ENTOCADOS
No Brasil, nunca foram feitos tantos filmes pouco assistidos como hoje. Obras como O som ao redor (2012), de Kleber Mendonça Filho, uma das produções brasileiras mais aclamadas e comentadas internacionalmente nas últimas décadas, distribuído pela pequena Vitrine Filmes, conseguiu apenas um público em torno de 100 mil espectadores, lançado num circuito restrito desde o início do ano. Um sucesso, considerando as poucas cópias e salas, mas um número irrelevante considerando que uma comédia comercial como De pernas pro ar 2 foi vista por quase 4 milhões de espectadores, lançada com estrutura esmagadora em 700 salas de exibição.
Mais de 30 anos separam sexo, mentiras e videoteipe e O som ao redor, filmes irmãos em termos de produção e distribuição, considerando as diferenças dos mercados norte-americano e brasileiro. Nessas três décadas, aumentou o número de salas, o número de filmes produzidos, e a revolução digital facilitou os meios de produção e distribuição. Tudo apontava para uma relação mais saudável na briga do cinema blockbuster x filme de arte nas salas de exibição e, no entanto, consolidou-se justamente o contrário. O cinema independente encolheu nos últimos anos, no Brasil e no mundo, e nunca foi tão difícil fazer uma pequena produção ser descoberta pelo público.
O que aconteceu? Vários fatores podem ser considerados. Lá fora, a crise financeira internacional, que abala o primeiro mundo desde 2008, teve forte impacto na indústria cinematográfica, com queda alarmante nos números das bilheterias dos grandes estúdios e efeitos devastadores no cinema independente. Diminuiu o número de salas para filmes de pequeno porte, mais destinados ao público adulto, tanto nos EUA como na Europa. Com o cinema popular direcionado para o público mais jovem, as produtoras de TV encontraram um nicho de espectadores fiéis para séries e filmes mais adultos e ousados, e uma boa parte do público adulto prefere hoje o conforto do lar a sair de casa para ver blockbusters de super-heróis, fadas e gnomos.
Produção francesa Os intocáveis se manteve em cartaz por semanas, no circuito alternativo. Foto: Divulgação
Por outro lado, há uma constante e nociva concentração de mercado, com controle massivo das grandes empresas produtoras e distribuidoras que, de forma paradoxal, diminuem cada vez mais a variedade de títulos nos cinemas, privilegiando os grandes lançamentos com uma quantidade cada vez maior de cópias, com incontáveis salas exibindo os mesmos filmes. Isso, facilitado pela exibição digital, que elimina a complexa logística de reprodução de cópias em suporte material (celuloide). Uma ironia, já que era previsto que a exibição digital abriria as portas para um ambiente mais plural.
Aqui, no Brasil, esse domínio de mercado hoje tem seu melhor exemplo na Globo Filmes, que padronizou uma linha de montagem de cinebiografias populares e comédias de estética televisiva que, apoiada por marketing e propaganda da própria rede de TV, arrastam grandes plateias não para assistir, mas para consumir filmes semelhantes em forma e conteúdo durante o ano inteiro, já adaptados a concorrer de igual para igual com a outra parcela de filmes, também padronizados, que dominam o grande circuito comercial, os americanos.
Alguns dos melhores filmes brasileiros recentes simplesmente não encontraram seu público, vítimas dessa segregação. Os novos filmes dos pernambucanos Cláudio Assis e Marcelo Gomes, A febre do ratoe Era uma vez eu, Verônica, embora com bom destaque na mídia, receberam distribuição e público menor que os filmes dos citados diretores pernambucanos, lançados uma década atrás.
REAÇÕES, DISSIDÊNCIAS
Ainda há sinais animadores no setor, existe uma geração que assumiu um estimulante espírito de “novo cinema de guerrilha”, para tentar furar o cerco aos independentes. O Som ao redor é um ótimo exemplo. Dentro do limite financeiro para sua distribuição e divulgação, o filme consegue ser visto nos cinemas, trabalhando com divulgação nas redes sociais, em especial no Facebook, onde temfan page, e é também um sucesso no formato digital iTunes, oferecido agora pela internet para download ou exibição online em qualquer lugar do mundo, enquanto continua em exibição em salas das capitais brasileiras e em várias cidades pelo mundo.
Autor de obras “difícieis”, David Lynch declarou sua aposentadoria da direção, desmotivado pelo mercado. Foto: Divulgação
Mas, de uma forma geral, há bastante pessimismo quanto ao cerco cada vez mais forte à chegada do cinema independente ao público. A nova cinefilia migrou para o mercado oficial e pirata de filmes digitalizados e baixados da internet. Em 2009, o cineasta alemão Wim Wenders comentou que um trabalho como Asas do desejo (1987), realizado fora do padrão industrial, a partir de um roteiro livre e improvisado, talvez não conseguisse ser financiado e produzido. E questionava: mesmo se conseguisse filmar Asas do desejo agora, haveria público para assisti-lo?
David Lynch, diretor de obras aclamadas, mas pouco comerciais, como O homem elefante (1980), Veludo azul (1986) e Cidade dos sonhos (2001), todos indicados ao Oscar de melhor direção, eCoração selvagem (1990), vencedor da Palma de Ouro em Cannes, realizou obras cada vez mais “difíceis” e não encontra mais público nem quem produza seus filmes. Aos 62 anos, em 2008, declarou encerrada sua carreira nos cinemas e hoje escreve livros e corre o mundo dando palestras e seminários sobre cinema, meditação e outros temas.
Steven Soderbergh, que, involuntariamente, começou essa onda de sucesso do cinema independente na virada dos anos 1990, seguiu carreira profícua de diretor e produtor, realizando sucessos e fracassos, indo de filmes mais comerciais (Erin Brockovich, Traffic, a trilogia Onze homens e um segredo, Magic Mike) a projetos quase experimentais aos quais pouca gente assistiu (Kafka, Full frontal, Bubble) e, aos 50 anos, também anuncia sua aposentadoria em filmes para cinema, pretendendo dedicar-se ao teatro e às artes plásticas, além de um projeto de um livro sobre cinema. Coincidência ou não, a saída de cena desses grandes nomes do cinema independente aponta para o final de um ciclo desse mercado, esmagado pela padronização global atual que reduziu drasticamente o espaço no circuito exibidor para filmes “fora da curva”. Em 2008, 10% do circuito nacional era formado por salas com programação alternativa. Esse número hoje está em torno de 5%, e os chamados “filmes de arte” dividem pequenas salas, com poucas sessões, muitas vezes com apenas uma exibição diária. É um cenário desanimador para os espectadores cinéfilos. E ainda não se vislumbram sinais de mudanças positivas para os próximos anos.
FERNANDO VASCONCELOS, Crítico de cinema, editor do site Kinemail e blogueiro.