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Caranguejo: Da lama do mangue para a mesa

Motivador e protagonista do quase atávico hábito de quebrar e chupar patinhas, crustáceo é o sinal gustativo de que somos livres

TEXTO EDUARDO SENA
FOTOS RAFAEL MADEIROS

01 de Fevereiro de 2013

Foto Rafael Medeiros

Estudioso dos efeitos geográficos sobre o homem nordestino, o sociólogo pernambucano Josué de Castro, no livro Homens e caranguejos (Editora Civilização Brasileira, 2001), em dado momento da obra, constata que “os mangues do Recife são o paraíso do caranguejo. Se a terra foi feita para o homem, com tudo para bem servi-lo, o mangue foi feito especialmente para o caranguejo. Tudo aí é, foi, ou está para ser caranguejo, inclusive a lama e o homem que vive nela”.

O escritor fazia supor justamente essa perfeita simbiose entre o ser humano e esse crustáceo de 10 pernas, dotado de carapaça larga e dura com shape assimétrico, que, além de servir de mote para pesquisa sociológica, foi motivo de inspiração para as artes por meio do movimento manguebeat. Mas vamos parar de pensar demais. Cozinha e comida têm isso de bom. Um dia se teoriza, “antropologiza”, “sociologiza”, copia e critica. No outro, você se esquece de tudo, menos do alimento em si, sem reflexão mesmo. O caranguejo está nessa estante.

Se, sob o prisma da Sociologia, ele é um dos principais símbolos da civilização pernambucana, brotando do mangue para matar a fome de quem cata para não morrer, o crustáceo também sacia a alma; de preferência, debaixo do sol escaldante, à beira da praia, acompanhado por goles de cerveja gelada. Aliás, é nessa combinação de tempo e espaço que a iguaria, bastante festejada pelos pernambucanos, revela sua mais contundente identidade. Com tons que flutuam entre o laranja e o vermelho, apresentam-se adornados por porções generosas de tomate, coentro e cebola picadinhos. Caranguejo é irresistível, irrecusável e irrepreensível.

Pouco importam as diretrizes de conduta ética à mesa, institucionalizadas por Danuza Leão, Glória Kalil ou Carmen Peixoto. Desmembrar o bicho para comer é manobra orgânica que consiste em quebrar e partir a pata com as mãos, depois levá-la à boca para sugar a carne, como num gesto de urgente sobrevivência, e sentir o caldo da cocção escorrer da boca até alcançar os cotovelos. A arte é para poucos, pouquíssimos, diria. Um exímio exercício de liberdade e de desapego da vaidade.


A receita do casquinho é uma das mais pedidas por quem quer comer caranguejo sem grande esforço

Até porque, além de saciar o espírito, o crustáceo também é nutritivo. Sua carne branca e macia é rica em proteínas, vitaminas e sais minerais, trazendo fibras que se desfazem em lascas depois do cozimento. A partir daí, pode se transformar em ensopados e recheios para várias finalidades. “Com alguma paciência e cuidados no armazenamento, a carne se revela muito versátil. Além de cremes e gratinados, pode ser matéria-prima de quiche a um hambúrguer. E, ao tempo que tem um quê rústico, é bastante refinado”, afiança o chef André Saburó, que mantém os restaurantes Quina do Futuro e Sumô, especializados em ingredientes de procedência aquática.

FAMILIAR
O cozinheiro lembra que a carne, nesse estilo suvenir (uma vez que se vai a carapaça e fica apenas uma lembrança), é sofisticada justamente por ainda não ser explorada numa escala industrial. “Ao contrário da carne de siri, que se consegue comprar em grande escala, via empresas especializadas, a do caranguejo depende de uma agropecuária familiar de pequenos produtores e catadores. O abastecimento é todo pelas mãos deles”, identifica Saburó, que faz questão de frisar que o kani-kama, processado de pescado branco com albumina, amido, água, sal, açúcar, proteína de soja, glutamato de sódio, corantes, sorbitol e espessante, só tem aroma de caranguejo. E olhe lá.

E se o kani não substitui à altura, é preciso ir atrás das famosas cordas de caranguejo, pego com as mãos dentro da lama. O bichinho só não pode ser catado em algumas semanas, entre os meses de janeiro e março, quando sua pesca fica proibida pelo Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama), para que eles possam se reproduzir. A portaria que estabelece as datas da proibição (de 12 a 17 de janeiro; 28 de janeiro a 2 de fevereiro; 11 a 16 de fevereiro e de 26 de fevereiro a 3 de março), até o fechamento desta edição, não foi sancionada, muito embora os fiscais do órgão já atuem nessa perspectiva.


Após o cozimento, é só quebrar as patas do animal e sugar a carne

Falando em reprodução, como são férteis as fêmeas da espécie! Por cópula bem-sucedida, carregam entre 80 e 250 mil ovos. Desse montante, de 30 a 50 mil têm chances de chegar à vida adulta, prontos para serem catados. Quando, é claro, atingirem seis centímetros, estágio em que podem ir para as panelas. “Os principais produtores do crustáceo na região Nordeste são Maranhão, Piauí, Paraíba, Ceará e Sergipe”, elenca o engenheiro de pesca da Universidade Federal Rural de Pernambuco (UFRPE), Vanildo Souza. A despeito da maior área de manguezal urbano do mundo, com 270 km², de acordo com o artigo O valor da preservação do Parque dos Manguezais em Recife-PE, dos pesquisadores Guilherme Nunes Martins e Andrea Sales Soares de Azevedo Melo, Pernambuco não aparece nessa lista.

