Entre o prazer e a Medusa: Sobre literatura e ensino
TEXTO Renata Pimentel
01 de Abril de 2013
Imagem Creative Commons
O silêncio mais eloquente, a cumplicidade fincada na intimidade, em milhas de linhas que se vão percorrendo e tecendo o ser mais lá de dentro da criatura, o ser-leitor... O silêncio destes versos:
“Convivência entre o poeta e o leitor, só no silêncio da leitura a sós. A sós, os dois. Isto é, livro e leitor. Este não quer saber de terceiros, não quer que interpretem, que cantem, que dancem um poema. O verdadeiro amador de poemas ama em silêncio...”.
Radical amante é este leitor que nos apresenta Quintana: ele quer o poema e o silêncio, para amar o livro, a leitura e conviver com o poeta, mediado pela palavra. Esse leitor rejeita crítica e outros “usos” do poema, até mesmo artísticos, que dirá interpretações! Não quer teóricos, críticos. Quer experimentar o texto e reconhecê-lo como textura artesanalmente tecida pelo autor com prazer, também sentido e recuperado pelo leitor, na aventura da leitura/fruição.
Qualquer abordagem ao literário que não tenha raiz na própria escritura incorre no procedimento esterilizante comum: fazer do estudo do texto algo externo à escritura e alheio ao prazer de leitor; simplesmente, o fator que deveria ser bastante para o encontro entre professor (suposto leitor com “mais quilometragem”) e os aprendizes. A literatura é uma prática social específica e constituída por um complexo jogo de relações que se compõem num sistema literário, mas, antes de tudo, é uma construção do afeto, da educação dos sentidos, da humanização desse sujeito-leitor.
Antonio Candido, em O direito à literatura, ressalta a importância de um panorama social e histórico nos estudos da literatura, já que essa “aparece claramente como manifestação universal de todos os homens em todos os tempos”. Assim, todo homem está imerso de alguma forma no mundo ficcional, de fabulação ou devaneio, como uma necessidade universal.
Ainda no pensamento de Candido, a literatura “é fator indispensável de humanização e, sendo assim, confirma o homem na sua humanidade, inclusive porque atua em grande parte no subconsciente e no inconsciente”. A literatura possui, então, uma função humanizadora que lhe permite ser um poderoso instrumento de autoconhecimento, educação e instrução.
Essa afirmação justifica o fato de a literatura ser, em certos momentos, controlada por uma elite que detém o poder, pois ela, como toda expressão artística, invoca um papel político que contribui para a formação de um leitor crítico e provoca reflexão e questionamento do discurso ideologicamente dominante. Em uma imagem: literatura, arte são vírus, para os quais não há vacina: são fortemente contagiosos e mutantes, para que não se encarcerem facilmente nem se esgotem em fórmulas.
PRAZER DE LER
Invoca-se aqui, então, o prazer, como escudo de combate à abordagem literária com discursos externos e cristalizados. Por isso, referência à Medusa: na mitologia grega, monstro capaz de petrificar aqueles que a olhassem diretamente. Mas o herói Perseu consegue decapitá-la, usando um espelho para enfrentar a inimiga sem mirá-la diretamente. Com essa imagem, pretende-se defender o literário como fonte de prazer, de saber e, nunca, de um conhecimento petrificado e petrificante...
O professor deve ser vetor de contaminação do vírus literário entre seus alunos, leitor apaixonado que seduz os estudantes a se aventurarem na leitura, na experiência de aceitar o desafio de páginas, às vezes, estranhas e incômodas nos primeiros momentos. Toda arte traz em si o germe da desestabilização, do experimento: como um terreno de leis próprias, às quais é preciso se habituar pelo tato; pelo risco de adentrar um labirinto do qual não se sabe o mapa. Só no processo de envolvimento efetivo e afetivo do estudante com o desejo de saber é que se produz o conhecimento e a capacidade de questionar verdades estabelecidas.
O prazer e o gozo da leitura vem do embate com a dicção própria de cada escritor; com a compreensão da lógica interna de cada obra; com a aceitação da multiplicidade de aproximações e percepções possíveis àquele “objeto fluido” de linguagem, que, ao nos iludir, nos lança numa queda dentro de nós mesmos, como cúmplices do autor, como voyeurs. Mergulhando na fantasia, nas areias movediças, nas perversões do autor, o leitor vai se desnudando frente ao espelho.
Em cena, o professor búlgaro Tzvetan Todorov, em seu livro A literatura em perigo: “Por mais longe que remontem minhas lembranças, sempre me vejo cercado de livros”. E a narrativa segue com o testemunho de que, tão logo aprende a ler, passa a devorar textos e a venerar a literatura durante “primário e ginásio”. O desfecho: “sem hesitação”, ao final do ensino médio, escolhe estudar Letras. Sua profissão seria “falar de livros”.
Advoga-se, aqui, a favor de certa utopia necessária, com pés no charco do poético, da imaginação que só a arte permite devidamente alimentar. Claro que em áreas técnicas (e no campo do estudo da literatura há também especificidades e requisições de dedicação, para que se chegue a um conhecimento sólido) existem exigências disciplinares, mas o semeador contaminado pela poesia vence as agruras e os obstáculos da aprendizagem, movido pelo afeto, pelo encanto. Construir o olhar dissonante e arguto no aprendiz é garantir um substrato humano de melhor qualidade, humanizado e capaz de (re)inventar-se e propor soluções aos desafios da vida profissional e pessoal.
Na literatura está o legado do homem, o germe capaz de despertar consciência crítica e fazê-lo exorcizar demônios e pulsões, pois ensina a sonhar, imaginar, conhecer o sublime e o abjeto. Na arte se faz o que se deseja e não se pode fazer na vida: a catarse a que tanto aludiam os gregos... O literário é ferramenta para uma construção de sociedade com estudantes que aprendem além e para além das salas de aula.
Que as aulas de literatura sejam educação da sensibilidade, do olhar, da leitura de mundo. Que se experimente o diálogo entre leitores apaixonados “desanestesiados das emoções prêt-à-porter da culturafast-food”. Que se estabeleça, nas aulas de literatura, a primazia ao próprio texto literário, e não o deixemos ser reduzido aos discursos teóricos, historiográficos ou críticos. A literatura sopra ao leitor atento e apaixonado os caminhos de acesso à decifração de seus enigmas (os do próprio texto e os do próprio leitor).
RENATA PIMENTEL, professora adjunta de Literatura do curso de Letras da Universidade Federal Rural de Pernambuco (UFRPE).