Na alma “sempre coletiva” desse Corpo está a família Pederneiras, seis irmãos e suas extensões – namoradas e amigos – movidos pelo desejo de dançar. “E como, naquela época, não havia nenhuma companhia profissional de dança em Belo Horizonte, resolvemos criar a nossa, onde nós tivéssemos o poder de decisão”, lembra Rodrigo, o irmão que é coreógrafo residente do grupo desde 1981.
Misturando ousadia a uma postura visionária e atitude empreendedora, os 12 amigos, liderados pelo irmão diretor, Paulo, conheceram o sucesso desde os primeiros capítulos da história, com a enorme repercussão do espetáculo de estreia Maria, Maria (1976), que tinha roteiro de Fernando Brant e trilha original de Milton Nascimento. “De uma hora para outra, aquela companhia recém-formada por amigos sonhadores da capital mineira foi convidada para ir à Argentina, depois ao Chile e ao Uruguai. De lá para a Europa, Estados Unidos e mundo afora”, lembra Rodrigo.
TRÊS FASES
Rodrigo Pederneiras costuma dividir a trajetória da companhia em três fases. Nos anos iniciais, a equipe de criação era externa e predominava a base clássica, inclusive nas escolhas musicais. Os roteiros eram teatralizados com personagens e narrativas lineares, com começo, meio e fim bem definidos. O coreógrafo convidado para a estreia da companhia, o argentino Oscar Arraiz, trazia com ele iluminador, cenógrafo, figurinista. Na segunda fase, Rodrigo já assinava as coreografias e Paulo, além de continuar na direção, começou a criar iluminação e cenografia dos espetáculos. O marco inicial dessa etapa é Prelúdios (1985), considerado pela crítica especializada como primeira obra-prima de base clássica da dança brasileira. Naquela época, o coreógrafo começou a investir numa linguagem mais abstrata, porém utilizando quase sempre música clássica como trilha. “Só aí, deixamos de ser a companhia que dançava Maria, Maria e fomos reconhecidos como Grupo Corpo, criando uma identidade própria”, pontua o coreógrafo.
Segundo ele, desde 1992, uma nova fase se inaugurou, caracterizada pelo uso de trilhas sonoras originais e o aprofundamento da busca de uma linguagem brasileira de dança. Das motivações para criar esse vocabulário de movimento genuíno, ele diz que “estava cansado de ver bailarinos brasileiros tão bons tentando imitar estéticas/técnicas estrangeiras, como a dança moderna de Martha Graham. A gente tem que parar de ficar olhando para fora e seguir tendências europeias, como se fossem verdades únicas, absolutas. Se eles fazem dessa forma, que bom! Mas nós podemos fazer outras coisas bem diferentes, e de igual valor. Eu sempre trabalhei com base clássica, então, na minha busca, pensava no que podia fazer para quebrar com isso. Tudo estava tão claro e eu não conseguia enxergar”.
À frente do Grupo Corpo, junto ao irmão Paulo, está o coreógrafo
Rodrigo Pederneiras. Foto: Divulgação
Observando o jeito do brasileiro se mexer, e suas danças populares, Pederneiras percebeu que a essência do que buscava estava no movimento da bacia. “Investigando, nos próprios ensaios do Corpo, e baseados no que víamos e vivíamos nas culturas populares, criamos essa assinatura. Acho que nós, brasileiros, ainda fazemos muito ‘salamaleque’ para o que fala o New York Times, valorizando tudo que vem de fora. Somos muito bons e precisamos acreditar nisso.” Capitaneados por Paulo Pederneiras, os bailarinos partiram dessa crença e trilharam um caminho marcado pelo sucesso.
ESTRATÉGIAS
Conhecido por um genuíno sentido de união, Paulo batizou o grupo de Corpo para conceituar a companhia, pois a pretensão era que tudo fosse decidido e realizado coletivamente e de forma autoral. A ousadia, outra marca do diretor, também está presente em nas páginas dessa história.
Quando montaram Maria, Maria, ele reservou o melhor teatro de Belo Horizonte para a temporada de estreia, o Palácio das Artes. Para a equipe de criação, Paulo convidou os melhores profissionais que conhecia. Ganharam dinheiro com aquele espetáculo e decidiram reinvestir na companhia a maior parte da receita, estabelecendo salários baixos para cada um, mas fazendo questão de assinar a carteira e profissionalizar a relação desde o início.
Parabelo é uma das montagens da turnê nos EUA e na Europa.
