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Camilo Cavalcante: O Sertão como território da alma

Reportagem da Continente visita o set de filmagem do primeiro longa-metragem do diretor pernambucano, 'A história da eternidade'

TEXTO André Dib

01 de Fevereiro de 2013

O ator Irandhir Santos, durante o registro da cena que quebra os planos fixos da abertura do filme

O ator Irandhir Santos, durante o registro da cena que quebra os planos fixos da abertura do filme

Foto Divulgação

Santa Fé (PE) – Torrencial, a chuva cai na noite escura do Sertão. De uma das casas, sai um homem transtornado, a passos firmes. Ele cruza a pequena vila em direção a um casebre, de onde arranca sua filha adolescente, desnuda, pelos cabelos. Ela implora por misericórdia. Do casebre, sai o tio, também sem roupas. Ele tenta amenizar a situação, mas termina por se tornar alvo de ódio e violência. O pai é Cláudio Jaborandy; a filha, Débora Ingrid; e o tio, Irandhir Santos. Estamos no set de A história da eternidade, primeiro longa-metragem de Camilo Cavalcante.

O cenário se desenha sobre o chão arenoso, entre animais do semiárido e árvores de galhos secos. Sob a luz dourada de um fim de tarde, entre a equipe que se movimenta para começar mais um dia de trabalho, surge Camilo. Em seu rosto, o sorriso de satisfação por estar de volta ao universo que, na última década, o diretor pernambucano vem desenvolvendo, de maneira quase religiosa – o sertão como território da alma.


A gravação do plano sequência descrito no início da reportagem foi uma das mais complexas. Foto: Divulgação

O argumento de A história da eternidade nasceu há 10 anos, quando o diretor havia terminado o curta homônimo, rodado na Região Agreste do estado. Sem pressa, ele continuou a rodar seus curtas, pavimentando uma premiada carreira de 17 anos, que rendeu filmes como O presidente dos Estados Unidos (2007) e Ave-maria ou mãe dos sertanejos (2009). Em 2011, com R$ 1,7 milhões aprovados em editais do Ministério da Cultura e da Secretaria Estadual de Cultura, teve início a sua maior empreitada. “Os curtas me ajudaram muito. Não vejo o longa com um maior grau de importância. É uma outra etapa e a oportunidade de trabalhar com mais estrutura, equipe e técnicos para fazer a história acontecer”, diz o diretor.

Camilo explica semelhanças e diferenças entre as duas “eternidades”. “São dois trabalhos sinestésicos, mas diferentes entre si. O curta é todo feito com a câmera em movimento (em falso plano-sequência), enquanto o longa é composto por muitos planos fixos.” Outro ponto de contraste, diz o diretor, é que o curta tem mais experimentações, e o longa é linear, com uma narrativa em torno de “três improváveis histórias de amor que se cruzam no mesmo espaço, à beira do desespero”.


Foto: Divulgação

Além de Irandhir, um dos atores brasileiros mais talentosos da atualidade, Jaborandy, que já trabalhou com Camilo em Rapsódia para um homem comum (2000), e Débora, revelada no curta cearense Doce de coco (2011), o elenco conta com Zezita Matos, Leo França e a paraibana Marcélia Cartaxo, a Macabéa de A hora da estrela (1985). A música original é composta por Dominguinhos. A montagem é de Vânia Debs.

Rodado entre setembro e outubro de 2012, A história da eternidade pode ser considerada a primeira superprodução de Camilo Cavalcante, que, até então, primou por trabalhos artesanais. Para cumprir a meta de cinco semanas de gravação, foi necessário convocar uma equipe de profissionais cariocas que trabalhou em filmes como Tropa de elite e Faroeste caboclo (também gravado em Petrolina). O vento, relâmpagos e chuva artificiais foram produzidos por uma equipe paulista, responsável por efeitos semelhantes em filmes como Carandiru, Xingu e Os mercenários.

