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Escondidinho pra lá de “amostrado”

Dono do Cozinhando Escondidinho, Rivandro França é eleito chef revelação pelo principal guia de turismo do país e ainda ganhou uma estrela para o seu restaurante

TEXTO RENATA DO AMARAL
FOTOS RAFAEL MADEIROS

01 de Janeiro de 2013

Cardápio faz novas versões de clássicos da cozinha nordestina, como o ensopado de cuscuz

Cardápio faz novas versões de clássicos da cozinha nordestina, como o ensopado de cuscuz

Foto Rafael Medeiros

O ano começa com o pé direito para o restaurante Cozinhando Escondidinho, no recifense Bairro de Casa Amarela, e seu proprietário Rivandro França: ele foi escolhido Chef Revelação do Ano pelo Guia Brasil 2013, da Editora Abril, e, de quebra, ganhou uma estrela para sua casa. A breve lista de destaques do ano do guia, na área de Gastronomia, traz quatro categorias (chef, chef revelação, novidade e restaurateur) e todas as outras três ficaram no eixo Rio de Janeiro-São Paulo. Sem placa – e, por isso, seu nome ganha sentido –, o local existe há apenas dois anos, mas já virou de cabeça para baixo a vida desse quase ex-técnico de enfermagem do exército, que dá seu último plantão em fevereiro, para se dedicar exclusivamente ao restaurante.

A casa vem se juntar a outros 10 estabelecimentos – Bistrot du Vin, Chiwake, Restaurante da Mira, Mingus, Pomodoro Café, Ponte Nova, Portoferreiro, Recanto Lusitano, Tasca e Wiella Bistrô – que fazem com que o Recife só fique atrás de São Paulo e do Rio de Janeiro, em número de casas indicadas pela publicação. Rivandro conta que ficou mais feliz porque a estrela veio para Pernambuco do que para ele e acha que o chef não deve se apegar a ela, pois pode perdê-la. “Não vou fazer como o cara de Ratatouille”, brinca, referindo-se à animação da Pixar em que o chef parisiense Auguste Gusteau morre depois de perder uma estrela. A causa? Coração partido.

Com o título de chef do ano, a sensação é outra: para Rivandro, é um sinal de que está no caminho certo, embora diga que continuará sempre buscando melhorar. “Isso ninguém vai tirar de mim”, afirma. “O Escondidinho foi ganhando vida a cada dia, ganhando alma. Hoje, as pessoas conseguem ver que ele é a minha cara.” E é essa cara tão peculiar – resultado da harmonia entre o chef, a cozinha e a casa – que faz com que ele recuse convites de investidores para entrar numa sociedade. “Será que eu não estaria matando a minha alma?”, questiona. Sua atual equipe tem 14 pessoas, quase todas da família (sobrinho, irmão, tia, cunhada), em um projeto que ele classifica como “muito pé no chão”.


Decoração é repleta de itens do artesanato local

Aos 34 anos, ele passa tanto tempo no restaurante, que não tem sobrado espaço para a vida pessoal: alugou um apartamento, mas está dormindo em um colchão, pois nem cama comprou ainda. De vez em quando, pede abrigo na casa da mãe, costureira aposentada, que não desmontou o quarto do filho. O pai, antes de se aposentar como porteiro, trabalhou como faxineiro e cozinheiro na casa de um coronel. Técnico de enfermagem há 17 anos, e no Exército há oito, ele vinha conciliando o restaurante com os plantões. O ciclo do emprego temporário acaba, ao que parece, na hora ideal.

SABOR NORDESTINO
Formado na primeira turma de Gastronomia da Faculdade Maurício de Nassau, em 2008, iniciou sua carreira na cozinha preparando bombons de chocolate em parceria com uma amiga que precisava de dinheiro para pagar a faculdade. Ela não quis continuar no negócio, mas Rivandro levou a história adiante. Começou com recheios sintéticos, depois inovou para fazer jus ao slogan “Chocolate com sabor do Nordeste”. Sabores como macaxeira e jaca passaram a fazer parte do menu. “Eu não vim ao mundo para ser melhor, mas para ser diferente”, justifica. As vendas eram realizadas no hospital, porém os clientes começaram a cobrar um local fixo para encontrar os doces.

