Crítica é o principal elo entre Nelson e Francis. Este, foi muito amigo de Millôr e dizia ter conhecido bem Nelson, mas não teve com ele relação forte. Eram de gerações e posições políticas diferentes. Quando foi crítico teatral, Francis atravessava seu período “de esquerda”, enquanto que Nelson, politicamente, sempre foi conservador.
Na biografia Paulo Francis: Brasil na cabeça (Relume Dumará, 2004), Daniel Piza conta que, ao tratar de Perdoa-me por me traíres, em 1957, Francis reprovou o hábito de Nelson de reagir às vaias do público, ao final do espetáculo. Ao que o dramaturgo rebateu, no mesmo ano, criando o personagem Dorothy Dalton, gay e covarde, que encarnava o “crítico da nova geração”, em Viúva, porém honesta. Francis, conforme Piza, não se sentiu pessoalmente satirizado.
Daniel Piza tinha apreço pela década de 1950, da qual Francis, Millôr e Nelson são expoentes. Foto: Reprodução
Piza ressalta ainda, no livro, que Francis foi um crítico teatral arguto, mas que, claro, cometeu erros, como ao avaliar a obra de Nelson. Ele admirava seu diálogo coloquial, fácil de falar, e o “impacto cênico” de suas situações humanas. Todavia pensava que o autor “ainda tinha o que acrescentar” e o queria mais politizado e intelectualizado – mais ou menos o que expôs em Nelson nunca foi um intelectual, texto redigido após a morte desse, em dezembro de 1980, e presente na coletânea Diário da corte (Três Estrelas, org. Nelson de Sá), lançada em abril último. Francis só foi reconhecer plenamente o valor do teatro rodriguiano bem depois. Numa coluna de 1990, afirmou que Doroteia, Álbum de família e Senhora dos afogados são “pura poesia teatral”, que Nelson sabe “do que é sexualmente inconsciente e irresistível” e, “se escrevesse numa língua mais divulgada”, teria morrido rico e famoso e “faria parte dos repertórios das grandes companhias”.
A obra de Nelson trouxe uma lufada de ar fresco ao teatro, e Francis e Millôr, no fim da década de 1960, à imprensa. Então n’O Pasquim, que ajudaram a criar, os dois levaram ao ápice o viés modernizante de suas experiências profissionais anteriores (linguagem mais direta e coloquial, olhar mais internacionalizado) e, assim, renovaram o jornalismo do Bananão – para citar termo de Ivan Lessa, colega deles no semanário. A informalidade d’O Pasquim permitia mostras de admiração e amizade (até muito) frequentes. Em 1970, Millôr tascou: “O Paulo Francis é um bípede implume insuportavelmente sapiens”. Um ano depois, Francis mudou-se para os EUA, mas os laços seguiram. Numa coluna de 1990, assinalou que Millôr “não era para todos os gostos. É picante, amargo, requer cabeça para entendê-lo”; e, em outra, dirigiu-lhe quase o mesmo comentário dirigido a Nelson: “Millôr, se não escrevesse numa língua de periferia, seria considerado um dos melhores humoristas do mundo”.
Quando Francis morreu, em fevereiro de 1997, um dos melhores obituários foi de Millôr. Escreveu que, por trás da postura esnobe do amigo, havia uma alma afável e até carente. E que reagia à sua veemência como crítico com of course, Shakespeare, de quem foi um dos maiores tradutores brasileiros: “Diante de alguns de seus acessos – comigo jamais demasiados –, eu zombava, parodiando, comicamente, o Horácio final do Hamlet: ‘Dá-lhe, sweet prince!’”. Ainda naquele mês, Millôr, em entrevista, voltou a destacar a contundência de Francis, alguém “capaz de expressar suas opiniões sem medo e, às vezes, até exageradamente”.
Tal franqueza de opiniões é traço marcante dos três, não só de Francis. Nem é preciso enfatizar suas capacidades polêmicas, já tão reconhecidas. Francis, Millôr e Nelson eram hábeis em contrariar o senso comum. O primeiro foi trotskista, quando a maioria era “de direita”, e virou “neoliberal”, quando a moda era ser “de esquerda”. Nessa fase, cunhou frases que deixavam (ainda deixam) os “politicamente corretos” furibundos, como “Quando ouço falar em ecologia, saco logo meu talão de cheques”, ou “A melhor propaganda anticomunista é deixar os comunistas falarem”. Nelson, é claro, não ficava atrás em acidez: “As feministas querem reduzir a mulher a um macho mal-acabado”. Millôr manteve-se, a vida toda, crítico de ideologias de qualquer ordem. “Pensamento deve ser livre, e ideologia bitola o pensamento. Quem se diz um ‘pensador marxista’ não é pensador”, afirmou numa entrevista.
Com os jovens, o trio também era reticente. Francis: “A juventude de hoje pensa que inventou alguma coisa. E inventou. Alardear o que faz. Só”. O comentário é de 1988, mas serve à geração Facebook. Para esta, que julga “velho” tudo que tem mais de 30 anos, Millôr igualmente teria um recado: “Sou jovem há muito mais tempo do que qualquer desses rapazinhos que andam por aí”. Mais sucinto foi Nelson, solicitado a dizer algo aos moços: “Envelheçam!”.
A agudeza desses gênios faz falta. Pena que o livro sobre os anos 1950, no qual certamente abordaria os trabalhos deles, é uma das coisas sem que Daniel Piza nos deixou. Ficamos também sem sua coluna dominical, que lembrava o Diário da corte de Francis, e as citações certeiras de Millôr e Nelson que sempre fazia. Neste 2012, teria escrito mais uma vez sobre o amigo Francis e lastimado muito as mortes de Millôr e de Ivan, até porque saberia que não há reposições à altura. O próprio Francis, nos últimos anos de vida, criticava muito o “nivelamento por baixo” da imprensa, que não ousava mais “desagradar o leitor”. Millôr também era cético quanto ao jornalismo atual: “Outro dia, uma repórter me ligou para saber o que eu andava lendo. Almanaque Capivarol, respondi. Ela pediu para soletrar!”. Com essas ausências, fica mais difícil de suportar uma época assim.
LUCAS COLOMBO, jornalista e editor do site Mínimo Múltiplo.