Não raro, membros da equipe vestidos de roupa militar eram seguidos por cabras esfomeadas, gerando cenas, no mínimo, curiosas. “No nosso cinema, usamos o industrial para fazer o artesanal. Há o tempo da produção, mas a equipe também entra no tempo do local. Nada pode ser maior do que a emoção, que é o essencial”, conta Camilo.


Camilo Cavalcante dirigiu o ator Cláudio Jaborandy no filme Rapsódia para um homem comum (2000). Foto: Divulgação

Os momentos mais complexos surgiram nas gravações noturnas, como a do plano-sequência descrito no início da matéria. A orquestração foi repetida uma dezena de vezes, câmera na mão do fotógrafo Beto Martins, até que, por volta das 2h da madrugada, se chegasse ao resultado pretendido. “Às vezes, para fazer uma única cena, é preciso administrar o caos”, comenta o cearense Halder Gomes, diretor de cinema especializado em lutas, trazido por Camilo para coreografar a luta entre os irmãos. Ou a do ataque epiléptico de Joãozinho, entre relâmpagos provocados pelo veterano João Sagatio, que aplicou um maçarico sob placa de metal.

Outro momento especial ocorreu uma semana antes, quando um trilho circular foi montado para girar em torno de Irandhir, um verdadeiro trabalho de engenharia, que representa o momento da mudança de sentimentos, após 50 minutos de planos fixos que abrem o filme. O mundo se move, por amor ou desejo. Ou gira ao contrário, em dor, a caminho da morte.

CÍRCULO DA VIDA
A pouco mais de uma hora ao norte de Petrolina, a locação em Santa Fé tem muito de especial. Nela, paira uma igreja, um cemitério, um bar e seis casas. A impressão é a de um local suspenso no tempo e no espaço, uma cidadela forjada em torno da simplicidade das coisas duras e belas. É a educação pela pedra, poema de João Cabral que foi inscrito no início do roteiro de A história da eternidade.

Para que o cenário se feche em círculo, ao lado das casas, que já existiam no local, foram construídos três casebres de barro, levantados pela diretora de arte francesa Julia Tiemann. No centro da vila, foi construída a praça da TV. “Tem mais gente morta do que viva”, brinca Camilo, que aponta para as casas ao redor e explica quem mora onde.


No filme, o sanfoneiro cego Aderaldo (Leo França) se liga a Querência (Marcélia
Cartaxo) através da música. Foto: Divulgação

Na casa maior, moram Nataniel (Jaborandy) e sua filha Alfonsina (Débora); ao lado esquerdo, mora Querência (Cartaxo), mulher amargurada, abandonada pelo marido após duas gravidezes malsucedidas; em frente, vive o sanfoneiro cego Aderaldo (Leo França), que pacientemente se aproxima de Querência através da música; ao lado direito, mora Joãozinho (Irandhir), irmão de Nataniel, o artista isolado e incompreendido pelos demais; e na frente da igreja vive a religiosa Das Dores (Zezita) e seu neto Geraldo (Maxwell Nascimento), por quem se apaixona.

Imerso em sua “casa”, Irandhir fala sobre Joãozinho. “Encontrei o caminho para o personagem como um artista plástico que recolhe lixo da região e o transforma em objetos com os quais ensaia performances em casa, e apresenta do lado de fora. Outra característica é a de ser alvo do desejo da sobrinha, o que o leva do encantamento à debilidade física. Para isso pesquisei a vida de artistas epilépticos, como Machado de Assis e Vincent Van Gogh. Assim, Joãozinho busca na arte uma forma de lidar com a doença.”

Em busca do tempo do filme, os técnicos de som Nicolas Hallet e Simone Dourado abriram mão do conforto do hotel em Petrolina para alugar uma casa em Pau Ferro, sem cobertura de telefonia móvel ou internet, na metade do caminho para Santa Fé. A dimensão do som, diz Nicolas, é dada pelo sanfoneiro, que conduz a emoção do filme. “O Sertão tem um vento muito forte e isso vai aparecer bastante. A impressão é a de que o povoado é uma ilha isolada, no meio de um oceano de pedra.”

