Arquivo

Recife, “cidade anfíbia”

A conexão referencial da capital pernambucana com seu principal rio, do qual explora pesca, esporte, habitação, transporte, arte e poesia

TEXTO PAULO CARVALHO
FOTOS CHICO LUDERMIR

01 de Fevereiro de 2013

Foto Chico Ludermir

No seu Guia prático da cidade do Recife, Carlos Pena Filho sugere que a cidade seria “Metade roubada ao mar,/ metade à imaginação”. Mas talvez fosse ainda preciso dizer sobre a cidade de Manuel, João e Joaquim, como lembra mais adiante Carlos, em referência a três nomes que fizeram indissociáveis a nossa paisagem e a nossa poesia, que se trata de uma cidade roubada, além de tudo, ao rio.

Recife, “cidade anfíbia”. Não se poderia, portanto, falar dela, dos recifenses ou dos muitos estrangeiros que a babelizaram à mais alta potência, sem mergulhar no Capibaribe. Sem ser apanhado pela brisa que circula graças às curvaturas que o curso do rio singra por entre casas e prédios, sobrados e mocambos. Sem ser encarado, enfim, pela pobreza e riqueza extremas, imiscuídas em visadas tão raras quanto bonitas, duplicadas pelo espelho d’água. Perguntamos, aqui, sobre a relação íntima, especular, ditosa e miserável, molhada e nem sempre catingosa e infecta que esta cidade estabeleceu com suas águas internas.

Chega-nos de Josué de Castro a primeira tentativa de aproximação. “Planície constituída de ilhas, penínsulas, alagados, mangues e pauis, envolvidos pelos braços d’água dos rios que, rompendo passagem através da cinta sedimentar das colinas, se espraiam remansosos pela planície inundável. Foi nesses bancos de solo ainda malconsolidados – mistura ainda incerta de terra e de água – que nasceu e cresceu a cidade do Recife, chamada de cidade anfíbia, como Amsterdã e Veneza, porque assenta as massas de sua construção quase dentro de água, aparecendo numa perspectiva aérea, com seus diferentes bairros flutuando esquecidos à flor das águas.”


Águas do Recife inspiraram poetas, como João Cabral de Melo Neto

Flutuante, o Recife estabeleceu uma conexão referencial com o Capibaribe. O Rio das capivaras, segundo a famosa toponímia indígena, forneceu-lhe riquezas e amparou-lhe a pobreza mais absoluta. Dele, o Recife explorou o negócio flutuável, a navegação fluvial, áreas alagadas para habitações miseráveis. O rio transfigurou o Recife e a cidade não menos transfigurou o rio. Nós o vimos e vemos, mas, como escreveu Joaquim Cardozo em poema dedicado a Burle Marx, também a “terra do mangue” tem olhos que viram e veem o “progresso”.

PORTO
Para entender como esse agenciamento do recifense com o Capibaribe se deu historicamente, é necessário lembrar que o Recife foi a segunda centralidade de Pernambuco. Na primeira, Olinda, desenvolveu-se um centro socioeconômico cultural, já no século 16, apoiado pelo Cais do Varadouro.

“Como o Porto do Varadouro não tinha acesso direto ao mar, era dominado pela rede fluvial, no caso, formada pelo Beberibe e seus canais de afluentes”, explica Antenor Vieira de Melo, arquiteto e professor do Departamento de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal de Pernambuco. O Varadouro foi o primeiro grande porto do país. Um cais fluvial, de água doce, por onde chegavam pequenas e médias embarcações. Com o passar do tempo, a atividade comercial de Pernambuco foi crescendo, a logística de transporte exigiu um porto maior. Foi quando o Recife despontou.

“A economia baseada na cana-de-açúcar precisava de um transporte rápido e investimentos em infraestrutura. O Recife fornecia naturalmente, pelos arrecifes, um cais e, adentrando pelas terras, onde ficariam os engenhos, o Capibaribe”, explica Vieira de Melo. Os engenhos se formaram ao longo do rio, utilizando o Porto do Recife para escoar sua produção. Tratou-se de uma estratégia racional que transportava a mesma mercadoria por terra, rio e mar. “O Porto do Recife reuniu daí sua importância econômica, logística, transformando Pernambuco no centro do país”, observa o arquiteto.


