FOTOS RICARDO MOURA
01 de Janeiro de 2013
Os vendedores usualmente atraem seus compradores com alto-falantes
Foto Ricardo Moura
Há mais filosofia no ranger dos saltos altos da sua vizinha do que julga sua humilde paciência. Há mais política no barulho da construção ao lado do que imagina sua resignação com o ritmo da cidade – cujo desenvolvimento imperativo não tem piedade alguma com o limite sonoro que se pode suportar diariamente. É intrínseco à experiência moderna o desenvolvimento econômico e material capaz de promover o bem-estar social, dirão os desenvolvimentistas. É inerente à condição moderna, também, o confronto entre o coletivo e o individual.
Existem diversas formas dessa relação entre social e pessoal se estabelecer e revelar sua complexidade. Entre elas, a convivência urbana com o som, o ruído e seu contrário, o silêncio. Numa síntese: a coexistência com a paisagem sonora. Sendo esta a ambiência formada pelos sons característicos do meio geográfico no qual uma cidade se encontra (ruídos do mar, clima, fauna e flora) e pelos recursos técnicos relacionados ao seu fluxo diário.
Segundo o músico e ensaísta José Miguel Wisnik (O som e o sentido), sons e ruídos são elementos não materiais, tangíveis pela identificação com as sensações permitidas pela visão e pelo tato. Onde estão o som e o ruído, afinal? No barulho do vizinho, na buzina do carro, na britadeira da obra, no carrinho de CD pirata? Somos condicionados e perpassados pela paisagem sonora contemporânea, simultaneamente abstrata e ubíqua. Mas nos acostumamos a localizá-la nos objetos que a reverbera.
O professor de Arquitetura e Urbanismo da UFPE, Ruskin Marinho, diretor de Estudos Regionais e Urbanos, na Agência Estadual de Planejamento e Pesquisas de Pernambuco/Condepe Fidem, frisa: é preciso diferenciar som e ruído, sendo o segundo “todo som não desejado, pelo incômodo físico e psicológico que causa”. Wisnik nos mostra que a natureza oferece dois grandes modos de experiências sonoras. “Frequências regulares, constantes, estáveis como aquelas que produzem sons afinados, com altura definida; e frequências irregulares, inconstantes, instáveis, como aquelas que produzem barulhos, manchas, rabiscos sonoros e ruídos.”
O crescimento da cidade produz sons e ruídos constantes.
Foto: Bernardo Soares/JC Imagem
O som pode despertar o mais sublime dos sentimentos pela emoção da música, melódica, harmônica. O ruído se coloca de forma inconveniente e perturbadora, sendo, inclusive, um dos grandes motivos de estresse urbano e social. Em A afinação do mundo, Murray Schafer, analisando a década de 1970, vaticina que o ambiente acústico das grandes cidades mudou radicalmente nossa percepção e cognição. “Pode-se dizer que em todo o mundo a paisagem sonora atingiu o ápice da vulgaridade”, ele afirma.
O ruído precede o som, pois o universo se apresenta acusticamente de forma desorganizada e irregular. É a partir da ordenação desse caos que o ruído se transforma em música. Enquanto o som, organizado, tem sua periodicidade e constância (também estando ligado à tradição e aos costumes), o ruído altera a estabilidade, de modo defasado e irracional. Para Wisnik, aliás, o complexo corpo/mente é uma medida referencial das frequências sonoras. “Toda a nossa relação com os universos sonoros e a música passa por certos padrões de pulsação somáticos e psíquicos, com os quais jogamos ao ler o tempo e som.”
MARCOS SONOROS
A emissão de sons, por mais espontânea que seja, é uma experiência física complexa, e resulta nessa apreensão somática e psíquica, que, não à toa, pode emocionar e perturbar intensamente. Um fenômeno acústico que implica também interpretação e interpenetração, já que os elementos que compõem e produzem os sons são compartilhados pelas comunidades e estão providos de significados culturais e simbólicos – sejam os elementos orgânicos de uma comunidade (seus rituais, como procissões, festas e ritos religiosos, além, claro, do ecossistema natural) ou a dinâmica tecnológica que a envolve (fluxo viário, verticalização etc.).
O pesquisador Murray Schafer concluiu que o ambiente acústico das metrópoles mudou nossa percepção e cognição. Foto: Divulgação
“Cada paisagem sonora tem seu próprio som peculiar e com frequência esses sons são tão originais, que constituem marcos sonoros”, explica Schafer, no estudo citado. O problema, segundo o teórico, é quando essa identidade sonora é anulada pela enorme quantidade de ruídos advindos do próprio desenvolvimento tecnológico. “Os sons das máquinas popularizam um simbolismo feliz de cerca de 200 anos, quando se percebeu que eles poderiam libertar o homem de sua imemorial ligação com a terra. Tradicionalmente, a máquina simbolizou duas coisas: poder e progresso. Desde o advento da Revolução Industrial, o homem ocidental tem sido enfeitiçado pela velocidade, eficiência e regularidade da máquina e pela extensão pessoal e corporal que ela faculta.” Resumindo: estamos até dispostos a sacrificar-nos em nome do processo civilizador, desde que ele signifique evolução econômica e estrutural. Mas a que preço e para quem?
Tal disposição reporta-nos a questões essenciais do caráter modernizador das cidades. Algo que Manuel Bandeira, em 1922, já abordava liricamente no poema Evocação do Recife, escrito no tempo em que eram os automóveis, e não os edifícios, os índices de modernidade da cidade. A nostalgia de sons passados como os dos mascates ou dos pregoeiros, hoje substituídos por toda sorte de vendedores, que atraem sua clientela com os sons dos eletrônicos chineses, também é sentida pelo sociólogo Jonatas Ferreira. Pregões, cantorias, cantos e instrumentos que outrora marcaram o cotidiano da cidade e ajudaram a fomentar sua identidade, associada ao empreendedorismo holandês, resistem em um novo formato.
“A verdade é que os pregoeiros de algum modo ainda habitam o subúrbio recifense. Só que dispõem de uma insuportável aparelhagem de som para vender desde candidato a vereador até sorvete: ‘Venha e traga a vasilha. Três bolas só paga um real’. Vendedores de fruta também há, embora já não cantem seus anúncios. Parece que a única coisa que consegue fluir numa cidade paralisada, como se tornou o Recife, é o ruído”, diz o sociólogo.
O jornalista e DJ Renato L acredita que o crescimento econômico, com distribuição de renda nas camadas mais populares, intensificou a barulheira gerada por artefatos do período fordista (televisão, carros), com consequências para o ecossistema sonoro da cidade como um todo. “Além disso, o incremento da miniaturização e da portabilidade trazidos pela tecnologia digital ajudou a saturar esse ecossistema com novos e velhos ruídos – basta pensar na imensa variedade de ringtones que cercam nosso cotidiano.”
O DJ observa outra consequência dessa nova paisagem sonora: a “blindagem”, por meios dos gadgets. “Muitas das experimentações artísticas da modernidade foram inspiradas pelo ecossistema sonoro das grandes cidades, com o barulho dos carros, as milhares de conversas cruzadas, o ritmo das falas, as narrativas aos pedaços...Tudo isso se perde quando você se fecha numa bolha auditiva que o protege do noise das ruas, individualiza (e empobrece) uma experiência que, antes, era bem mais coletiva”.
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