Foto: José Luiz Pederneiras/Divulgação
Outra ideia de Paulo foi a venda de pacotes de espetáculos. Já que todos os contratantes e patrocinadores só queriam comprar apresentações de Maria, Maria, eles passaram a fazer propostas dois em um, e assim conseguiram se livrar do estigma de companhia de um espetáculo só. Produzir CDs com as trilhas originais dos espetáculos foi outra estratégia bem-sucedida.
Nos relatos, fica nítida a importância da música no processo criativo do Corpo, o que Rodrigo confessa ser uma influência direta dele: “Na verdade, eu queria ser músico. Cheguei a fazer aulas de violão clássico, mas sou preguiçoso demais para essa função. Tenho muitos amigos músicos e sempre fui fã de música clássica. Porém, a ideia de convidar compositores também foi do Paulo. E nós dois fazemos sempre questão de acompanhar de perto o processo de criação da trilha. E só a partir daí é que começo a desenvolver a coreografia”.
PERFIL DO BAILARINO
Passados os anos, a busca da linguagem autoral começa a dar resultados visíveis, e o Grupo Corpo se torna referência nacional e sonho de consumo dos bailarinos brasileiros. Nem a fama de exigente do coreógrafo nem a carga horária diária de seis horas desanimavam os candidatos que vinham de todos os cantos do país para as audições da companhia.
“Era um processo muito sacrificante. Da última vez, foram 480 candidatos para duas vagas. É uma sacanagem com os bailarinos. Então, passamos a utilizar pessoas que já fazem aulas conosco ou que são indicados por outros bailarinos do elenco, quando precisamos contratar. Mas não é comum, pois temos os mesmos profissionais há bastante tempo na companhia. As pessoas não costumam sair, a não ser quando se aposentam. Acho que porque, além de um bom salário, garantias trabalhistas, e oportunidades de viagens, o Grupo Corpo alia o profissionalismo com uma relação afetiva, familiar. A equipe de criação trabalha junta há quase 40 anos, isso gera um ambiente de cumplicidade, de total confiança”, explica Rodrigo.
Com trilha de Milton Nascimento, o espetáculo Maria, Maria garantiu o sucesso na estreia do grupo, em 1976. Foto: José Luiz Pederneiras/Divulgação
Mesmo sabendo que o Corpo não faz audições há muito tempo, os que desejam ser intérpretes da companhia dão um jeito de se aproximar. Para os que estão nesse caminho, Rodrigo avisa que, apesar do molejo tipicamente brasileiro que vemos no palco, o bailarino do Corpo “tem que ter domínio da técnica clássica, pois essa é a base da nossa linguagem. Quando não estamos viajando, o elenco cumpre uma carga horária de trabalho, de segunda a sexta-feira, com aulas de balé clássico todos os dias. A aula não muda. A pesquisa de linguagem é desenvolvida nos ensaios. O bailarino deve ter afinidade com a movimentação do Corpo, que exige coordenação motora apurada”.
Mesmo não existindo uma fórmula universal para o sucesso profissional, as escolhas e estratégias dos Pederneiras, ao longo desses 38 anos, são lições úteis para todos os que decidiram fazer da arte o seu ofício. Então, é bom prestar atenção em mais essa dica do coreógrafo residente do Corpo: “Continuidade é a palavra-chave, é o que falta. Sem ela, ninguém consegue desenvolver um trabalho sólido, principalmente, um trabalho que acontece no corpo e precisa de tempo, senão fica impossível qualquer assimilação”.
E por falar nisso, o principal projeto da companhia para este ano é dar continuidade às suas tantas iniciativas, como a Corpo Escola de Dança, e a Ong Corpo Cidadão, que atende 600 crianças e adolescentes nas periferias de Belo Horizonte, além do trabalho da companhia, claro. O próximo espetáculo, ainda sem título, estreia em São Paulo, em agosto. Eles convidaram Lenine, novamente, para compor a trilha, e, dessa vez, ele está trabalhando em parceria com o filho Bruno.
“A ideia é usar somente instrumentos de corda, do violino ao berimbau. E está ficando muito bom”, adianta Rodrigo. Com a espontaneidade apaixonada de um iniciante e a sabedoria de um mestre, ele ensina: “As pessoas costumam dizer que a gente chegou lá. Mas lá, onde? Não tem aonde chegar. Se chegar, acaba. O Grupo Corpo não chegou a lugar nenhum. Pelo contrário, nossa preocupação é manter o frescor, é estarmos sempre nos renovando, reinventando-nos”.
CHRISTIANNE GALDINO, jornalista e mestre em Comunicação Rural pela UFRPE.