Arquivo

Erudição pop: Filosofia como espetáculo

O polêmico Slavoj Žižek, que virá ao Recife pela primeira vez este mês para uma palestra, escreve para poucos e lança provocações à plateia

TEXTO Marcelo Abreu

01 de Março de 2013

Slavoj Žižek

Slavoj Žižek

Foto Reprodução

Ao se deparar com um livro de 900 páginas, escrito por um pensador da Eslovênia contemporânea, sobre o sistema filosófico do alemão Georg Wilhelm Friedrich Hegel (1770-1831), o leitor em potencial pode se assustar e achar que a obra é inalcançável ou ilegível. Mais ainda, se souber que o filósofo esloveno faz uma leitura de Hegel à luz do alemão Karl Marx (1818-1883) e do psicanalista francês Jacques Lacan (1901-1981), todos autores considerados difíceis. No entanto, Slavoj Žižek, o pensador em questão, é tudo, menos um personagem aborrecido, pelo menos quando fala em público sobre seu trabalho. Žižek tornou-se, nos últimos 15 anos, uma figura indispensável no panorama acadêmico e político internacional, quase um filósofo-espetáculo que, adotado por setores de esquerda, visita protestos de rua, aparece na mídia com frequência e até, segundo especulam, paquera celebridades como Lady Gaga.

É essa figura popular que estará no Recife pela primeira vez, no dia 15 de março, para fazer uma palestra organizada pela revista ArtFliporto, que inaugura a série de eventos mensais intitulados ArtFliporto Apresenta. Žižek chega para lançar seu livro Menos que nada – Hegel e a sombra do materialismo dialético, pela Editora Boitempo, o tal calhamaço de 900 páginas no qual defende uma volta a Hegel “para repetir e exceder seus triunfos, superar suas limitações e ser mais hegeliano que o mestre em si”.

O que esperar de uma palestra desse esloveno de 63 anos que se veste com roupas surradas, usa um cabelo grande, grisalho e fala pelos cotovelos, num misto de tiradas engraçadas e erudição filosófica. Há dois anos, por exemplo, Žižek fez uma palestra no palco do tradicional Cinema Odeon, no centro do Rio de Janeiro. O público era composto de estudantes universitários e gente de esquerda. Ele chegou ao local atrasado e suado. Vestia uma calça jeans e uma camiseta escura, como tem sido seu estilo. Ao contrário do protocolo de agradecimentos que cerca essas reuniões acadêmicas, iniciou com um seco “boa- noite” e foi direto ao assunto. “O negócio é o seguinte: o capitalismo...”. E aí avançou na sua habitual, prolixa e quase convulsiva crítica dos tempos atuais dominados pelo liberalismo econômico.

Na sua erudição pop, Žižek faz referência a tudo e a todos. Acompanha o noticiário para oferecer interpretações inovadoras dos fatos cotidianos à luz da psicanálise, filosofia, sociologia e crítica cultural. Não oferece nenhum modelo claro de resistência, passa ao largo de muitas evidências, mas, como diz a velha tirada, se os fatos nem sempre confirmam as teorias, pior para os fatos.

Em 2011, a base para a sua palestra era o então recém-lançado livro Vivendo no fim dos tempos, que trata do que chama de “quatro cavaleiros do apocalipse”: a crise ecológica, as consequências da revolução biogenética, os desequilíbrios do sistema capitalista e o crescimento das divisões sociais. Em 2012, lançou O ano em que sonhamos perigosamente, que aborda os protestos mundiais contra a elite financeira e regimes políticos (a ocupação de Wall Street e a chamada Primavera Árabe que, para o autor, é primavera, verão, outono e inverno árabe, tudo junto).

ANTIGA IUGOSLÁVIA
Slavoj Žižek nasceu em 1949 em Liubliana, capital da pequena República Popular da Eslovênia, então parte da federação iugoslava. Portanto, cresceu dentro de um regime proclamado como marxista. Na prática cotidiana, foi influenciado pelo comunismo, mas elaborou uma crítica ao marxismo já nos seus primeiros trabalhos acadêmicos. Estudou Filosofia e Sociologia em Liubliana e Psicanálise em Paris. Traduziu para o esloveno textos de Jacques Lacan, Jacques Derrida, Sigmund Freud e Louis Althusser. Em 1973, perdeu o emprego na Eslovênia porque sua dissertação de mestrado foi considerada como não marxista. Tornou-se uma espécie de dissidente tolerado. Em 1988, decidiu sair do Partido Comunista da Iugoslávia, em protesto pela condenação de quatro pessoas acusadas de divulgarem segredos do Exército do Povo. Dois anos depois, candidatou-se a presidente da recém–independente República da Eslovênia, pelo Partido Liberal Democrático, mas não foi eleito.

Seu primeiro livro em inglês, O sublime objeto da ideologia, saiu em 1989 e, a partir daí, sua fama foi se espalhando. Já tem mais de 70 livros lançados e traduzidos em muitas línguas. No Brasil, são pelo menos 17 títulos publicados. Participou de 10 documentários, um deles intitulado simplesmente Žižek, dirigido pela canadense Astra Taylor, totalmente dedicado à sua trajetória. Em Examined life, outro documentário de Taylor, que aborda a filosofia, o esloveno fala de estética ao lado de um depósito de lixo, bem ao gosto do seu estilo performático.