Desenho retrata navegação no rio, no Bairro da Madalena

O Recife nasce orgânico, exercendo o rio (na verdade, os rios, já que além do Capibaribe e do Beberibe, temos o Tejipió) um papel indispensável na articulação de seus bairros. Como lembra Evaldo Cabral de Mello, esses bairros surgiram de maneira descontínua, ganglionar ao longo do rio, conforme os antigos donos de engenhos, em crise, iam se desfazendo de partes de suas terras. Na segunda metade do século 18, surgiram os povoamentos do Poço da Panela, da Caxangá e da Várzea, os “subúrbios coloridos” exaltados por Pena Filho.

“Em poucos lugares do Brasil você tem os ângulos de abertura, de ventilação, de reflexão. Isso é fantástico. Muitas fotografias exploram esse aspecto duplo do Recife. Uma cidade que está amarrada no cais e outra que está no rio, parecendo que será arrastada até o mar por ele”, sugere Vieira de Melo.

A ocupação das ilhas e da bacia de manguezais deu-se a partir da chegada holandesa, em 1631, logo depois dos invasores terem incendiado Olinda. A Ilha de Antônio Vaz (área que, hoje, compreende os bairros de Santo Antônio, São José, Cabanga e Coque), a mais próxima do istmo do Recife , recebe uma grande leva dessa população. A geografia da cidade se aproximava do estilo de urbanização flamenga. A diferença na ocupação de Olinda e do Recife evidenciaria o litígio de duas racionalidades militares e duas concepções diferentes de cidade, sendo a holandesa de inspiração renascentista, monumental, geométrica.

“Quando os holandeses tomaram o Recife, indicaram a repartição das terras, dos lotes, esguios, finos e compridos, para maior ocupação, à semelhança do que havia em Amsterdã. Daí, surgiram os chamados sobrados magros do Recife”, registra o arquiteto. Um elemento a mais para a posterior coleção superlativa dos pernambucanos. A cidade do Recife é considerada a que tem os sobrados mais altos e mais esguios do Brasil. Na imagem de João Cabral de Melo Neto, uma lição de “(...) equilíbrio leve,/ na escrita, na arquitetura (...)”: “(...) Na cidade propriamente/ velhos sobrados esguios/ apertam ombros calcários/ de cada lado de um rio(...)”.


Segundo o arquiteto Antenor Vieira de Melo, o Porto do Recife transformou o estado no centro do país

Os holandeses foram invadindo mangues, aterrando, ganhando novos bairros (para acomodar o excedente populacional vindo de Olinda). A cidade se expandiu sobre um regime fluvial de mangues, córregos e canais do Capibaribe e do Beberibe. A primeira ocupação utilizou as margens dos rios como ponte entre os sobrados. Daí o surgimento das belas ruas com vistas para o Capibaribe, como a Rua da Aurora. “São vias extraordinárias pela possibilidade que nos dão de sentar em um cais e poder contemplar uma bela paisagem”, sugere ainda Vieira de Melo.

PRAIA NO RIO
A proposta flamenga foi de enaltecer a vida com o rio. Esse sentimento permaneceu depois da expulsão pelos portugueses na metade do século 17, ainda que o traço urbanístico perdesse o rigor geométrico. Os rios eram limpos, dado que a mão de obra escrava propiciava a destinação final do esgoto.

“Os negros levavam as tinas cheias de fezes e sacudiam no mar. Nunca no rio”, acrescenta o arquiteto. “Não havia esgotamento ou fossas. O mar, até o século 19 e durante quase todo ele, era infecto. Era onde se encontrava todo dejeto da cidade. Há, inclusive, relato de ingleses que se assustaram ao ver os negros em final de vida ou crianças com doenças, mas ainda vivos, jogados na praia para morrer.”

A relação com o destino final do esgoto fez com que o rio fosse ultravalorizado pela qualidade das águas. “As sinhazinhas, os rapazolas, vinham em seus barcos e iam para as praias formadas pelas ilhas no Capibaribe. Eram verdadeiras festas de banho de rio. O Capibaribe era a vida da cidade. Na época, também havia o passeio, como em Veneza, em embarcações luxuosas. A aristocracia pernambucana se volta para o rio”, narra o arquiteto.


As pontes simbolizaram a necessidade de circulação entre as
ilhas e poetizaram a paisagem do rio

A esse respeito, Gilberto Freyre registra que “muita casa-grande de sítio, muito sobrado de azulejo, no Recife todo casario ilustre da Madalena – que hoje dá as costas para o rio – foi edificado com a frente para as águas”. A cultura do banho de rio conheceria seu auge no século 19.

