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Ainda temos muito o que extrair do anarquismo

TEXTO Alfredo Cordiviola

01 de Fevereiro de 2013

No filme 'Amor e anarquia', um camponês se esconde num bordel para planejar o assassinato de Mussolini

No filme 'Amor e anarquia', um camponês se esconde num bordel para planejar o assassinato de Mussolini

Foto Divulgação

No filme Amor e anarquia (1973), de Lina Wertmüller, um desavisado camponês chega à cidade grande com uma missão secreta: assassinar Mussolini. Oculto em um bordel, sob a proteção de uma prostituta anarquista, vai tecendo um plano de ação que, fatalmente, seria incapaz de cumprir. Amor e anarquia é também o título de um conhecido texto do ativista italiano Errico Malatesta (1853-1932), homem de vida aventureira e permanentemente compromissada com os ideais libertários, que soube interpretar com lucidez os dilemas das conturbadas décadas que uniam os séculos 19 e 20. Como o filme da cineasta e o escrito do militante demonstram, a seu modo, a concatenação de ambos os substantivos, instaura um vínculo necessariamente conflituoso, que aponta a interpelação das bases afetivas que perpetuavam as profundas desigualdades da sociedade. Desigualdades que, longe de estar ancoradas apenas na esfera da exploração laboral, nas hierarquias de classe ou na naturalização da violência e dos privilégios por parte dos poderes estatais e econômicos, atravessavam o cerne mesmo da composição familiar e a trama das relações amorosas.

Intervir na trama dessas desigualdades era o grande objetivo do pensamento de cunho emancipatório que se multiplica pelo Ocidente nesse período marcado pelas migrações massivas, pela explosão demográfica das cidades, a expansão do imperialismo e a concentração do capital. O anarquismo não era uma doutrina fechada, deve ser pensado, de fato, como um campo de debate que reunia um conjunto bastante heterogêneo e, às vezes, contraditório, de experimentações e estratégias. Propunha abolir a autoridade, não para destruir todo tecido social, o que seria negativo para implantar as transformações desejadas, mas para criar novas formas de coletividade baseadas no mandato da cooperação livre e voluntária. Como escreve Malatesta, “abolir a autoridade significa abolir o monopólio da força e da influência; abolir a autoridade significa abolir este estado de coisas em que a força social, ou seja, a força de todos, é o instrumento do pensamento, da vontade e dos interesses de um pequeno número de indivíduos que mediante a força suprimem, em proveito próprio e das suas particulares ideias, a liberdade de cada um”. Em um mundo que se encaminhava para a hecatombe da guerra e do totalitarismo, aspiravam a negar privilégios e a multiplicar os vínculos solidários. Agiam contra o rei, contra o bispo e contra o patrão, mas também contra os micropoderes que tendiam a perpetuar a opressão e o status quo.

ZONA DE GUERRA
É evidente que o anarquismo não pretendia atingir um ideal absoluto de perfeição, que em si mesmo seria impossível, mas propor caminhos para que os seres humanos pudessem usufruir mais cabalmente as suas potencialidades. Urgia debater outras versões das políticas dos poderes, das pátrias e dos corpos. Mas os propagandistas da nova ordem não eram ingênuos sonhadores, e sabiam que entre as vontades da classe ou do sujeito e a noção de bem comum se estende uma zona de guerra formada por interesses, antagonismos e conflitos de todo tipo. Sabiam que quanto maior e mais diversa fosse a comunidade a ser transformada, mais difícil seria que todos seus membros conseguissem manter-se permanentemente dentro das convenções ditadas pelo altruísmo e a continência. Como fazer então para que os poderosos abandonassem seus modos de dominação? Como redefinir a noção de liberdade em sociedades que instauraram o credo do arbítrio, do mérito e da astúcia do eu como garantias de estabilidade e de progresso?

No campo dos afetos e da sexualidade, como criar vínculos mais justos, que não estivessem regidos pelas mesmas (ou similares) práticas de exploração que multiplicam as exclusões e impõem os mais diversos modos de subalternidade entre aqueles que deveriam ser iguais? Dilemas complexos como esses estavam no centro das reflexões e táticas dos movimentos libertários. Ao reivindicar o desejo e a união livre entre os indivíduos, os postulados anarquistas colidiam com as verdades instituídas pelo discurso médico, que define as diferenças em termos de patologia, e contra os dogmas dos discursos religiosos e jurídicos que disciplinam o matrimônio, a posse e a maternidade. Com proclamas e com ilusões, com periódicos, bombas, greves e comunidades experimentais, os anarquistas procuravam criar modos de convivência mais equilibrados e justos, tanto na constelação social mais ampla quanto no marco familiar, dando novos sentidos à palavra liberdade e instituindo a fraternidade como princípio ordenador do mundo.

O mundo reservou ostracismo, prisão, exílio e morte para muitos daqueles exaltados ativistas, mas seria injusto dizer que a causa do anarquismo fracassou e se dissolveu nas brumas do passado. E é precisamente na dimensão dos afetos, nas relações amorosas (e nos debates atuais que atravessam essas esferas) em que as ideias anarquistas ecoam hoje com renovada força. Ao longo do último século, a progressiva separação da Igreja e do Estado, as batalhas dos feminismos, as lutas pelo reconhecimento da diversidade sexual e pela possibilidade de dispor do próprio corpo permitiram conquistar certos consensos que, contudo, continuam sendo ameaçados e resistidos por várias frentes de reação. Não há dúvida de que os padrões de comportamento mudaram enormemente, e, portanto, outras são hoje as causas em disputa. Mas em tempos nos quais, em vários países da América Latina, se debate e se legisla sobre casamento igualitário, descriminalização do aborto, violência doméstica e igualdade de gênero, é sempre oportuno lembrar que a discussão de todos esses problemas obedece a uma longa história no Ocidente, história para a qual as ideias anarquistas contribuíram significativamente. Em matéria de desejos, afetividades e laços intersubjetivos, temos muito ainda que aprender com as propostas, as esperanças (e também com os paradoxos e as impossibilidades) do anarquismo. 

ALFREDO CORDIVIOLA, professor e doutor em Estudos hispânicos e latino-americanos pela Universidade de Nottingham.

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