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Clarice, um suvenir virtual

TEXTO Cristhiano Aguiar

01 de Fevereiro de 2013

Cristhiano Aguiar

Cristhiano Aguiar

Foto Divulgação

Entre as centenas de coisas flutuando à deriva no Facebook, uma das que mais me fascinam é Clarice Lispector. Podemos encontrar diversas Clarices Lispector por aí, multiplicadas em todos os ângulos e formatos. No caso dela e de outros escritores, como Caio Fernando Abreu, por exemplo, a internet nos abastece com todo tipo de recortes e adaptações não apenas de seus escritos e falas, mas também dos seus corpos. Há as mãos de Clarice; o rosto imenso de Clarice; os olhos fechados de Clarice. Há Clarice deitada; Clarice fumando; Clarice de perfil; Clarice de corpo inteiro; Clarice do busto para cima. Em uma conta do Twitter, ao lado da imagem de Clarice, leio: “Você é mais forte do que pensa e será mais feliz do que imagina”. Será que ela realmente escreveu isso? Na dúvida, passo adiante.

Ano passado, tive um reencontro com a criadora de Macabéa. Há anos, talvez em parte por certa angústia da influência, não lia a autora de Perto do coração selvagem. E me surpreendi por ter reencontrado nela certa acidez e certa agressividade que eu tinha esquecido, talvez porque eu estivesse soterrado por uma Clarice domesticada.

“Pois a vida é assim: aperta-se o botão e a vida acende.” Dá vontade de apertar o botão de “curtir”, não é? Mas esse trecho de A hora da estrela está em um contexto específico, no qual se critica o quanto, na vida moderna, principalmente de proletários como Macabéa, a própria experiência de viver é espremida, rarefeita. No mesmo livro, há outra frase digna dos livros de autoajuda: “Sim, quem espera sempre alcança”. Mas, logo em seguida, o narrador escreve: “É?”.

Não se trata de uma maneira “errada” de entrar em contato com a obra de Clarice, necessariamente. Também não é uma “desonestidade” recortar uma frase bonita de sua obra, ou retirá-la de contexto e emoldurá-la na parede do seu perfil virtual. Vejo com certa simpatia que Clarice esteja nesse dia a dia das boas intenções; gosto de saber que há em nosso país um escritor que pode ser amado assim. O problema, porém, é que essa é uma Clarice-suvenir, não muito diferente das miniaturas da Golden Gate, do Cristo Redentor ou das galinhas pintadas de Porto de Galinhas. Em um livro bastante interessante, On longing, a poeta Susan Stewart nos lembra que o suvenir não chama atenção para uma experiência com a diferença; pelo contrário, o suvenir exalta o seu possuidor.

“Olhem para meu dono”, diz, servil, a Clarice-suvenir: um objeto que se recusa a ser interpretado. Um objeto que recusa o estranhamento. Mas a pergunta que uma grande obra literária, como a de Clarice, nos lança é o oposto disso: “Olhe para si; olhe para a linguagem; olhe para a sociedade”. Vale a pena lembrar que curtir e passar adiante citações de Clarice na internet é uma minúscula parte de uma conversa longa, profunda e necessariamente incômoda. Afinal, é só na leitura do texto original que a obra de um escritor será resgatada do estado no qual naturalmente se encontra: o estado das ruínas. 

CRISTHIANO AGUIAR, escritor, crítico literário e professor.

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