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TEXTO José Cláudio

01 de Março de 2013

Esta é a foto que serviu para fazer minha dentadura: eu abraçando o pintor Gilvan Samico

Esta é a foto que serviu para fazer minha dentadura: eu abraçando o pintor Gilvan Samico

Foto Manoel Novaes/Divulgação

Meus oitenta anos têm sido mais comemorados do que os cem de Luiz Gonzaga. Os dele, pelos outros. Eu, felizmente, ainda como minha farinha, de preferência com linguiça matuta. Bem curtida. E torrada. “Essa é mais saborosa”, me disse a vendedora no Mercado da Encruzilhada, “mas precisa ter dente”. “Quero ela”, eu disse à mulher.

Quando menino, eu morria de inveja de menino que faltava dente. Principalmente da frente e de cima, pela capacidade de cuspir pela falha. De debaixo também. Nada sabia de cárie, de aparência, de posição social. Invejava o velho Balbino, “velho” porque velho-de-pastoril, negro grandalhão, calunga-de-caminhão do caminhão de Seu Barreto que carregava açúcar da usina. Também saía vestido de mulher no Carnaval, a saia comprida de chitão arrastando no chão, um dentão único de debaixo, da frente, que enfiava no buraco da venta, engolindo o beiço de cima, os olhos arregalados parecendo o cão.

Em Ipojuca tinha muito menino banguelo, menino só não, os dentes apodrecendo e ficando os cacos ou as raízes pretas aparecendo nas gengivas. Velho, nem se fala. “Eu tenho um caco de dente/que já comeu coisa boa.” Era considerado normal. No Benin ninguém sabe o que é uma cárie. Perguntei a um pintor de lá, da cidade de Uidá onde eu estava, se não havia dentista no Benin. “Tem na capital, Cotonu, para os estrangeiros”, me respondeu. Lá, no caso dos muito velhos, os dentes caem inteiros, feito de criança, da primeira dentição. Fui até o Abomei, mais para o interior, e não vi um banguelo nem novo nem velho. Outra coisa interessante é que, em certos tipos de velhas, os peitos, em vez de caírem vão enrijecendo para cima, meio engelhados, feito chifre de bode. Isso eu mesmo vi, já que homens e mulheres de todas as idades lá andam nus da cintura para cima na rua e em todos os lugares.

Mas voltando a Ipojuca, não tinha dentista nem médico. Quem podia, vinha arrancar dente no Recife. Com anestesia. Mas meus dentes sempre tinham sido bons, assim como os de minhas irmãs, que bons continuam até hoje, a que eu saiba. Nunca me imaginara totalmente banguelo na velhice, também porque, como a maioria, não calculei chegar a essa idade. Tinha a ilusão de não perder, pelo menos, os dentes da frente, como aconteceu com minha mãe, que morreu com os dela, com quem me achavam parecido, e que viveu mais de noventa anos, agora comum. De uns tempos para cá, os meus foram se estragando rapidamente. Uma infecção me obrigou a extrair metade da boca de uma vez. Ficou um único da frente da parte de cima. Me lembrava que uma mulher perguntou a Voltaire se falava inglês. Voltaire repondeu: “Minha senhora, para falar inglês é preciso ter dentes. E eu não tenho”. Também me lembrava de Cervantes, que diz no seu autorretrato no prólogo das Novelas exemplares que tinha “poucos e desencontrados”. Mas o consolo de poder imitar o velho Balbino me foi negado, porque o meu único dente era de cima.

Amigos começaram a falar em implante. Eu simpatizava com a ideia, embora prevenissem do preço. “Prepara o bolso.” E eu pensava: para que tanto luxo, eu já desta idade? Antes, quando ainda restavam alguns dentes, cheguei a usar uma prótese, dessas que chamam “perereca”, para manter as aparências. Embora ninguém se preocupasse muito com a funcionalidade, a má aparência causava nojo. Era desleixo. Ou outro defeito pior: pobreza, sinônimo de decadência moral e física, ou física como consequência da moral. Para fixar a perereca, usava uma cola de difícil remoção do céu da boca quando tirava a intrusa para comer ou para dormir. Foi um alívio um dos dentes em que a peça era enganchada se quebrar e me livrei dela. Devido à sobrecarga de mastigação num único dente, na certa avariado, tudo que batia doía, até caroço de feijão ou arroz: Léo, minha mulher, tinha de passá-los no liquidificador.

Depois de exames, acertamos o preço. Dividido. Levei uma foto minha, rindo, abraçado com Samico, para verem como era minha dentadura original. Fiz de uma vez toda a parte de cima, de canto a canto, uma manhã inteira de boca aberta. Durante meses fiquei com os pinos enfiados no osso, cobertos por uma tampinha. Os inferiores, também todos de uma vez algum tempo depois. Uma alegria inédita essa de ter dentes. Porque os naturais só se fazem notar quando doem. Adeus broca, adeus fazer canal. Renova-se a alegria de viver. Dizem até que fiquei mais moço. Deve ser safadeza. Per-Ingvar Brånemark, muito obrigado. 

JOSÉ CLÁUDIO, artista plástico.

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