Com a abolição da escravatura, não havia mais quem recolhesse e transportasse os dejetos. As casas fizeram seus banheiros, criaram fossas nos seus terrenos e as ligaram aos rios. Estabeleceu-se, então, o panorama atual, a visão naturalizada de que “o rio é sujo e o mar é limpo”. Tubos imensos jogavam no Capibaribe esgotos sanitários. O rio é o novo mar, um macroesgoto a céu aberto.

Mas ainda que o Capibaribe tivesse se tornado sujo e a fachada das casas, aos poucos, fossem voltando-se para ruas importantes, como a Rua Benfica, ainda era valorizada pela aristocracia a posse de um porto fluvial privado. Elemento de distinção, símbolo de status, esses portos, alguns preservados até hoje, eram utilizados pelas sinhazinhas para sair de casa com elegância.

Antenor Vieira de Melo registra que tivemos, no Recife, um outro tipo de ocupação, que abandona o rio, proposta pelos ingleses no século 19. Se o português gostava, e fazia, como forma de defesa, os casarões colados uns nos outros, assim como costumavam morar em cima dos próprios comércios, o inglês queria morar numa casa afastada do local de trabalho e separada dos vizinhos por um jardim em que pudessem cultivar suas flores. “Botaram olho no Poço da Panela. O inglês renegava o Capibaribe. Não fazia parte da cultura deles, apesar do Tâmisa. Eles foram criando sítios em que construíam casarões. É o que temos lá. Sobradões nórdicos, sem conversa com a água.”


Mercado imobiliário atual reproduz antigo valor da habitação
à beira do rio

AS PONTES
As pontes simbolizaram a necessidade de transporte racional e ao mesmo tempo poetizaram a paisagem do rio. Para usar uma imagem de Joaquim Cardozo, chamado por João Cabral de Melo Neto de o “Poeta do Capibaribe”, o “Recife romântico dos crepúsculos das pontes/ E da beleza católica do rio” flutua espelhado na lâmina d’água. Natureza dupla, pitoresca e fotogênica, como demonstram os abundantes registros iconográficos da cidade.

“Só existia, no começo do século 17, uma ponte em Pernambuco, localizada na Ladeira da Boa Hora, em Olinda. Quando Maurício de Nassau ocupa a Ilha de Antônio Vaz, aquela passagem que se fazia com uma balsa presa a uma corda não atende mais à necessidade de desenvolvimento dos novos bairros. É quando ele projeta e executa a Ponte do Recife, seguida por uma outra, obtusa, que constrói do seu palácio, aproximadamente de onde está hoje o Mirante do Carmo, até o aterro da Boa Vista”, explica o arquiteto e urbanista do Instituto Arqueológico, Histórico e Geográfico Pernambucano, José Luiz Mota Menezes. É dessa época a campanha de arrecadação de fundos com base na alegoria do Boi Voador.

A Ponte do Recife foi modificada ao longo do tempo, tendo dois portais e lojas de um lado e outro de seu curso. Chegou a possuir também uma estrutura de ferro. Seguiu-se a essas duas primeiras ligações, a Ponte Nova da Boa Vista, hoje de ferro, mas antes de madeira. A seguir, a Ponte Provisória, hoje a Buarque de Macedo, e, finalmente, a Santa Isabel, compondo o primeiro núcleo de pontes do centro. Quando se estabelece a rede de trens, faz-se uma ligação, em ferro, saindo por trás do Liceu de Artes de Ofício até a Avenida Conde da Boa Vista. Dessa ponte, saíam os trens da Maxambomba. A Ponte de Afogados e outras pontes em torno do Recife, bem como a do Derby, da Madalena e da Torre, acompanham a expansão da rede ferroviária. Entre 1913 e 1918, começam as obras de saneamento do Recife e Saturnino de Brito constrói a Ponte Velha.

Hoje, três pontes ligam o Bairro do Recife ao de Santo Antônio: a 12 de Setembro (Giratória), a Maurício de Nassau, a Buarque de Macedo. Quatro ligam o bairro de Santo Antônio à Boa Vista: a Santa Isabel, a Duarte Coelho, a da Boa Vista (Ponte de Ferro) e a Ponte Velha.


Embarcações comprovam a resistência dos trabalhadores da pesca

URBANIZAÇÃO
Para Antenor Vieira de Melo, o Recife tem um clima extraordinário, em função das aberturas sinuosas que o rio faz. “A cidade respira para tudo que é lado. Isso é impressionante. Mesmo no verão, se você ficar embaixo de uma marquise, de uma sombra, o vento pega. Veja que as avenidas mais valorizadas são as perpendiculares aos rios, em que toda ventilação que vem do mar toma o rio e chega a elas.”

