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Noronha: A outra face do paraíso

Procurada por sua vocação de lazer, a única ilha habitada do arquipélago também guarda lendas, histórias de mistério e heranças de violência

TEXTO E FOTOS FRED NAVARRO

01 de Janeiro de 2013

Foto Fred Navarro

Fernando de Noronha fica a 545 km do Recife e a 360 km de Natal. As praias que hipnotizam os turistas e os mergulhos com visibilidade de até 40 m são suas principais atrações, mas o arquipélago abriga histórias e mistérios que costumam se esconder do visitante mais apressado ou desatento. Ao longo do tempo, isolados parcialmente do país, mas não do mundo, seus habitantes herdaram lendas dos muitos navegantes que lá encontraram repouso em meio à travessia do Atlântico.

O arquipélago foi ocupado e conquistado entre os séculos 16 e 18 por holandeses, franceses e portugueses, mas nesse período foi visitado com frequência por piratas e aventureiros de diversas origens, e a serviço de inúmeros reinos e bandeiras (ingleses, alemães e espanhóis entre eles). Essa diversidade – aliada à contribuição da cultura continental, especialmente a pernambucana – gerou mitos ao longo dos séculos, e eles hoje enriquecem a memória e a cultura locais.

Outro aspecto marcante na história do arquipélago diz respeito ao fato de ele ter funcionado, por mais de 300 anos, como presídio. Episódios dolorosos, decorrentes das violências praticadas na Fortaleza dos Remédios, na Solitária do Sueste e em outras dependências da ilha, são passados adiante, de geração em geração.


Alamoa é a lenda mais popular do arquipélago. Nomeia estrada, pousadas,
lojas e restaurantes

Assim é que narrações do maravilhoso, do além-mar e memórias do cárcere formam um conjunto de lendas, mitos e histórias de Noronha, contados pelos ilhéus e registrados por pesquisadores. Diante dos cenários onde supostamente ocorreram e das marcas que deixaram na ilha principal, somos levados a uma percepção do fantástico, para além do encantamento diante da beleza natural do lugar. A principal ilha é a única habitada das 21 que compõem o arquipélago. Com apenas 17 km2, tem histórias fascinantes e insuspeitas para contar, como as que se seguem.

CACIMBA DO PADRE
Em 1888, o padre Francisco Adelino de Brito Dantas, capelão do presídio da Fortaleza dos Remédios, descobriu água potável nas imediações da casa onde morava, na praia da Quixaba, e lá construiu uma cacimba de 14 m de profundidade. Sua fama espalhou-se tanto, que o nome da praia, nas décadas seguintes, passou a ser Cacimba do Padre.

Situada na área central do chamado Mar de Dentro da ilha principal, a praia tem cerca de 500 m de areia branca, fica diante das imponentes Ilhas Dois Irmãos (indiscutível “cartão-postal” do arquipélago) e dá acesso, de um lado, à Baía dos Porcos, e, do outro, às praias do Bode, do Americano e do Boldró. Contam os ilhéus que o padre nunca se desapegou do lugar, que por ele seria assombrado.


Conta-se que o padre aparece, à noite, para vigiar a fonte de água que deu nome à praia Cacimba do Padre

Registro do mal-assombro é feito por Campos Aragão, em Guardando céu nos trópicos: “Nas imediações da fonte, ruínas indicam grandes construções do passado, possivelmente a casa onde viveu o legendário padre. Dizem que, à noite, o reverendo aparece no lugar, montado numa mula branca como a neve, chegando até a beira da cacimba, como a vigiá-la. E o lugar, silencioso e belo, guarda segredos jamais desvendados”.

ALAMOA
Luís da Câmara Cascudo, em Geografia dos mitos brasileiros, afirma: “É uma entidade fantasmagórica que aparece na ilha de Fernando de Noronha. É moça branca, loura, nua, tentando os pescadores ou caminhantes retardatários. Transforma-se depois em um esqueleto, endoidecendo o namorado que a seguiu. É também vista como uma luz ofuscante, policolor, perseguindo quem foge dela”.

Segundo a tradição, essa mulher inefável mora no Morro do Pico. Como lenda mais popular do arquipélago, nomeia pousadas, lojas, restaurantes e também uma importante estrada da ilha principal que dá acesso às preciosas praias do Meio e da Conceição.

O pesquisador Pereira da Costa, no Folclore pernambucano: subsídios para a história da poesia popular em Pernambuco, considera a lenda da Alamoa “uma reminiscência do tempo dos holandeses”, quando os nativos pela primeira vez se depararam com mulheres brancas, altas e louras no arquipélago. Câmara Cascudo refutou essa tese (“... pode ser uma convergência de várias lendas de sereias e iaras estrangeiras...”) e afirmou ser difícil determinar com exatidão a sua origem, por ser recorrente no imaginário popular o tema da mulher bela e sobrenatural que primeiro atrai e seduz os homens, e em seguida os destrói implacavelmente.