OS DIAS DELE
Se não tem em abundância por aqui, o negócio é mandar buscar. É o que fazem os empresários Ramon Muller e Larissa Trindade, que comandam o bar Bodega do Barão, em Casa Amarela, na Zona Norte da Cidade. A dupla traz a iguaria de Fortaleza (CE), para movimentar a Terça do Caranguejo no recinto gastrô-etílico. “Para garantir que eles cheguem nas melhores condições, isso significa grandes e gordos, escolhemos um dia da semana para não dependermos das variações do fornecedor”, conta Larissa.

O público, nesses dias, segundo ela, se apresenta diferenciado até na indumentária. “Como não é um dia em que as pessoas vêm ao bar para paquerar, por exemplo, já que é inviável flertar com alguém comendo caranguejo, os clientes chegam com roupas mais despojadas e confortáveis, dispostas a se sujar, com outro espírito. É engraçado”, observa. A cada noite dessas, são vendidas cerca de 300 unidades, acompanhadas por pirão.

Essa tradicional instituição do “Dia do caranguejo”, aliás, foi importada de Fortaleza e de Aracaju (SE), capitais que dedicam um dia na semana para a brincadeira comestível. Por lá, acontece sempre às quintas-feiras, nos bares especializados. No Recife, com quase 20 anos no mercado, o Guaiamundo, em Casa Forte, que, como o próprio nome faz supor, tem como carro-chefe do cardápio os crustáceos, também é uma das casas que decretaram espaço no calendário semanal para a farra das patas.


Na receita de caranguejo à moda de Bissau entram pimentões, cebolas, pimentas variadas, óleo de palma, curry, cerveja, leite de coco, coentro e cebolinha

À exemplo das capitais de Sergipe e do Ceará, o recinto promove às quintas-feiras o clone de caranguejo. No melhor estilo “pediu um, leva outro gratuitamente”. O que é exigido é o malabarismo para a sucção e, para os, digamos que, mais pudicos, golpes certeiros de martelo, para ser apreciado. Por mês, são comercializados cerca de 2,5 mil bichinhos, que podem chegar à mesa inteiros ou em casquinhos, ensopados e patolas empanadas.

Segundo um dos sócios-proprietários da casa, Cristiano Nascimento, a produção pernambucana não dá conta da demanda atual, sendo preciso trazer mais da metade do ingrediente de João Pessoa (PB) e de Fortaleza. Entre as outras dificuldades encontradas em meio aos comerciantes, está o fato de o caranguejo não se alimentar, não podendo ser cevado como o seu primo guaiamum.

À MODA AFRICANA
Quando o assunto é essa não alimentação dos caranguejos fora do seu hábitat natural, existem algumas controvérsias. A primeira delas nasce na Guiné-Bissau, país da costa africana. Foi lá que, durante uma temporada de pesquisa de culinária de raiz afro, a yabassé (cozinheira dos orixás) pernambucana Carmem Virgínia aprendeu os macetes de preparo da caranguejada africana com um comerciante local. “Passei o dia inteiro na frente da barraca dele. Vez por outra, quando enchia de pessoas em busca da sua famosa caranguejada, eu ia lá e o ajudava, carreguei até lata d’água. Venci pelo cansaço, até ele me dar a tal receita”, lembra.


A yabassé Carmem Virgínia segue à risca a tradição africana e coloca a panela de barro escavada no chão

Segundo a chef, o que mais a impressionou em todo o processo de preparo foi a forma como ele tratava os caranguejos antes de morrer. “No primeiro dia, era dieta zero, só água, para limpar os caranguejos do gosto de lama que eles assumem por viver nos manguezais. No segundo dia, milho e água de coco; no terceiro, frutas (caju, manga, abacaxi e coco verde), no quarto, um cacho de dendê e bagaço de coco seco; por fim, no quinto dia, cerveja. Apenas no sexto dia acontece o preparo em si, a limpeza e a cocção”, explica.

No cozimento, entram como temperos pimentões coloridos, cebolas, pimentas variadas, óleo de palma, curry, cerveja, leite de coco, coentro e cebolinha. “O pirão é feito com uma chuva de farinha bem quebradinha e torrada. Incluí nessa receita raspas de dandá da costa, óleo de urucum e carne de caranguejo para deixar o pirão mais saboroso”, revela.

Outro segredo diz respeito à técnica para matar os caranguejos. “Não se deve cometer o erro primário de, simplesmente, jogá-los vivos em panela de água fervente, pois isso provoca a queda das patas”, aconselha. Para matar, o ideal é colocá-los, ainda vivos, em um saco plástico por duas horas no freezer. E só depois realizar a limpeza, com eles em estado de letargia; em seguida, finalmente matá-los da forma clássica, com a ponta da faca. Fora esses cuidados, para manter a tradição africana, é preciso colocar a panela de barro escavada no chão. Daí vem o nome caranguejada à moda de Bissau, que faz o sucesso do delivery do Acaçá – Cozinha Encantada, serviço de entrega em domicílio de comida afro, criado por Carmen Virgínia – enquanto não concretiza o sonho de abrir o próprio restaurante. 

EDUARDO SENA, jornalista.
RAFAEL MEDEIROS, fotógrafo.

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