenal (instituto que guarda mais de 8 mil títulos do cinema mundial e vai distribuir Hélio Oiticica na Alemanha), em entrevista concedida pouco antes do anúncio de que o filme ganharia o prêmio da crítica internacional (Fipresci) e o Caligari Film Prize, concedido a obras inovadoras, César Oiticica Filho falou à revista Continente.

CONTINENTE O filme consegue atingir uma interessante unidade visual e sonora, um resultado bastante orgânico, que concilia as bitolas analógicas e digitais.
CÉSAR OITICICA FILHO Foi difícil chegar nisso, principalmente por conta do som, que não ajudou muito. Ele funciona em camadas, tem o som direto, a trilha original e a pós-produção. Boa parte dele serviu de guia para as imagens. Procuramos usar bastante super-8, mas não fugimos do 35mm e digital. Não quis ficar no saudosismo. Consegui fazer com a câmera do celular coisas que não são feitas com uma profissional. O celular é o super-8 de hoje, portátil e barato. E cada ferramenta teve sua utilidade. Por exemplo, eu refiz com super-8 a sequência dos parangolés. O filme do Hélio, Devolver a terra à terra (1979), foi usado mesmo cheio de fungos e o resultado ficou muito interessante. De outro, só restaram seis slides, que fotografei 20 vezes cada, com uma lente macro de celular, e depois animei. Na sequência final, utilizo steadycam para adentrar um bólide (estrutura tridimensional projetada pelo artista). Foi um steadycam de telefone, equipamento que custa 150 dólares. Uma das propostas do filme foi não se fechar a nada, fazer essa brincadeira entre linguagens e formatos.

CONTINENTE Isso soa coerente com a própria obra de Hélio Oiticica. Você deu ao filme o nome dele por conta disso, para que sua proposta se confunda com o personagem?
CÉSAR OITICICA FILHO Ele já teve dois subtítulos. Um era Delirium ambulatorium, que é a prática dele, explicada no filme. Mas ficou melhor quando troquei para You don’t know me, música que coloquei no lugar de Sympathy for the Devil, dos Rolling Stones. Tem tudo a ver com o personagem, pois, no máximo, 1% da população brasileira conhece Hélio Oiticica. É um absurdo, é como se a Holanda não conhecesse Van Gogh. Mas, para não correr o risco do subtítulo virar título, no filme ficou só o nome dele. Ele falava que o cinema é um instrumento, então que seja um instrumento para apresentá-lo ao Brasil. Para o mundo, mas principalmente para o Brasil, que precisa conhecer Hélio Oiticica.

CONTINENTE Seu filme é, em parte, uma forma de ele estar presente hoje. Ao mesmo tempo é uma obra sua, uma aliança criativa, mistura talvez impossível de separar.
CÉSAR OITICICA FILHO Procuramos não apenas reproduzir, mas desenvolver alguns conceitos dele, principalmente ligados ao cinema. Por um lado, apresentamos a sua obra, por outro, aonde ela vai hoje, aonde pode chegar. Não busquei o que ele poderia estar fazendo atualmente se estivesse vivo, pois isso é impossível de saber. Fiz o que todos poderiam fazer, mostrar para onde vai o seu trabalho, que é uma proposição. É a minha contribuição à obra dele, o meu delirium ambulatorium.


Foto: Divulgação

CONTINENTE Ao assistir ao documentário, é inevitável perceber um abismo cultural entre a realidade dos anos 1970 e a atual. Você acha que a ditadura militar teve influência na ousadia dos artistas daquele tempo?
CÉSAR OITICICA FILHO Eles foram totalmente transgressivos numa época em que isso era bem mais difícil de ser feito. E hoje, que podemos fazer, o mundo da arte é a coisa mais careta do mundo. Se existe um trabalho com sexo e drogas, as pessoas não falam, mas você sente que é um problema. Antes de morrer, em 1980, Hélio, percebendo essa involução, disse que, segundo Glauber, nos últimos oito anos, as artes plásticas regrediram um século. Proporcionalmente, hoje seriam dois mil anos. Existem coisas bacanas, mas a lógica do consumo não permite que elas se desenvolvam.

CONTINENTE Mesmo tendo passado por duas guerras, a Alemanha se mostra exemplar na preservação de arquivo cinematográfico. Como é a situação no Brasil?
CÉSAR OITICICA FILHO A memória do audiovisual brasileiro está parcialmente preservada, mas muito já se perdeu ou está apodrecendo agora, enquanto conversamos. No Museu de Arte Moderna, nas cinematecas, arquivos nacionais, está tudo acabando. O acesso é outro problema. Na Cinemateca Brasileira, por exemplo, pesquisadores são barrados. Precisamos tomar uma posição.

CONTINENTE Você deixou de incluir algo no filme por conta disso?
CÉSAR OITICICA FILHO Queria ter usado imagens de Mudança de Hendrix, de Rogério Sganzerla, que dizem estar em restauro na Cinemateca e a própria família disse que não consegue acessar. É um absurdo. A burocracia é outro problema. Quando você inscreve um documentário em edital, tem que entregar um roteiro, o que é uma loucura. Quem exige isso não sabe como se faz um documentário. Entre um edital e outro, o filme levou 10 anos para ficar pronto. Artista não é prefeitura para entrar em edital. Dizem que é para não ficar na subjetividade, mas, no final, é tudo um jogo de comadres, que liberam R$ 14 milhões do dinheiro público para fazer um filme que fica um mês nos cinemas e vira minissérie da Globo. E enquanto estamos pagando essas minisséries, tem uma fila de artistas esperando para filmar.

CONTINENTE Além de cineasta, você tem carreira como fotógrafo. Está mais para o cinema ou as artes visuais?
CÉSAR OITICICA FILHO Estou muito feliz de estar no cinema. Hélio Oiticica foi feito por uma produtora pequena, com pouco dinheiro e sem distribuidor. Veja a seriedade do cinema: estamos apenas no terceiro festival e, se você faz algo bom, é reconhecido. Nas artes visuais, não é bem assim. Se você não tem galeria, não existe. Por isso, eu prefiro não existir.

CONTINENTE Qual seu próximo projeto?
CÉSAR OITICICA FILHO Quero fazer o meu próximo filme no sistema multiplataforma, crowdfunding, um projeto coletivo em que várias pessoas mandam imagens. O nome será O ataque

ANDRÉ DIB, jornalista.

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