Abrir um restaurante não estava nos planos – o chef pensava em lançar um serviço de bufê. Até que resolveu alugar uma pequenina casa na Rua Doutor Tomé Dias, em Casa Amarela, com apenas 35 lugares. Os amigos foram os primeiros a aparecer. Em seguida, ao frequentar eventos de gastronomia para divulgar os bombons, conheceu chefs como Duca Lapenda, do Pomodoro Café, Claudemir Barros, do Wiella Bistrô, e Joca Pontes, do Ponte Nova. O trio foi conhecer a casa nova e Rivandro lembra que tremia, a ponto de mal poder segurar as panelas. Adoraram os pratos, mas acharam que o local não se sustentaria com preços tão baixos. Mesmo com a sugestão dos pares, Rivandro manteve sua política do “bom e barato”.

A relação com outros chefs está presente do cardápio às mesas, que levam nomes de pessoas que o ajudaram. A receita da “mocofava” é de Rodrigo Oliveira, que, para ele, é mais que o chef do incensado paulistano Mocotó: é o amigo que abriu a porta da casa da mãe por oito dias para abrigá-lo em São Paulo. Com os colegas também foi ao Peru, em 2012, para conhecer a Feira Mistura, em sua primeira experiência fora do Brasil. Na mala, em vez de ingredientes, trouxe conceitos. “Nunca vi uma cozinha tão simples e com tanto carinho”, diz ele, que só quer viajar com motivações gastronômicas. “Não vou à França para tirar foto da Torre Eiffel”, brinca o rapaz, que nunca foi à praia de Porto de Galinhas.


A sobremesa Sabor de Pernambuco mistura macaxeira, coco, cachaça,
mel de engenho e sorvete

A rápida folga semanal acontece na segunda-feira pela manhã – até meio-dia, nem telefone ele atende. Aproveita para pegar o filho de 11 anos na escola e assistir ao programa de Ana Maria Braga, na TV Globo. “Para mim, o dia só deveria começar depois de Ana Maria!”, diz. Na terça-feira, costuma sair em busca de algum lugar novo para almoçar com os amigos, mas a labuta já começa no Escondidinho, que abre de quarta-feira a domingo para almoço. Nos dias de casa aberta, fica por lá das 6h até fechar. O novo local é maior, com 90 lugares, e fica na Rua Conselheiro Peretti, a 300 m do anterior. Continua sem placa, mas o boca a boca dá conta da divulgação. No fim de semana, é comum haver filas de espera.

Não importa se o cliente é prefeito ou pedreiro da obra ao lado: Rivandro é daqueles cozinheiros que vão à mesa para conversar com o comensal, não em busca de elogio, mas de opinião sincera. “Quero feedback, quero o que o cliente traz para somar. É por isso que vou à mesa”, explica. Leva sempre um chapéu de couro na cabeça. É uma forma de homenagear o avô, que dizia que era preciso usar gibão para cozinhar comida sertaneja. Nascido em Pedra de Fogo, na Paraíba, ele faleceu há dois anos, aos 100. Até na foto da formatura, Rivandro usou o chapéu – não por escolha, mas porque era o que estava sobrando entre os apetrechos disponíveis na hora do clique mais informal. Não acredita que tenha sido coincidência.

A cozinha do Escondidinho é regional, mas os pratos sempre trazem um toque do chef, que afirma mergulhar fundo nas receitas na hora da criação. “Toda casa sertaneja tem macaxeira, carne de sol e queijo de coalho. A diferença pode estar na técnica de cozimento, lento, para deixar desfiando.” No momento desta entrevista, ele estava analisando o que poderia ser feito com a macaíba. O lado autoral deve aflorar mais ainda este mês, com o lançamento do menu degustação previsto para acontecer nas quintas ou sextas-feiras à noite, com opções diferentes a cada semana. Pode ser, por exemplo, uma tilápia com banana-da-terra perfumada com gengibre e raspa crocante de queijo manteiga.

