Os poemas de Orley Mesquita são passeios por grandes temas da tradição lírica – o amor, a morte, a solidão e a efemeridade da vida – tratados com sobriedade e plasmados por uma sensibilidade rigorosa. Tão rigorosa, que foram escasseando e o poeta publicou cada vez menos, o que pode explicar inclusive seu caráter quase bissexto. O clichê é a armadilha de todo poeta que se assume essencialmente como um lírico. De todo poeta que busca implodir o lugar-comum da reflexão existencialista e do sentimento.
Proponho um trocadilho para entender onde a poesia de Orley Mesquita pode nos parecer datada: houve pouca prosa na poesia e pouca poesia na prosa. Na parte composta pelos livros inéditos, na qual encontramos Os passos da morte (relatos), temos poemas em prosa que não alcançam, na maioria, a mesma qualidade poética dos versos. Os brinquedos, por exemplo, é um dos “relatos”, como os chama o poeta, totalmente dispensável. Orley aspirou a produzir poemas de força telúrica em que uma imagem transcendental de poesia, enraizada no cotidiano, articulou-se como a experiência não de um, mas de todos. Um espelho em que, nos seus melhores momentos, nós nos vemos também nele refletidos: “Esta visão de ti / que o dia aceita, / à noite, em meu olhar; / mal se sustenta. // Fica um resto de dor/ por sobre a mesa / onde a sombra do mito / se alimenta. // O vinho que se junta / ao lume da fadiga / nem sequer embriaga. / Mas deixa nesta mesa / um tom em névoa / que, disperso, se apaga”. A condição não ideal do amor, que muitas vezes se distancia de nossa experiência do amor, mas o que nele se dissipa, quando o amor nos abandona. Os amores todos de que nos fala sua lírica são amores passageiros, e que acabam permanecendo pelas mãos da poesia que os retrata.
Esse mesmo transcendentalismo pode, vez ou outra, cair nas malhas de um peso inexpressivo – ou da gordura, para usar um termo do poeta americano Ezra Pound – como é o caso de Espelho: “O que tens de melhor foge do teu olhar para o estranho espelhado em que te transfiguras: sol moreno de gozo, luz pejada de aromas, mel dulcíssimo de divinas entranhas”. Nada de novo se revela nessas linhas pesadas de ritmo convencional e imagens quase kitsch: sol moreno e luz pejada de aromas. Mas esses momentos, felizmente, são raros na poesia de Orley.
O traço de metapoesia que se insinua em seus textos é notável: “Se não me engano, / poesia é fogo-fátuo. / Se me enganas, / é fogo-morto. / Se a escrevo, / é sofrimento, gozo / Orgasmo”. Além disso, quando sua poesia assume radicalmente a corporeidade do amor, adquire um tom de poesia latina clássica em sua forma epigramática, como é o caso de Videotape: “Uns caçam. / Outros, consomem. / No vídeo, o produto é barato e convincente. / Concentro-me no visgo descartável / do lenho duro a vã semente”.
Um aspecto importante da coletânea é apresentar o trajeto particular do poeta dentro de um movimento maior que foi o da poesia no século 20. O seu início nos anos 1960, com um caráter transcendental forte, numa dicção comum a muitos poetas da nossa chamada geração 65. Nos anos 1980, assistimos à sua poesia investir-se de uma dicção menos “clássica”, digamos assim, aderindo mais ao ritmo dos anos que ficaram marcados pela chamada poesia marginal. Há, então, nesses poemas uma leve prosaicização de sua voz, como se lê em Não adianta: “Não adianta maquilar o poema. / Para tanto ele não se presta. / Nem adianta apelar para / coração, amor, inspiração. // De nada serve esmurrar a parede, / fazer acrobacias, ter enfarte; / Há os que dizem: a arte tudo imita etc... etc... / E o poema? / Algumas vezes mineral; / outras, alcalina; / gelo; chuvisco; / pedra que irrompe e floresce; / ou, quem sabe, nada disso”. E, nos anos 1990, e parte dos anos 2000, uma espécie de retorno do transcendente em dicção econômica, elíptica, parece sinalizar traços do hermetismo poético comum à parte da poesia brasileira dessa época.
A impressão que fica ao ler essa nova coletânea de Orley Mesquita é que os poetas orbitam sempre as questões que nos tiram o sono: o desaparecimento de quem está do nosso lado, o medo de amar miragens que se dissipam no movimento da vida e de descobrir-se também “névoa”. Mas a cada um cabe um movimento longo, amplo e rico; ou um movimento acanhado e sem expansão. Ele pertence ao primeiro grupo, juntamente com Mauro Mota, Joaquim Cardozo e alguns outros poetas de longos percursos em torno do sol da poesia. Ampliando a maneira como os leitores veem e sentem a si mesmos.
FÁBIO ANDRADE, poeta, editor e professor da UFRPE.