Em tempos mais recentes, a Alamoa passou a ser chamada pelos ilhéus de Mulher de Branco (ou Dama de Branco), pois é vestida com roupas alvas que “ela” pede carona aos que passam pela BR-363 (única estrada asfaltada da ilha habitada do arquipélago, com apenas 7 km de extensão). Inúmeros ilhéus, mulheres inclusive, relataram já terem se deparado com a Alamoa, principalmente em altas horas da noite.

Em Portugal (na região das Beiras), é feminino de “alemão” e, como gíria, equivale a mulher forte e corpulenta. A Alamoa é citada também na lenda da Porta do Pico.

CAJUEIRO DA CIGANA
Por volta de 1739, dois anos após a expulsão definitiva dos franceses, os portugueses trouxeram os primeiros prisioneiros, inaugurando a função do arquipélago como presídio-exílio para aqueles considerados “vadios ou desordeiros”, ou seja, incômodos ao Reino por quaisquer motivos.


As aparições do Gigante da Meia-Noite ocorreriam no Casarão do Sueste

O grupo inicial era composto por chefes de famílias ciganas de todo o Brasil. Depois, chegaram os líderes farroupilhas derrotados (1844) e os praticantes de capoeira (em 1890, acusados de “vagabundagem”). Desde antes da República, e ao longo de boa parte do século 20, Noronha foi o destino de prisioneiros comuns e de presos políticos de todos os matizes.

Parte da herança desses “moradores por obrigação” pode ser encontrada na lenda do Cajueiro da Cigana: “Era uma linda cigana. Vivia em um casebre, em lugar deserto, no caminho do Sueste. Ao lado do mocambo, plantou um dia um cajueiro, que cresceu, tornando-se árvore frondosa. (...) Dizem que ali, em noite escura, costumam se encontrar os fantasmas materializados de um ‘general’ montado a cavalo, de chapéu, gibão e espada na mão; de um ‘ordenança’, de couraça e armado com uma lança; e de um ‘padre’ com seu solidéu. (...) Outras vezes, um vulto moreno de rara beleza vagueia, como estranha aparição, naquele lugar onde, segundo contam, existe enterrado um caixão de ferro e cobre, com rico tesouro deixado pelos holandeses...”. Quem registrou tais aparições foi Maria José (Marieta) Borges Lins e Silva, em Fernando de Noronha: lendas e fatos pitorescos.

GIGANTE DA MEIA-NOITE
A lenda diz respeito a um pescador de estatura gigante, com um enorme chapéu negro sobre o rosto, que surge no pesqueiro da Sapata (extremo sudoeste da ilha). Quando não está pescando, é visto nas imediações da Casa-Grande (ou Casarão) do Sueste, onde mora. Em tempos remotos, essa casa-grande foi residência de veraneio dos comandantes do presídio e também hospital para afetados pelo beribéri (inflamação ou processo degenerativo provocado pela carência de vitamina B-1).


A Fortaleza dos Remédios funcionou por mais de 300 anos como um presídio. No passado, um cenário de tortura e morte

A descrição de Olavo Dantas, no citado Sob o céu dos trópicos, é digna das narrativas de piratas, em que se insere até o curioso personagem do duende. “Quando o Gigante da Meia-Noite começa a pescar, nenhum outro pescador consegue mais apanhar coisa alguma. Só ele é feliz na pescaria. Depois de apanhar 10 grandes xaréus, o pescador misterioso se retira com a gravidade e a lentidão adequadas à dos fantasmas. (...) O Gigante da Meia-Noite, comandando a legião de fantasmas, dança, com seus comparsas, no vasto pátio da Casa-Grande enquanto uma orquestra de duendes abala as colunas de basalto, com o som rouco de seus acordes noturnos.”

QUEBRA-ROÇO
Nome de uma sala existente no antigo presídio da Fortaleza dos Remédios, onde eram aplicados castigos e suplícios. A fortaleza fica 45 m acima do nível do mar, e foi construída em 1737 sobre as ruínas de um forte holandês de 1629, resquício do período em que boa parte do nordeste brasileiro (de Pernambuco ao Maranhão) esteve sob domínio desse povo.

Alguns de seus calabouços e subterrâneos foram cenários de torturas e assassinatos durante mais de três séculos, mas há bastante tempo foram aterrados com barro e cimento, e o silêncio aos poucos cumpre seu papel de encobrir muitos dos dramas que ocorreram por lá. Mas não todos, como nos conta Olavo Dantas.

