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Pernambuquinho: Futebol e fúria

Em 1973, era assassinado o mais amado e odiado jogador brasileiro, ídolo numa época em que o esporte ainda não estava tomado pelo marketing e, sim, pela paixão

TEXTO Aquiles Lopes

01 de Março de 2013

Na disputa entre Bangu e Flamengo, Almir armou uma de suas maiores confusões

Na disputa entre Bangu e Flamengo, Almir armou uma de suas maiores confusões

Foto Reprodução

"Agredi jogadores de outros times, briguei com tantos, que até perdi a conta. Por certo, poucos jogadores participaram de tantos episódios violentos como eu. Daí a fama que peguei: marginal, violento, celerado, bandido.” A visceral sinceridade na declaração é de Almir Morais de Albuquerque, o Almir Pernambuquinho. Uma lenda dentro e fora dos gramados. Um misto de alegria e fúria, assassinado há exatos 40 anos, durante uma briga de bar na Galeria Alaska, em Copacabana, Rio de Janeiro. O truculento Almir foi morto ao defender os performáticos bailarinos da trupe teatral Dzi Croquettes contra a humilhação de um grupo de portugueses.

Almir pertenceu a um período anterior às chuteiras coloridas, cortes de cabelos personalizados e coreografias sertanejas. Ele foi de uma geração em que cada clássico era de uma complexidade shakesperiana, como afirmou Nelson Rodrigues. O atacante, criado na Estrada dos Remédios (Recife), iniciou a vida no Sport, já conquistando o título estadual de 1956. No ano seguinte, com apenas 20 anos, estreava no poderoso Vasco da Gama, para levantar o título carioca.

Bastaram alguns jogos para que a malta identificasse que ali estava um artilheiro diferente. Capaz de entrar em todas as divididas e disposto a sair no braço com quem fosse preciso. Armando Nogueira, que gostava de cravar apelidos nos jogadores, rapidamente o batizou “Celerado”. Almir detestou a alcunha. “Para as torcidas adversárias e para uma parte da crônica esportiva, eu era apenas isso: um marginal. Alguns cronistas, como Armando Nogueira, do Jornal do Brasil, contribuíram para que esse conceito se firmasse. Armando, a quem nem sequer conhecia e de quem nunca tive raiva, disse mais de uma vez em sua coluna, muito lida e respeitada, que eu não passava de um criminoso. Para muitos que não me viram jogando, persiste a impressão de que eu não passei disso: um bandido...”, afirmou Almir, na antológica entrevista à revista Placar, transformada em Eu e o futebol, livro infelizmente fora de catálogo e raríssimo até nos sebos.

Mas, afinal, Almir virou ídolo pelos sopapos ou pelo tanto que jogava? Segundo o jornalista Juca Kfouri, que conversou com a Continente, as duas respostas são verdadeiras. “Ele combinava raça com categoria. Era valente e refinado.” Mesmo com a fama de garoto-problema, Almir teve chances de ir à Copa de 1958, mas desistiu de uma convocação para excursionar com o Vasco por um punhado de cruzeiros. O fato, hoje tão comum e encarado como um compromisso profissional entre o empregado e a empresa, na época, era escandaloso e o atacante foi para a geladeira. Marcado pela imprensa, desistiu do Rio de Janeiro e, em 1960, foi defender o Corinthians. Logo ao chegar, foi apelidado de ‘Pelé Branco’”.

Não se deu bem no alvinegro paulistano e foi para Buenos Aires, onde vestiu a camisa do Boca Juniors. Como pode imaginar qualquer pessoa que já tenha visto pelo menos 15 minutos do futebol portenho, Almir caiu nas graças da geral. Durante o empate por 1x1 com o inexpressivo Chacarita, Almir estava sendo impiedosamente vaiado pela torcida. Após arrumar uma confusão com dois jogadores rivais, foi expulso de campo. Mais vaias. Quando descia para o vestiário, um adversário o xingou. Almir voltou do túnel e respondeu com um soco. Outros jogadores vieram defender o companheiro e Almir partiu para cima de todos. A briga foi geral.


O jogador, que iniciou sua carreira no Sport, passou pelo
Santos em 1963. Foto: Reprodução

Resultado: dois expulsos pelo Chacarita, o Boca vence o jogo e Almir vira herói subitamente. Anos mais tarde, João Saldanha, o João Sem Medo, afirmou que foi graças ao pernambucano que os jogadores brasileiros deixaram de ser chamados de frouxos pelos vizinhos.

Depois foi para o Fiorentina e Genova, na Itália. Em 1963, foi contratado pelo clube mais poderoso do mundo, o Santos de Pelé. Com a mítica camisa branca, foi campeão da Libertadores. Veio então a final doMundial Interclubes contra o Milan. Pelé, machucado, não atuou em nenhuma das duas partidas decisivas realizadas no Maracanã. O último jogo aconteceu no dia 16 de novembro de 1963. No vestiário, Almir ganhou uma “bolinha”, como os comprimidos de dopping eram chamados – nesse tempo não havia exames antidopping.

“Entrei em campo muito doido. Por que eu não ia querer? O bicho pela conquista do campeonato era 2.000 cruzeiros: dava para comprar um Volkswagen zerinho. Nós entramos em campo vendo o automóvel ao alcance da mão. Do outro lado, estavam os caras que podiam impedir isso”, contou Almir, em Eu e o futebol.

