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'Satwa': O estopim de uma nova era

Há 40 anos, era lançado o disco que desencadearia um dos mais criativos movimentos musicais do Recife, capitaneado por Lula Côrtes e Lailson de Holanda

TEXTO Marcelo Abreu

01 de Fevereiro de 2013

Lula Côrtes, com o seu tricórdio, instrumento que marcou o 'Satwa'

Lula Côrtes, com o seu tricórdio, instrumento que marcou o 'Satwa'

Foto Reprodução

Quando músico e cartunista Lailson de Holanda Cavalcanti, então com 19 anos, conheceu o também multiartista Lula Côrtes, de 23 anos, na Feira Experimental de Música de Nova Jerusalém, no final de 1972, a identificação musical entre os dois foi imediata. Além da amizade, o resultado do encontro seria concretizado alguns meses depois com o lançamento do disco Satwa, em fevereiro de 1973. Composto, gravado e prensado no Recife, de forma independente, Satwa tornou-se, há exatos 40 anos, o precursor de um movimento musical gerado na cidade, que acabou resultando em alguns dos discos mais importantes da música brasileira dos anos 1970, com trabalhos de nomes como Zé Ramalho, Marconi Notaro, Flaviola e da banda Ave Sangria.

Os álbuns, gravados entre 1972 e 1974, tornaram-se, ao longo dos anos, itens de colecionador, raridades para uns poucos conhecedores da cena local. Recentemente, porém, alguns deles voltaram às prateleiras das lojas, nos formatos de CD e vinil, com capas originais, através de um selo inglês chamado Mr. Bongo, que comprou o catálogo da antiga gravadora pernambucana Rozenblit, na qual foram feitas as gravações. Com o tempo, a música do período, rotulada hoje no exterior como “folk psicodélico brasileiro”, passou a atrair a atenção de um público alternativo, interessado em curiosidades musicais, nos Estados Unidos e na Europa, fenômeno que vem incluindo, nos últimos 15 anos, bandas como Os Mutantes e até gente da bossa nova como Marcos Valle e Joyce.

Nos anos 1970, foi Satwa que desencadeou o processo. Na época, Lula Côrtes havia voltado de uma viagem ao Marrocos, onde comprara um instrumento exótico de três cordas, do qual não sabia nem o nome. Ele e Lailson passaram a chamá-lo de tricórdio ou cítara marroquina. Começaram a improvisar juntos, na casa de Lula, no Bairro do Monteiro. Lailson descobriu por lá um violão folk de 12 cordas, e passou a usá-lo para acompanhar Lula no tricórdio. Foram surgindo as primeiras composições influenciadas pelo rock da época, pelas raízes nordestinas e por elementos da contracultura que iam do psicodelismo ao misticismo oriental. A palavra satwa, por exemplo, em sânscrito, significa o terceiro aspecto da realidade, em que o divino se encontra com a matéria, de forma harmônica.


Capa do disco Satwa. Imagem: Reprodução

Os títulos das músicas dizem muito sobre o clima do disco. Blues do cachorro muito louco, Allegro piradíssimo e Valsa dos cogumelos são algumas delas. Originalmente, algumas canções tinham letras, mas, para evitar problemas com a censura, decidiram gravar somente a parte instrumental. “O disco em si é uma porra-louquice muito grande. Ele só ficou compreensível muitos anos depois, quando aconteceram coisas como a world music”, diz hoje Lailson.

Gravado em duas semanas nos estúdios da Rozenblit, no Bairro de Afogados, Satwa foi feito de forma independente e tem um clima viajandão, de improviso sem limites. “Cada vez que a gente tocava era uma variante, a mesma canção, mas não do mesmo jeito, porque a proposta era muito essa coisa fluida do zen”, lembra o cartunista.

UNDERGROUND
Costuma-se afirmar que o trabalho de Lailson e Lula teria sido o primeiro disco independente gravado no Brasil. A primazia é contestada por alguns e difícil de ser estabelecida com segurança, mas isso pouco importa. O fato é que ele se insere perfeitamente dentro da cultura alternativa dos anos 1970 como um típico produto da época. É aquele tipo de trabalho musical feito num estúdio por alguns músicos cabeludos cheios de idealismo, que pegaram as mil cópias do LP pronto, colocaram debaixo do braço e saíram vendendo a amigos em casas, bares e em algumas poucas lojas. Tudo fora do esquema das grandes gravadoras que dominavam o mercado.