“Uma porta pequena (mais uma abertura do que uma porta) comunicava a sala com o subterrâneo, que terminava na Caverna dos Suspiros ou do Funil, no penhasco embaixo da Fortaleza. Quando as torturas não davam resultado, o último argumento era precipitar a vítima pela abertura, de onde jamais sairia com vida. Ou então, apinhada a sala de presos, eram eles comprimidos uns aos outros, até que alguém caísse pela abertura e se perdesse para sempre. Seu nome, ‘quebra-roço’, significava que, ali, todo orgulho, vaidade ou coragem eram quebrados, com a força de ‘argumentos irrefutáveis’.”

TESOURO DO CAPITÃO KIDD
Junto à Praia do Cachorro, no penhasco do Morro do Forte (onde fica a Fortaleza dos Remédios), encontra-se a Caverna dos Suspiros ou Caverna do Funil, nomes populares para um conjunto de fendas que desembocam num enorme salão, cavado pelo mar. Ao penetrá-las, com violência, a água do mar comprime a massa de ar no seu interior, que escapa por diversos orifícios superiores e produz estrondos ouvidos à distância, semelhantes a uma avalancha contínua, chamada também de Urro do Leão.

Para um cenário tão peculiar quanto esse, não podia deixar de haver uma lenda, uma narrativa digna de pirata. E é exatamente sobre o escocês William Kidd (1645-1701), ou o Capitão Kidd, que essa história trata. Diz-se que foi na Caverna dos Suspiros que o capitão escondeu seu tesouro, uma pilhagem de ouro e pedras preciosas... Alguma lembrança dos filmes de aventuras? Em Sob o céu dos trópicos, também está registrada a lenda de Kidd, à qual se soma outro personagem de intensa recorrência nas narrativas europeias: o dragão. “Diziam os presidiários que morava ali um dragão terrível, guardador do precioso tesouro e um dia, vendo, próximo à entrada da caverna, a linda filha de um prisioneiro, arrastou-a para junto de si, mantendo-a presa em seus domínios”, escreve Olavo Dantas.


Entre os “degredados” da ilha estavam ciganos. Aqui, teriam enterrado um caixão cheio de tesouros deixados pelos holandeses

IRMÃO, LUZ E PORTA DO PICO
O Morro do Pico é a máxima elevação rochosa da maior ilha do arquipélago e tem 321 m de altura. Em torno de sua “face” sisuda e amedrontadora há três contos do fantástico. Cascudo explica que Irmão era como os antigos condenados à prisão perpétua referiam-se ao rochedo espontado e alto. “Irmão do Pico era a perpetuidade na ilha, tão inseparável dela quanto o Pico, de quem o sentenciado se proclamava irmão”, é o que registra o Dicionário do folclore brasileiro.

No seu cume, há um pequeno farol desativado pela Marinha. A lenda da “Luz” é mencionada por Pereira da Costa, Beatriz Imbiriba, Campos Aragão e outros historiadores. “Em noite escura, uma luz brilha e vagueia, subindo e descendo a soturna pedra. É a Luz do Pico, que encandeia e atrai os desavisados. (...) Insensível, o Morro do Pico a tudo assiste. E a misteriosa luz aparece, de vez em quando, como um archote que se agita ao vento, assombrando todos”, descreve Gustavo Adolfo Cardoso Pinto, em Risos e lágrimas.

Há desacordo entre os nativos sobre a localização exata da Porta do Pico, uma “entrada secreta” supostamente acessível através da base que circula a enorme montanha de basalto. A maioria garante que ela fica nas proximidades da “boca” do semblante sisudo, vigilante e quase onipresente em todo o arquipélago.

“Às sextas-feiras, a pedra do Pico se fende e na chamada Porta do Pico aparece uma luz. A Alamoa vaga pelas redondezas. A luz atrai sempre as mariposas e os viandantes. Quando um desses se aproxima da Porta do Pico, vê uma mulher loura, nua como Eva antes do pecado. Os habitantes de Fernando chamam-na Alamoa, corruptela de alemã, porque para eles mulher loura só pode ser alemã... O enamorado viandante entra na Porta do Pico, crente de ter entrado num palácio de Venusberg, para fruir as delícias daquele corpo fascinante. Ele, entretanto, é mais infeliz que o cavaleiro Tannhauser. A ninfa dos montes transforma-se numa caveira baudelairiana.” A viva descrição de Olavo Dantas capta a imaginação do leitor que, depois do contato com suas lendas, jamais verá Fernando de Noronha com a inocência de antes... 

FRED NAVARRO, jornalista e escritor, autor de Dicionário do Nordeste.

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