Tem sido convidado a ensinar em muitas universidades norte-americanas e virou figura carimbada nos movimentos contestatórios tipo Occupy Wall Street. Onde, aliás, fez um discurso na rua para os manifestantes, sem microfone, tendo sua mensagem reproduzida como uma onda através da voz dos militantes mais próximos, como nos tempos de 1968.

Seu sobrenome, com dois pequenos sinais diacríticos em formato de “v”, sobre a letra “z”, próprio da escrita eslovena (o que torna a pronúncia equivalente a Jíjek), virou marca registrada no circuito internacional de palestras e páginas de opinião dos grandes jornais.

Polêmico, tem estado nas manchetes com afirmações provocadoras. “O problema de Hitler é que ele não foi violento o suficiente. Gandhi foi mais violento do que Hitler”, afirmou. Em seguida, defendeu-se das reações apresentando novas definições para velhos conceitos. “A verdadeira violência é a violência da mudança social.” Segundo ele, as atitudes de Gandhi foram, no fim das contas, mais radicais e efetivas, conseguindo liberar a Índia do colonialismo, do que os tanques de Hitler, que acabaram perdendo a guerra. Aliás, Žižek sempre demonstra uma fascinação pela violência e chegou até a afirmar que “o amor é um ato muito violento”.

Ele critica o multiculturalismo e o politicamente correto. É contraditório em relação ao stalinismo (talvez mais como charme e provocação do que como opinião sincera). Gosta de fazer referências ao cristianismo e, certa vez, afirmou ser um “materialista cristão”. Já descreveu sua obra também como uma “teologia materialista”.

QUESTÕES DE ESTILO
A despeito da verve, da produtividade estonteante e do sucesso editorial, seguir um texto do esloveno pode, pelo menos nos livros, deixar uma pessoa desnorteada. As frases são longas, o estilo é denso e cheio de referências, que remetem a outros pensadores contemporâneos e exigem também um conhecimento profundo da História da Filosofia.

Žižek aparenta ter lido tudo. Além de filosofia e psicanálise, utiliza-se de conceitos da física, biologia, história, literatura e do cinema para criticar tudo e todos. Apesar do verniz incendiário, suas ideias têm um componente paradoxal, que torna possível interpretá-las até mesmo como conservadoras ou de direita. No fim, o leitor sai confuso, sem saber se entendeu corretamente, mas com uma sensação de divertimento, um prazer difuso em perceber que as coisas não precisam ser como são.

As críticas ao seu estilo não são poucas. Escrevendo no periódico Film-Philosophy, o ensaísta Edward O’Neal assim define o estilo de escrita de Žižek: “um estonteante arsenal de estratégias retóricas enlouquecedoras e divertidas é apresentado com o objetivo de seduzir, intimidar, emudecer, deslumbrar, confundir, enganar, oprimir e, de forma geral, subjugar o leitor para que ele aceite (os argumentos)”.

O acadêmico norte-americano Geoffrey Galt Harpham diz que o estilo de Žižek é “um fluxo de unidades não consecutivas, arranjadas em sequências arbitrárias que solicitam uma atenção esporádica e descontínua”.

No World Socialist Web Site, portal trotskista norte-americano, Bill van Auken e Adam Haig o acusaram de ser um “charlatão intelectual mascarado de esquerdista”, cujo marxismo é “contaminado pelo stalinismo e maoísmo”.

O próprio capitalismo produz esse tipo de personagem, um fenômeno mundial que percorre universidades e auditórios, denunciando o sistema, redefinindo conceitos e defendendo um regime comunista puro. No fim das contas, nada acontece, muita gente se diverte e a sociedade baseada no consumismo avança.

Enquanto isso, a fama de Žižek só aumenta. Em breve, suas ideias servirão de argumento para um espetáculo de ópera a ser encenado pela companhia da Royal Opera House, de Londres. Suas intervenções públicas estão em vídeos no YouTube. Há até uma publicação somente dedicada ao seu pensamento, o International Journal of Žižek Studies.

Esse papel do intelectual público, globalizado, provocador, com um quê de palhaço, é abordado pelo filósofo inglês John Gray, em artigo publicado em The New York Review of Books, em 2012. Ele afirma que “o radicalismo sem forma de Žižek se adapta muito bem a uma cultura paralisada pelo espetáculo de sua própria fragilidade”. Para Gray, o papel de intelectual público mundial que o esloveno desempenha “surgiu juntamente com um aparato de mídia e uma cultura da celebridade que são parte do modelo atual de expansão capitalista”. E acrescenta que “Žižek criou uma crítica que afirma repudiar praticamente tudo o que existe, mas que, ao mesmo tempo, reproduz o dinamismo compulsivo, sem propósito, que ele vê nas atividades do capitalismo”. 

MARCELO ABREU, jornalista e autor de livros-reportagem e de viagem, como De Londres a Kathmandu.

veja também

Hollywood: Salário minguado para as estrelas

Pessach: Comida à mesa em memória da libertação

Geneton Moraes: O homem que sabe perguntar