O curioso é que, involuntariamente, Turing deixou um legado de tragédia – fôssemos mais supersticiosos, poderíamos chamar de maldição, praga ou esconjuro – para seus “filhos”, os programadores de computação (que reprisariam em suas próprias jornadas adversidades comparáveis às do seu precursor ao longo desses anos). Mas também, de certa forma, designou-lhes uma posição de destemor e desafio às coisas estabelecidas.
Vida de John McAfee, criador do antivírus, vai ser tema de filme, assim como a de Steve Jobs. Imagem: Divulgação
Em janeiro deste ano, sete meses depois do centenário de nascimento de Turing (junho de 1912), o programador, hacker e ativista de internet norte-americano Aaron Swartz suicidou-se por enforcamento. O jovem de 26 anos era conhecido por ter sido cocriador do site de novidades sociais Reddit, por desenvolver o sistema de alimentação de informações RSS e por colaborar para o Creative Commons, organização não governamental que elabora licenças menos restritivas que as do copyright, permitindo que autores liberem parte dos direitos de suas obras para serem usadas livremente por outros colaboradores.
Um cibergênio que, assim como Turing, teve problemas com as leis de seu país. A diferença é que, enquanto Turing foi implicado por conta de sua vida privada, Swartz protagonizou uma briga pública, desafiando grandes corporações, como ativista. O desfecho, no entanto, foi o mesmo para os dois: a execução pelas mãos de um “capataz” da via legal.
Diferentemente daqueles que muitos chamam de “ativistas de sofá”, Swartz era versado em linguagem de programação e, comandando invasões, saques e outras operações eticamente questionáveis, desencadeou situações no mundo real por meio de ações virtuais. O ponto culminante do ativismo de Swartz deu-se em 2010, quando o programador teria acessado ilegalmente a rede do MIT (Massachusetts Institute of Technology), para baixar quase 5 milhões de artigos acadêmicos de um banco de dados chamado JSTOR, conteúdo que ele teria considerado de “conhecimento do mundo” e que, supostamente, pretendia disseminar. “Precisamos pegar a informação onde estiver armazenada, fazer nossas cópias e divulgá-las”, escreveu Swartz no seu blog, em 2008, num texto intitulado Guerilla open access manifesto, no qual argumenta contra a privatização do saber público.
Os membros da JSTOR não prestaram queixas, mas condenaram o ato. O MIT, no entanto, levou o caso à justiça americana. Em julho de 2012, Carmen Ortiz, a advogada e procuradora do distrito de Massachusetts, encarregada do caso, declarou a possibilidade de aplicar até 35 anos de prisão para Swartz (e uma multa de 1 milhão de dólares), comentando que “roubar é roubar, mesmo que seja através do uso de um computador (…), sejam aquilo que foi roubado documentos, dados ou dólares”.
Criador do WikiLeaks, Julian Assange está refugiado na embaixada equatoriana, em Londres. Foto: Divulgação
Há uma desproporção na condenação ao ato de Swartz. Em 12 de janeiro, o fundador da Creative Commons e mentor de Swartz, Lawrence Lessig, escreveu em seu blog uma nota de indignação: “a ‘propriedade’ que Aaron ‘roubou’, disseram-nos, valia ‘milhões de dólares’ – com a insinuação, e a sugestão, de que seu alvo era o lucro. Mas qualquer um que diz que há dinheiro a ser feito no acúmulo de artigos acadêmicos é ou um idiota ou um mentiroso”. A declaração de David Segal, diretor do site Demand Progress, do qual Swartz era consultor, foi ainda mais irônica. Como o JSTOR é um serviço sem fins lucrativos, Segal apontou: “É como tentar botar alguém na cadeia por supostamente consultar livros demais na biblioteca”. E, dessa maneira, Swartz foi o cordeiro levado ao sacrifício numa luta institucional contra a internet.
CIBERLEIS
A “brigada” contra a livre distribuição da informação via web só é possível por conta da discrepância na concepção das leis virtuais – normalmente, tentativas de adequação dos crimes cibernéticos às leis físicas, ao invés da separação conceitual dos dois espaços, podendo provocar perseguições e condenações desmedidas . Outro problema é o da jurisdição. Sendo um espaço “sem fronteiras”, a internet torna complexa a ação legal sobre os crimes cometidos, já que as chamadas cyberlaws (ou ciberleis) diferem de acordo com cada país.