Inspirado pelo aditivo, Almir pisou no gramado com uma ideia fixa: partir ao meio o brasileiro Amarildo (O Possesso), que havia dito uma semana antes: “O Pelé já era”. “Não admitia que falassem aquilo do negão”, esbravejou Pernambuquinho. Com um minuto de jogo, O Possesso recebe a bola e corre pela direita. Almir afasta os próprios companheiros de defesa e chega primeiro em Amarildo, que leva um rochoso toco. Amarildo cai, berrando de dor. O jogo seguiu como uma batalha campal, debaixo de uma tempestade.

Numa dividida, Almir desferiu um violento chute na cabeça do goleiro Balzarini, fazendo correr um veio de sangue pela grama ensopada. Aos 35 do primeiro tempo, o lance que decidiu o Mundial: “Lima fez um cruzamento pelo alto, eu estava mais ou menos ali pela marca do pênalti. Ia chegar um pouco atrasado na bola, mas tinha de tentar, tinha de acreditar em mim. Vi quando Maldini, desesperado, levantou o pé, tentando cortar o lançamento. Eu tinha de dar tudo ali, naquele lance: meter a cabeça para levar um pontapé de Maldini, correr o risco de uma contusão grave, ficar cego, até mesmo morrer, porque o italiano vinha com vontade. Agora era ele ou eu. Meti a cabeça, Maldini enfiou o pé, eu rolei de dor pelo chão. O argentino Juan Brozzi não conversou, pênalti”. Dalmo cobrou e fez o gol da vitória santista. O Pernambuquinho, que também apanhou muito naquela noite, saiu de campo desfigurado. Os 120 mil torcedores no estádio gritavam o nome dele. Almir, coroado no lugar do Rei, garantia o bicho.

CONTRA O BANGU
Dois anos mais tarde, assinou contrato com o Flamengo. No clube do povão, ele já chegou ídolo e terminou o ano de 1965 como campeão estadual. Foi com a camisa rubro-negra que Almir protagonizou a maior confusão do futebol brasileiro de todos os tempos. No dia 18 de dezembro de 1966, o clube da Gávea encarou o Bangu pela final do Carioca, diante de um Maracanã com mais de 140 mil pessoas.


Na final do Mundial Interclubes, o atacante entrou para ser atingido por Maldini e garantir um pênalti. Foto: Reprodução

Naquela época, o Bangu tinha um patrono, o bicheiro Castor de Andrade, que financiou um timaço com Paulo Borges, Aladim, Cabralzinho e Ladeira, na linha de frente. O Flamengo também era uma boa equipe, mas bem inferior ao clube do subúrbio. Mas, além disso, Almir desconfiava que alguns companheiros haviam sido “comprados” pela contravenção, o que ele não admitia. O fato é que, ao final do primeiro tempo, o placar marcava 2x0 para o Bangu. Aos três minutos da segunda etapa, Borges assinalou mais um e a partida caminhava para um goleada histórica.

Almir não queria ver, de jeito nenhum, os adversários dando a volta olímpica no Maracanã – que ele considerava a casa do Fla. Decidiu, então, terminar, literalmente, com o jogo. Esperou uma oportunidade, que veio aos 26 minutos, quando Ladeira discutiu com o zagueiro rubro-negro Paulo Henrique. Almir entrou no bate-boca e armou uma confusão. Foi expulso de campo. Era exatamente o que queria para montar um ringue. “O Bangu disparou e foi aumentando a vantagem. Naquele embalo, a gente ia levar de enfiada. Resolvi acabar com aquele carnaval. Quem passou pela minha frente apanhou. Ainda hoje o Ladeira está correndo. Dei pernada, pontapé, soco e cabeçada. Fora os desaforos que disse a todo mundo”, revelou o Pernambuquinho.

As imagens da pancadaria impressionam, com jogadores, comissões técnicas, cartolas, radialistas e torcedores no centro do gramado trocando sopapos. A cena de Almir, com os punhos cerrados e endiabrado atrás dos banguenses, volta e meia ainda é mostrada na TV. O assustado juiz expulsou cinco do Flamengo, quatro do Bangu e a partida precisou ser encerrada. O Bangu não ergueu a taça, não deu a volta, e a torcida rubro-negra foi para casa gritando o nome de Almir dentro dos trens. “Ele armava, mesmo, confusões de caso pensado, como foi esta. Mas também era explosivo e perdia a paciência facilmente”, lembra Kfouri.

Aos 30 anos, e já bastante debilitado pela explosiva combinação de álcool, dopping e bofetões, Almir foi para o América-RJ, onde encerraria a carreira em 1968. O ex-atacante passou a sobreviver do dinheiro que recebia pelo aluguel de alguns imóveis que havia conseguido comprar na capital carioca. Sem jogar bola, Almir gastava o dia na praia, bebendo nos bares de Copacabana, o lugar que mais amava.

Na noite de 6 de fevereiro de 1973, Almir foi ao bar Rio-Jerez, na Galeria Alaska, um lugar frequentado por prostitutas, travestis e boêmios. Ao lado, estavam alguns atores do grupo teatral Dzi Croquettes, ainda maquiados e com as andróginas roupas de cena. Uns portugueses que estavam perto começaram a perturbar os Dzi Croquettes. Almir reclamou e saiu em defesa dos atores, que conhecia apenas de vista. Começa então a discussão e um dos portugueses saca a arma. Um amigo de Almir que estava no Rio-Jerez puxou outro revólver e houve tiroteio. Quando a polícia chegou, Almir estava morto na calçada, com uma bala na testa. Terminava, ali, com contornos rodriguianos, a vida do menino-explosão. No entanto, até hoje, sempre que um time humilha outro num clássico, é possível escutar alguém dizendo “Ah, se Almir estivesse em campo...”. 

AQUILES LOPES, jornalista.

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