O território citadino é demarcado pelo Capibaribe, entrecortado por águas que chegam à cidade pela Várzea, banhando os bairros da Caxangá, Iputinga, Cordeiro, Torre, Jaqueira, Parnamirim, Graças, Madalena, bifurcando na Ilha do Retiro: em direção aos Coelhos, e a Afogados.

Como ressalta Carlos Bezerra Cavalcanti, geógrafo do Instituto Arqueológico, Histórico e Geográfico Pernambucano, as águas nomeiam diversos bairros e locais do Recife, alguns desses nomes de origem indígena. Bongi (rio que faz curva), Água Fria, Dois Unidos (dois riachos que se fundem, afluentes do Beberibe), Beberibe, Cabanga (pau torto, referência aos manguezais), Afogados, Parnamirim (rio pequeno), Ibura (água que explode ou fonte d’água), Ilha do Leite, Ilha do Retiro, Iputinga (lugar de barro branco que alaga), Manguinho, Peixinhos, Poço da Panela, Porto da Madeira, Tejipió, Várzea. Somando-se a esses bairros, temos ainda o Cais da Alfândega, do Abacaxi, José Mariano, do Colégio, de Santa Rita e do Porto.

A proximidade com as águas, o crescimento urbano desordenado avançando sobre as áreas de vazão e intervenções na foz do rio também colocariam o Capibaribe no nosso imaginário de terror. “Um livro escrito por um engenheiro, na década de 1930, denuncia as obras que seriam feitas na foz pela Marinha e que poderiam provocar cheias”, ressalta Antenor Vieira de Melo.


Rio demarca o território da cidade, entrecortando os bairros pelas águas

Em 1970, quando uma grande precipitação pluviométrica apanhou o Recife, o rio não teve para onde escoar. “Ficou represo e sacudiu tudo de volta. A Conde da Boa Vista virou um lago. A Imbiribeira tinha mais água que o próprio rio. A cidade ficou debaixo d’água. As fotografias são pavorosas.”

Dos idílicos banhos de sol para “o chão movediço do rio de água e lama, e que passa em revista o Recife e seus podres, kafkianamente metamorfoseados num cão”. Como descreve o crítico Armando Freitas Filho, a poética de João Cabral agencia-se às transformações na paisagem do Capibaribe, infecto, agora também um bicho vivo incomodando a memória da cidade, feito de lodo e ferrugem, como um “cão sem plumas”, um “(...) rio indigente, sangue-lama que circula/ entre cimento e esclerose/ com sua marcha quase nula(...)”.

No rio “espesso” de João Cabral, nas margens do “companheiro melhor” (“mortalha macia e líquida”, “caixão macio de lama”), estavam os mocambos, as palafitas. Como dramaticamente registra Josué de Castro, habitações do ciclo trágico em que homens se alimentavam de caranguejos engordados pelas próprias fezes e urinas que lançavam sobre o rio:

“Tudo aí é, foi ou está para ser caranguejo, inclusive o homem e a lama misturada com urina, excremento e outros resíduos que a maré traz, quando ainda não é caranguejo, vai ser. O caranguejo nasce nela, vive nela. Cresce comendo lama, engordando com as porcarias dela, fazendo com lama a carninha branca de suas patas e a geleia esverdeada de suas vísceras pegajosas. Por outro lado, o povo daí vive de pegar caranguejo, chupar-lhe as patas, comer e lamber os seus cascos até que fiquem limpos como um copo (...). São 100 mil indivíduos, 100 mil cidadãos feitos de carne de caranguejo. O que o organismo rejeita, volta como detrito, para a lama do mangue, para virar caranguejo outra vez”.

Em 1937, instaura-se a ditadura Vargas. Agamenon Magalhães é nomeado interventor de Pernambuco. Magalhães reprime o movimento sindical, persegue os cultos afro-brasileiros, e opositores políticos como Ulisses Pernambucano, e investe na erradicação dos mocambos, respaldado pelo anticomunismo da Ação Católica, que não admitia a perspectiva da luta de classes na crítica social. Em 1939, cria a Liga Social Contra os Mocambos. O programa não deu o resultado que o interventor esperava, mas transferiu muitas famílias das margens dos rios para o Morro da Conceição, o Alto do Mandu e bairros como o da Caxangá.