Logo depois de Satwa, foram gravados no Recife, já com a chancela da Rozenblit, o disco de Marconi Notaro, que se chamou No sub-reino dos metazoários e o de Flaviola, intitulado Flaviola e o Bando do Sol. Lula Côrtes esteve envolvido em quase todos os trabalhos da turma, produzindo e tocando o seu tricórdio. Ele costumava especular que a semelhança entre o som do instrumento e a viola nordestina se devia à influência dos mouros na Península Ibérica e depois no Nordeste brasileiro. O guitarrista Ivson Wanderdey, o Ivinho do Ave Sangria – e que viria a gravar um disco solo ao vivo no Festival de Montreux, na Suíça, em 1978 – também fez suas participações nos discos dos amigos. Juntos, eles formam a chamada geração do Beco do Barato, espaço de shows alternativos que funcionava na Avenida Conde da Boa Vista e reunia a moçada hippie.


Lailson de Holanda, parceiro de Lula Côrtes em Satwa. Foto: Arquivo pessoal Lailson

Mas foi com Paêbirú – caminho da montanha do sol, lançado em 1975 numa parceria de Lula Côrtes com o paraibano Zé Ramalho, que o movimento atingiu seu momento mais marcante. Inspirado nas lendas indígenas da Pedra do Ingá, na Paraíba, o disco conceitual de Lula e Ramalho é típico da música underground da primeira metade dos anos 1970. Suas canções trazem letras que exploram o misticismo pagão da pré-história brasileira, acompanhadas por instrumentos como flautas, percussão, cordas e efeitos sonoros, criando um clima experimental. Além de Ramalho e Lula, o disco reúne dezenas de nomes promissores da música da Paraíba e de Pernambuco na época.

Os quatro lados do LP duplo levam os nomes dos elementos básicos da natureza: terra, ar, fogo e água. As imagens sonoras são fortemente influenciadas pela contemplação das inscrições misteriosas na pedra e pelo consumo de maconha e cogumelos. Do ponto de vista conceitual, o universo explorado em Paêbirú se assemelha à tendência do rock internacional, na época, de pesquisar fusões com músicas regionais e explorar, na temática, correntes místicas alternativas. Portanto, nada de muito novo, mesmo naquele tempo.

Talvez seja a história atribulada do disco um dos fatores que possam explicar o prestígio que ele tem hoje em dia. Das 1.300 cópias feitas, cerca de mil se perderam na própria gravadora, duramente atingida pela grande enchente de 1975. Com as águas, foi encerrado precocemente o ciclo pop na Rozenblit, apesar de continuarem existindo bandas na cidade. As cópias que sobraram ajudaram a criar a aura em torno do disco. Ele entrou para a história até mesmo por ter sido renegado, posteriormente, por Zé Ramalho, que se recusa a falar sobre o trabalho. Lula Côrtes partiu para outros projetos, na música e nas artes plásticas e Paêbirú ficou esquecido, até que virou item de colecionador, chegando a ser o disco brasileiro mais caro no mercado de raridades.

Com os lançamentos da Rozenblit, o meio musical começou a perceber que algo interessante estava acontecendo no Recife. Foi quando a banda Ave Sangria conseguiu um contrato com a gravadora Continental. Os rapazes da Vila dos Comerciários, na zona norte do Recife, foram gravar no Rio de Janeiro e hoje são reverenciados por muitos pelo disco homônimo, conhecido por músicas como Seu Waldir e Lá fora. Sem nunca ter sido lançado oficialmente em CD, (apenas houve um relançamento em LP no fim dos anos 1980), o disco também virou cult. O jornalista Marco Polo Guimarães, então cantor e líder da banda, diz que se espantou ao ver a moçada cantando as músicas do Ave, num show recente que fez em São Paulo. “Foi de arrepiar”, conta.