Filho de sertanejos, o fotógrafo Beto Martins se criou na caatinga baiana, região bem próxima de onde agora assina seu primeiro trabalho em longa-metragem. Magro, de barbas longas e cajado na mão, para amenizar uma dor na coluna vertebral, ele incorporou o andarilho sertanejo, completamente integrado à caatinga. Em vez de usar o carro da produção, ele percorre a pé os três quilômetros até o restaurante improvisado, de dia, sem temer o Sol, e à noite, caminhando sob as estrelas. Ele conta que a luz definida com Camilo tem referências a pinturas da Idade Média, principalmente à de Caravaggio, mas também remonta às suas vivências. “Tivemos muitas discussões sobre a estetização da luz brasileira e nordestina, quis fugir disso. Quis imprimir a realidade daquilo que sempre vi, não fugir da sombra, usar lâmpadas domésticas, sem refletores. Nessa relação entre o claro e o escuro está a beleza e a tragédia que Camilo busca.”


Alfonsina (Débora Ingrid) vive um romance com seu tio, o incompreendido Joãozinho (Irandhir Santos). Foto: Divulgação

Mesmo sem querer, Beto corresponde ao conceito de A história da eternidade – o oroborus, a cobra que morde o próprio rabo. Mas ele não foi o único a retornar às origens. Diretora de produção, Stella Zimmerman foi criada em Petrolina. Ela vê mudanças na estrutura para receber produções cinematográficas na cidade onde cresceu. “Antes, era preciso trazer apoio logístico do Recife e de Salvador. De um tempo para cá, existem mais condições de transporte e mão de obra especializada, como figurino, maquiagem e até produção de objetos.”

O retorno do mestre maquinista João Sagatio talvez tenha sido o mais emocionante. Após quase meia década, ele voltou para a região onde trabalhou em Lampião, o rei do cangaço (1964), de Carlos Coimbra, quando foi figurante, membro da volante que cegou o bandido. De lá para cá, Sagatio trabalhou em centenas de produções, tornando-se testemunha viva do cinema brasileiro.

SERTÃO BARROCO
Desde os seus primórdios, cinema e fé andam juntos. Gilles Deleuze vê nele uma catolicidade inerente, um culto que substitui as catedrais. “O fato é que já não acreditamos neste mundo. Nem mesmo nos acontecimentos, no amor, na morte, como se nos dissessem respeito apenas pela metade. É preciso restituir as palavras ao corpo, à carne”, escreve o filósofo, no livro A imagem-tempo. “É que a imagem cinematográfica mostra-nos a vinculação do homem com o mundo. O homem está no mundo como uma situação ótica e sonora pura. A reação da qual o homem está privado só pode ser substituída pela crença.”

Em seu cinema, Camilo recria de um tempo próprio, que cruza um espaço mais existencial do que geográfico. Seus filmes reconstroem o mundo pela simplicidade, pela redução de elementos. Pessoas são arquétipos e ambientes se confundem com estados emocionais. A verdade é representada em um plano alegórico, filosófico, onírico.

“No Sertão, as relações são mais honestas, não têm subterfúgios”, diz Camilo. “Não têm meia palavra, só inteira, a retidão de caráter, enquanto no território urbano, as relações estão desgastadas, perderam o viço, são escamoteadas, sem respeito, banalizadas. Por isso, no universo sertanejo, as relações de amor ganham proporção muito maior. A natureza se confunde com o homem, que sente melhor o tempo. Ao contrário da alienação da cidade, é uma rotina intimamente ligada com a natureza. Há o tempo parado, onde nada acontece. E quando acontece, vem com força.” 

ANDRÉ DIB, jornalista.

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