Apesar do nome da casa, o escondidinho aparece como prato principal apenas às quartas-feiras. Nos outros dias, pode ser pedido como entrada, junto a opções como a codorna frita com mel de engenho ou a Tábua da salvação: carne de sol, queijo, banana-da-terra, macaxeira, calabresa e castanha de caju, salteados na manteiga de garrafa e finalizados com cachaça. Arroz de terceira (carne de sol desfiada com cubos de queijo de coalho, puxada na manteiga de garrafa com purê de batata-doce com hortelã) e Mocofava (caldo de mocotó, fava, calabresa e charque, acompanhado de arroz) são alguns dos principais. A pimenta biquinho é marca registrada.


Rivandro França ganhou a honraria de "Revelação do Ano" do
Guia Brasil 2013

Na hora da sobremesa, as pedidas incluem o doce Sabor de Pernambuco (feito com macaxeira, mel de engenho, coco e cachaça, servido quente com sorvete de creme), os bombons – bolo de rolo, cachaça e queijo do reino são alguns dos sabores – e o brigadeiro. Este é servido em uma colher enorme, daquelas de arroz, e o cliente pode colocar quanto conseguir no talher. Sucesso não apenas entre as crianças, mas também entre os adultos. “Os olhos chegam a brilhar. Essa alegria não tem preço”, comemora. Para finalizar a refeição, nego-bom e café coado. Está nos planos comprar uma máquina de expresso, mas o coado vai continuar a ser servido a quem assim preferir.

BATISMO GASTRONÔMICO
Até a linguagem do cardápio é toda particular: os nomes dos pratos têm história. A Tábua da salvação, por exemplo, vem de um poema de Jessier Quirino. O Sururu de quenga para baixo é autoexplicativo. “O nome tem que ter a essência. Depois que encontro a ligação com a comida, é que boto graça no nome”, explica ele, que está estudando inglês e espanhol, mas só assina embaixo do menu se houver erros de português para se aproximar do linguajar popular. Já houve cliente que foi avisar em uma rede social sobre os erros digitados, mas ele explicou que o “abrasso” com dois “esses” é mais gostoso.

A decoração também é recheada de memórias, como o couro de bode morto no aniversário do avô ou a mesa que foi do irmão. A bodega estilizada comporta fogão antigo, garrafas de cachaça, balança, cordéis, latinha de guaraná Jesus e até panela de bronze paga ao pai como parte de uma indenização trabalhista. Na vida real, a bodega de Rivandro é o Mercado de Casa Amarela, de onde vêm 90% dos insumos. Uma placa indica que “nós aceita cartão porque nós aprendeu buli cum a máquina”. O preço médio dos pratos principais, bem servidos, é de R$ 14,90. Os números só se mexem quando os ingredientes sobem muito, mas ele tenta negociar com os fornecedores. “Quem aumenta sempre perde credibilidade”, opina.

Recifense que passou a infância em Olinda e mora em Casa Amarela, há uma década, Rivandro conta que foi se apaixonando pela muvuca do bairro que concentra quase 30 mil habitantes em 188 hectares, segundo dados do censo demográfico 2010. É encantado pela mistura de pessoas tão diferentes nos balcões do mercado público, onde se encontram empregados domésticos e madames, sem distinção. Curiosamente, porém, é do outro lado da cidade, da distante Boa Viagem, que ele calcula que venha 60% da sua clientela. “O que me importa é que meu público é gente que vem para cá e aceita minha proposta”, considera. “Eu vim para ficar. Não quero ser uma moda”, resume. 

RENATA DO AMARAL, jornalista, professora e doutoranda em Comunicação.
RAFAEL MEDEIROS, fotógrafo.

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