Por conta dessa discrepância de interpretação dos crimes e suas punições, as ciberleis ainda não atingiram o jornalista e hacker australiano Julian Assange, fundador do WikiLeaks, site criado com a finalidade de vazar documentos sigilosos, denunciando condutas reprováveis de governos e grandes corporações mundiais. Enquanto vivia em prisão domiciliar na Inglaterra, refugiado de acusações de agressão sexual na Suécia, tinha sua cabeça pedida pela CIA, por ter exposto em sua página crimes escondidos pelo governo americano. Mais recentemente, Assange conseguiu se abrigar na embaixada equatoriana na Inglaterra. O país latino-americano pede a sua liberdade e extradição por não interpretar seus atos como crime.
“Os crimes que Assange supostamente cometeu contra os Estados Unidos estão compreendidos na antiga lei de espionagem (Espionage Act of 1917), e não por atividade hacker”, comenta o jurista Erickson Oliveira, que estuda O princípio da neutralidade e o Marco Civil na Internet. “Mas o WikiLeaks e o próprio Assange afirmam que o governo americano, através do Departamento de Justiça e outros órgãos federais de investigação, estariam estudando a possibilidade de processá-los criminalmente. Como nenhuma acusação foi formalmente feita, o dispositivo legal proibitivo da atividade que ele desempenha é o Espionage Act. É um caso complicado. De um lado, a primeira emenda à Constituição Americana estabelece a liberdade de expressão e de imprensa, o que é um argumento fortíssimo em favor de Assange. Por outro lado, se diz que as atividades do WikiLeaks colocam vidas americanas em perigo”, completa Oliveira.
Ativista e gênio da informática, Aaaron Swartz suicidou-se
em janeiro. Foto: Divulgação
Outro que viveu a paranoia da perseguição foi John McAfee. Criador do primeiro antivírus comercializável do mundo (em 1987, por sua empresa McAfee Associates), o ex-empreendedor vendeu seu negócio para a Intel Corp., nos anos 1990, e saiu pelo mundo para virar um “caçador de aventuras”. Num artigo intitulado The M Files, publicado em 2012 pela revista Mensa Bulletin, ele comenta que seu pioneirismo no mundo do antivírus lhe fez o alvo preferido de penetras. “Hackers veem o fato de invadir meu computador como uma medalha de honra”, escreveu. Segundo McAfee, esse conflito e a chatice da vida corporativa foram os motivos para que se evadisse.
Com a crise no mercado mundial, em 2008, McAfee, que de certa forma estava do outro lado da moeda em relação a Assange e Swartz, no contra-ataque às investidas hackers, jogou tudo para o alto e foi viver no país centro-americano de Belize, onde arrumou uma série de confusões com a polícia local, sendo acusado de porte ilegal de armas e drogas ilícitas (segundo ele, uma conspiração para impedi-lo de realizar suas ações de caráter humanístico no país). Em novembro de 2012, seu vizinho, o compatriota Gregory Faull, foi descoberto morto e a polícia apontou McAfee como principal suspeito. O programador atravessou a fronteira da Guatemala, numa fuga sob a alegação de que estava sendo politicamente perseguido pelo governo de Belize. Finalmente, em dezembro, foi deportado para os Estados Unidos.
McAfee já vendeu os direitos de sua história para uma produtora de cinema, a canadense Impact Future Media. Não é surpresa. A vida conturbada de grandes nomes da internet virou assunto de interesse em Hollywood desde A rede social (David Fincher, 2010), que descreve um melancólico Mark Zuckerberg (Facebook). Também estão engatilhados filmes sobre as vidas de Assange e Steve Jobs (cuja fatalidade se deu por um raro tipo de câncer, de difícil diagnóstico).
Esses prodígios do mundo virtual podem até ser divididos entre empresários e ativistas. E aqui cabe registrar a discrepância entre a perseguição aos rebeldes do mundo virtual e a idolatria aos milionários da área, como Bill Gates (Microsoft), Jobs (Apple) e o citado Zuckerberg. No entanto, eles estão no mesmo palco de uma disputa pelo controle da informação. São figuras essenciais às mudanças históricas pelas quais passamos. São também “espetacularizáveis”, porque reúnem características de um grande personagem: da discrição, às vezes frágil, no mundo físico, à atitude inovadora – se não transgressora, no mundo virtual; do isolamento social e a obsessão com a máquina aos efeitos eloquentes que suas invenções produzem.
ANDRÉ VALENÇA, estudante de Jornalismo e estagiário da Continente.