O uso de repetições de onomatopeias, lalalás, nananás e papapás é recorrente na história da música; veio como uma forma de completar e potencializar o refrão – conjunto de versos originário nas antigas cantigas populares, anterior ao advento das gravações musicais. Com o registro das músicas em disco e o surgimento da música pop, o estribilho passou a ser supervalorizado, entendido como a maneira fácil de fazer uma canção “grudar” . O “grande” refrão passou a ser a obsessão desse tipo de música – algo que um artista que deseja firmar-se nesta área deve encontrar logo, logo.
VERME DE OUVIDO
O refrão é o principal pilar do que se denominou bubblegum. Segundo Roy Shuker, no Vocabulário de música pop: “Rótulo depreciativo, aplicado a um gênero de música pop extremamente comercial, surgido no final de década de 1960, produzido para o público pré-adolescente e refletindo seu emergente poder aquisitivo. O termo deriva dos jingles das propagandas de chicletes influenciados pelo rock. Foi um fenômeno basicamente norte-americano, associado ao selo Buddah e a grupos como The Lemon Pipers, The Archies (cujo single Sugar Sugar foi o campeão de vendas de 1969) e Ohio Express (Yummy Yummy Yummy). As gravações bubblegum usavam muitos músicos de estúdio”.
O estilo bubblegum gerou um punhado de grupos e artistas bem-sucedidos comercialmente, como The Monkees, Tommy Roe e Tommy James and the Shondells. Como definiu o mítico crítico musical americano Lester Bangs, era o “lixo pop caído do céu”. Posteriormente, o termo foi ampliado e passou a ser aplicado para a música popular considerada comercial e destinada ao sucesso. Sua fórmula conta com melodias e ritmos marcantes, com refrões cativantes que “ficam martelando na cabeça e não saem”.
O refrão e as onomatopeias são os principais veículos que produzem aquele estado em que uma pessoa é apoderada por uma música grudenta (sticky music) – o que se chama de stuck-song syndrome (ou síndrome da canção empacada), cognitive itch (coceira cognitiva), brainworm (verme de cérebro) ou earworm (verme de ouvido). Esse último termo foi usado pela primeira vez na década de 1980 (como uma tradução literal do alemão ohrwurm), mas seu conceito surgiu na década de 1920, com o compositor e musicólogo Nicholas Slonimsky, que estava deliberadamente inventando formas ou frases musicais que pudessem forçar a mente à repetição. Já em 1876, o escritor Mark Twain escreveu o conto A literary nightmare, depois reintitulado Punch brothers puch, no qual o narrador se vê indefeso frente a “rimas cadenciadas”.
No entanto, a praga da sticky music veio mesmo com o surgimento e a popularização da gravação de discos e do rádio. Antes, só se ouvia música nos concertos, nos saraus e nas igrejas. A partir do começo do século 20, as gravações invadiram os lares e hoje estão por toda parte: no trabalho, na escola, na rua, nas lojas, nos restaurantes, nos consultórios e ainda podemos levá-la para onde quisermos, em telefones, iPods ou em qualquer xingue-lingue que toque MP3.
O escritor e neurologista Oliver Sacks acredita que até uma música sem letra pode ser irresistível. Foto: Reprodução
FATORES GRUDENTOS
A pesquisadora inglesa Vicky Williamson, especializada em psicologia da música, estudou o fenômeno das músicas grudentas, a partir de mais de 2,5 mil relatos. “Quando analisei mais de mil canções pegajosas, percebi que apenas meia dúzia havia sido citada mais de uma vez – o que mostra quão heterogênea foi a resposta das pessoas. É um fenômeno individual”, defende.
A estudiosa afirma que alguns fatores promovem a permanência de uma música na cabeça: exposição recente e/ ou repetida; palavras que desencadeiam a memória de uma canção; pessoas que associamos a uma música; situações que remetem a ela; estresse; surpresa; sonhos e devaneios. Williamson afirma que isso pode ser parte de um fenômeno mais amplo, chamado “memória involuntária”, como quando alguém tem vontade de comer algo por se lembrar de um alimento.