Clássicos do rock pernambucano voltam ao mercado. Fotos: Reprodução

FORA DO BRASIL
Nos anos 1990, começou na Europa o interesse por música pop de países periféricos como o Brasil. Satwa e No reino dos metazoários foram relançados pela pequena gravadora Time-lag, do Maine, nos Estados Unidos, em 2004, em edição limitada. Mas, agora, os relançamentos da inglesa Mr. Bongo têm mais alcance e são vendidos também no Brasil. O inglês David Buttle, dono do selo especializado no resgate de filmes e discos cult, morou nove meses na Bahia. Ele conta que descobriu o acervo da Rozenblit quando ouviu, por acaso, uma versão pirata de Paêbirú, lançada na Alemanha.

Buttle comprou todo o catálogo da gravadora, que inclui discos como Grande liquidação, de Tom Zé, e Rosa de sangue, do próprio Lula Côrtes. O selo pretende continuar colocando preciosidades locais no mercado. Um de seus primeiros lançamentos foi a coletânea Psychedelic Pernambuco, álbum duplo que reúne as figuras mais badaladas do movimento e também nomes que surgiram no período, como Geraldo Azevedo e Alceu Valença. “A coletânea abriu os olhos de muitos estrangeiros que não conheciam o som de Pernambuco”, diz David Buttle.

Os LPs têm sido relançados em vinil de 180 g, o que dá mais fidelidade ao som. Um cuidado especial foi tomado com as capas dos discos, que reproduzem as embalagens originais e os encartes, o que se torna um atrativo a mais para aqueles que compram as versões em vinil.

PSICODELIA
Sobre o rótulo de música psicodélica, tomado emprestado da contracultura norte-americana para descrever o som feito no Recife, Marco Polo, do Ave Sangria, lembra que, na época, ninguém usava essa definição, termo mais apropriado para nomes como Jimi Hendrix e Pink Floyd. Mas também não se incomoda. “Não aceito nem rejeito o rótulo”, diz. Já Lailson afirma que o termo se adapta bem porque retrata toda uma cultura de expansão da mente que vigorava entre os músicos.


O produtor David Buttle promove relançamentos no exterior. Foto: Porto Digital

A cena local, nos anos 1970, projetou nomes como Geraldo Azevedo, Alceu Valença e Zé Ramalho para todo o país. Também da época são os guitarristas Robertinho do Recife e Paulo Rafael e o instrumentista e produtor Zé da Flauta. Mas muitos talentos não tiveram a mesma continuidade na música. Lailson enveredou pelas artes gráficas, tornando-se um dos melhores chargistas da história de Pernambuco e só retomando a música nos anos 1990, nas horas vagas. Marconi Notaro, que acabou se dedicando mais à poesia, morreu em 2000. Flávio Lira, o Flaviola, mudou-se para o Rio de Janeiro, onde trabalha com produção musical. O Ave Sangria teve problemas com a censura e se desfez após um primeiro disco muito promissor.

Lula Côrtes seguiu pintando, escrevendo poesia e fazendo música até sua morte, em 2011. Mas teve uma divulgação precária para muitos de seus trabalhos. Perguntado sobre o motivo da parceria com Lula em Satwa não ter gerado outros frutos, Lailson atribui o fato aos muitos outros projetos do amigo: “Lula era um talento gigantesco que nunca foi reconhecido na sua grande dimensão, mas também porque ele era feito macaco louco, pulava de um galho para o outro, fazia muita coisa”.

Há poucos anos, lendo uma resenha sobre Satwa, publicada na Grécia, Lailson finalmente descobriu o nome do tricórdio marroquino de Lula Côrtes, que se tornou um dos símbolos do movimento. Trata-se de um gimbri (também chamado de sentir ou hadjouj), instrumento usado na música do norte da África. “Não sei se Lula usava a afinação certa, mas isso não tem a menor importância. Com ele, criamos um som diferente, um encontro entre duas culturas.”

Sobre a volta, agora, de discos lançados de forma despretensiosa há quatro décadas, Laílson utiliza uma metáfora bem no clima da contracultura: “É como os círculos formados por uma pedra que cai na água. A pedra vai ampliando o círculo até que ele volta para a praia. Satwa, para mim, é isso, de vez em quando chega mais um círculo. É gratificante ter feito uma coisa pela qual as pessoas se interessam até hoje” 

MARCELO ABREU, jornalista, professor e autor de livros-reportagem e de viagem.

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