“Na China, há cidades imensas dentro da água. Alguns desses locais, hoje, são tombados para mostrar as ínfimas condições de vida das pessoas nas palafitas. Um espaço a ganhar dentro do rio que não custava nada. Mas por que tombar e conservar? Ora, como pedagogia de ensino. Como forma de dizer: isso nunca mais voltará a acontecer na nossa sociedade”, explica o arquiteto Antenor Vieira de Melo.

ESTUDOS
Talvez estejamos entrando em um novo ciclo de relacionamento com o Capibaribe, com a cidade e as formas de ocupar o espaço público, é o que aponta o consultor Cláudio Marinho, engenheiro civil e mestre em desenvolvimento urbano pela UFPE.

Um dos pais do Porto Digital, Marinho já foi secretário das pastas de Ciência e Tecnologia e de Meio Ambiente. Também foi o engenheiro responsável pelo primeiro estudo de viabilidade econômica do Projeto Capibaribe, realizado em 1982 pela Empresa de Urbanização do Recife (URB), cujo plano era criar ao longo do Capibaribe, desde a BR 101 até o Bairro da Torre, projetos habitacionais de classe média e parques. Os estudos buscavam benefícios cruzados entre a margem rica (Casa Forte) e a pobre (Caiara, Cordeiro, Iputinga). A ideia era comprar terras que valorizassem o lado rico e usar os recursos obtidos para urbanizar a margem pobre.


Raízes do mangue funcionam como um filtro para as águas

Segundo Marinho, as ações de urbanização devem procurar a convivência e o equilíbrio entre o histórico e o ambiental. O consultor exemplifica essa dificuldade com a questão da podação do mangue. “Nós deveríamos podar o mangue? Eu acho que sim. Na década de 1980, rearborizamos o centro, inclusive as margens do Rio Capibaribe, cujos manguezais eram poucos. Plantamos mudas de mangue na Casa da Cultura. Hoje temos uma mata, nada característica da paisagem do centro nem dos manguezais, muito em função do caldo nutritivo que vem com a poluição.”

De acordo com o engenheiro, há uma nova sensibilidade urbana em nascimento, e o Capibaribe é um dos protagonistas nessa ressignificação. “Estamos nos reapropriando da linguagem dos postais via Facebook e Instagram. Imagens compartilhadas nas redes sociais ajudam a criar um olhar deslocado das visões cotidianas do rio, geralmente de cima das pontes. A sugestão é: desce lá, fica a um metro da água, aí você vai ver um outro Recife. Essa apropriação da paisagem faz parte da história de Pernambuco. Somos o único estado brasileiro que possui, em todos os séculos, desde a colonização, pelo menos um conjunto de registro iconográfico de destaque. As fotos compartilhadas nas redes sociais dizem sempre: esse lugar é meu, ele é bonito.”

“Reapropriar-se dos lugares, espaços com paisagem, textura e afeto”, acrescenta Marinho, “é uma maneira de escapar da armadilha que está sendo criada pelo capital imobiliário. Trata-se de construir uma cidade mais humana, isto é, na escala humana, na escala que um dia existiu na convivência com o Rio Capibaribe. Para combater o não lugar, é preciso realizar um reapropriação afetiva, coletiva por definição, o que significa buscar uma ressignificação do rio através dos elementos pictóricos, literários, arquitetônicos”.

De acordo com o consultor, a navegabilidade do Capibaribe é inevitável. “Os estudos falam de limitação de frequência, especialmente pela profundidade, por problemas nas pontes, com a conexão desses barcos com o restante do sistema de transporte. Já vi números diferentes, mas estima-se que 60 mil pessoas possam usar o serviço por dia. É muito? Não, é pouco diante da demanda. Mas a discussão indo nessa direção é distorcida. Não estamos buscando um substituto para o ônibus ou metrô. É necessário se reapropriar do rio, ir para o rio, começar a ver a cidade de outra perspectiva. Navegar o Capibaribe é mais um exercício de cidadania do que uma solução de sistema de transporte”, conclui Marinho. 

PAULO CARVALHO, jornalista e mestre em Comunicação pela UFPE.
CHICO LUDERMIR, jornalista, fotógrafo freelancer e integrante da Rede Coque Vive.

Leia também:
A simbiose entre a poética cabralina e o rio
O rio como espaço a ser ocupado

veja também

Clarice, um suvenir virtual

Ainda temos muito o que extrair do anarquismo

Camilo Cavalcante: O Sertão como território da alma