O especialista em neurociência da música, Daniel Levitin, da Universidade McGill, de Montreal, sugere que o fenômeno pode ser explicado pela evolução humana. “Por um longo período, nós precisávamos lembrar informações do tipo: onde fica o poço mais próximo, que tipos de comidas são venenosas e como tratar feridas para evitar infecções. Como a escrita só foi inventada há cinco mil anos, enquanto os humanos existem há 200 mil anos, a música foi usada como técnica de memorização. Essa prática continua até hoje, sobretudo em culturas com forte tradição oral. A combinação de ritmos, rimas e melodia faz com que músicas sejam mais fáceis de se memorizar do que apenas palavras.”
Para quem quiser tirar uma música pegajosa da cabeça, Levitin sugere: “Pense em outra música, que talvez possa expulsar a canção da sua cabeça”. Esse é exatamente o propósito dos sites Unhear it e Desescute. Neles, a vítima da sticky music encontra sugestões de outras canções que possam ocupar o lugar da que está atazanando o seu cérebro – trata-se de uma solução paliativa, obviamente.
“É muito curioso que todos nós, em vários graus, tenhamos música na cabeça”, afirma o escritor e neurologista Oliver Sacks, mais conhecido como autor do livro que originou o filme Tempo de despertar (1990). Para ele, não faz diferença se essas músicas tenazes possuem palavras ou não. “Os temas sem letra de Missão impossível e da Quinta sinfonia de Beethoven podem ser tão irresistíveis quanto um jingle publicitário no qual a letra é quase inseparável da música.”
O single Sugar Sugar do grupo The Archies é um dos símbolos do bubblegum.
Imagem: Reprodução
COMO UMA SÍNDROME
No livro Alucinações musicais, Sacks afirma que o fenômeno dos brainworms assemelha-se ao modo como os portadores da síndrome de Tourette (caracterizada por tiques motores e vocais) ou de transtorno obsessivo-compulsivo podem ser fisgados por um som, uma palavra ou um ruído e repeti-lo, ecoá-lo em voz alta ou para si mesmos por semanas a fio. “Mas enquanto a repetição involuntária de movimentos, sons ou palavras tende a ocorrer em portadores de síndrome de Tourette, de distúrbio obsessivo-compulsivo ou de lesão nos lobos frontais do cérebro, a repetição interna automática ou compulsiva de frases musicais é quase universal – o mais claro sinal da avassaladora e, às vezes, irresistível sensibilidade do nosso cérebro à música.”
O estudioso, que é também músico, faz uma comparação da forma distinta de como o cérebro trata a música e a visão. “Há uma necessidade de construir um mundo visual para nós, daí resultando que um caráter seletivo e pessoal impregna nossas memórias visuais desde o início. As músicas, em contraste, já recebemos construídas. Uma cena visual ou social pode ser construída ou reconstruída de inúmeros modos, mas a recordação de uma música tem de assemelhar-se ao original. É claro que ouvimos seletivamente com diferentes interpretações e emoções, mas as características musicais básicas de um composição – o tempo, o ritmo, os contornos melódicos, e até mesmo o timbre e o tom – tendem a ser preservados com notável exatidão”, observa.
Para o psicólogo da música Daniel Mullensiefen, da Goldsmiths University of London, todo sucesso musical surge da combinação entre matemática, ciência, engenharia e tecnologia. “Eles usam desde frequências de som, que determinam altura e harmonia, até processadores hi-tech, que podem adicionar efeitos para fazer uma música mais ‘grudenta’”.
Um estudo feito por pesquisadores ingleses da universidade, ao observar grupos de pessoas voluntariamente, chegou a uma lista das canções mais pegajosas. O segundo lugar da pesquisa ficou com Y.M.C.A., do Village People, a terceira posição foi ocupada por Fat lip, do Sum 41. E a mais grudenta seria We are the champions, do Queen. No entanto, outro estudo recente da mesma instituição apontou Lady Gaga nas duas primeiras posições com Bad romance e Alejandro. Será que esse pessoal conheceu Ai, se eu te pego?
A vingança dos afetados pelas músicas grudentas é que a convivência forçada com elas ocorre por um período determinado, seja um dia, sejam semanas, meses até, mas seus autores e cantores estão condenados a suportá-las para o resto da vida. Viu, Michel Teló?
DÉBORA NASCIMENTO, repórter especial da revista Continente.