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Os poderes do excesso no melodrama

TEXTO Mariana Baltar

01 de Dezembro de 2012

 O filme 'Carta de uma desconhecida' tem um dos mais belos momentos desse tipo de engajamento mobilizado pelo excesso

O filme 'Carta de uma desconhecida' tem um dos mais belos momentos desse tipo de engajamento mobilizado pelo excesso

Foto Reprodução

Ouvi, um dia, de um companheiro de melodramas, o seguinte depoimento. Durante a retrospectiva do gênero, em sua versão mexicana, no Festival do Rio de 2002, um fiel frequentador da mostra, olhos brilhando em antecipação, comenta com meu amigo sobre o prazer de reencontrar Dolores del Rio, divina em seu vestido azul, descendo a escadaria do salão em Las abandonadas. A cena se dá no momento crucial desse clássico do diretor Emilio Fernandez, belamente fotografado por Gabriel Figueroa. Meu amigo compartilha da ansiedade desse espectador, pois, também ele, espera o reencontro com a obra. Mas, ainda assim, não se furta de estranhar o comentário sobre a cor do vestido da personagem. Afinal, sabe ele que o filme é em preto e branco. De onde viria aquele azul?, pergunta-se.

A cor, penso eu, vem da paixão. Paixão pelo melodrama, com seu regime de excesso a convidar-nos, espectadores, a tal engajamento em que as cores (ausentes da película) se tornam presentes na experiência, avivadas pelo que tenho chamado, em minhas pesquisas, de um engajamento afetivo/sensório/sentimental.

A magia do cinema não é exclusividade da matriz melodramática, mas seus efeitos passionais de fascínio e sedução são condicionantes desse gênero narrativo, pois sua lógica se fia na condução de sensações e sentimentos numa estrutura pautada no excesso. Entretanto, o melodrama não é o único gênero que se pauta por isso. Juntam-se a ele outros mobilizadores de paixões corporais, como o horror, a pornografia, o musical. Imagens e sons organizados em conhecidos formatos narrativos que nos fazem gritar, chorar, cantar.

Os modelos das cenas se repetem – trilha sonora musical que se intensifica em momentos-chave, pontuados por close-ups, reiterados por uma luz mais densa, um saber compartilhado entre discurso fílmico e espectador. Pronto, o laço está atado e nos vemos (a despeito de já sabermos o desfecho, das simbolizações de óbvio reconhecimento) reagindo visceralmente à tela.

Um dos mais belos momentos desse tipo de engajamento mobilizado pelo excesso se dá em Carta de uma desconhecida (Max Olphus, 1948). O filme começa com um já velho Stefan (Louis Jourdan) pondo-se a ler uma mensagem que lhe foi enviada. A carta vai sendo lida em off por sua remetente, Lisa (Joan Fontaine). “If only you could recognize what was always yours, could have found what was never lost. If only…”: são as últimas palavras da missiva inacabada, escrita por uma personagem enferma. Sabemos dessa situação desde o começo do filme, uma vez que ele é narrado em flashback. Assim, é com um certo nó no peito que acompanhamos os encontros e desencontros de Lisa e Stefan.

Na verdade, acompanhamos Stefan encontrar-se com Lisa em diversos momentos ao longo da vida e, neles, apaixonar-se por ela, sem saber que – em todas as ocasiões – se tratava da mesma mulher. Nós sabemos, Stefan, não. Sabemos desde sempre, ele, nunca, até a carta chegar-lhe tardiamente, quando a amada já está morta.

Nosso saber reforça o engajamento. Somos compelidos a querer gritar: “É ela, é sempre ela”. E, quando, no filme, vemos esse grito ser atendido – a carta e a voz em off de Lisa dizem “era eu, era sempre eu” –, já é tarde demais. Sabemos desde o começo que será tarde demais para os dois e esse conhecimento prévio faz recair sobre as belas cenas do casal uma sombra de tristeza. Tal estrutura é um convite quase irrecusável à comoção, e, em alguns casos, até mesmo às lágrimas. O excesso está aqui na obviedade da estrutura narrativa, nos símbolos que embalam os encontros (o piano de Stefan, os lírios brancos, o mesmo close no rosto de Lisa). Apesar da reiteração e da saturação, o excesso não nos deixa de fora da narrativa e sua força e eficácia residem justamente nesse movimento.

GÊNEROS DO CORPO
Não é fácil precisar o excesso como elemento estilístico e um primeiro caminho tem sido delineá-lo a partir dos gêneros (seu uso mais contundente, sistemático, mas não exclusivo). Assim, o termo foi pensado como a marca comum do que a pesquisadora de cinema Linda Williams (2004) denomina de gêneros do corpo, pois o convite sensório-sentimental estabelecido pela narrativa se dá a partir do corpo em ação, corpo dado a ver como espetáculo e como ancoragem de uma experiência do êxtase, como atração, em movimentos que performam e expressam estados sensoriais e sentimentais que, audiovisualmente, inspiram no espectador, se não os mesmos estados, algo bem próximo. Convidam, afinal, a fluir e fruir sensorial e sentimentalmente. Os corpos se movem e mobilizam.

Na minha apropriação das reflexões de Williams, argumento que tal compartilhamento responde a uma demanda do projeto de modernidade, primordial à própria construção da ideia de sujeito moderno: as necessidades de personalizar as práticas de consumo em projeções empáticas de identificação.

Assim, o excesso se apresenta como as específicas articulações da narrativa numa reiteração constante, como se cada elemento da encenação – desde a música, a atuação, os textos, a visualidade, as performances – estivesse direcionado para uma mesma função; ou seja, como se todas as instâncias dissessem, expressassem o mesmo, a serviço de uma obviedade estratégica que toma corpo de maneira exuberante e espetacular.

A noção de obviedade não deve ser entendida aqui como um elemento pejorativo, mas como um regime de expressividade que marca a economia reiterativa do excesso e com ela a “facilitação”, diria imediatismo, do engajamento entre obra e público. Engajar-se à narrativa pressupõe colocar-se em estado de “suspensão” sentimental e sensorialmente vinculado a ela. Para catalisar esse convite à adesão, o apelo ao visual (ao narrar a partir de imagens que se estruturam como símbolos) é elemento fundamental, conduzindo ao que Peter Brooks (1995) chama de “superdramatização” da realidade através de uma estética do astonishment (que podemos traduzir como arrebatamento).

O excesso reitera e satura, promove um fluxo de imagens e sons que a um só tempo esclarece e afoga, intensifica a força espetacular dos símbolos (exacerbadamente elencados na tessitura fílmica) e adensa a força disruptiva e excitante do êxtase (como vetor da ação e como convite à semelhante reação do espectador) – o corpo fora de si (beside itself). Procedimentos imagéticos e sonoros (mobilizando a sensorialidade através dos ruídos) reiteram e saturam o uso de elementos audiovisuais para além da função de narração (storytelling), propondo um superenvolvimento em sensações e emoções.

No seu uso mais comum nas tradições dos gêneros do corpo, o excesso conduz a vínculos empáticos configurados com muita frequência, mas não exclusivamente, em temáticas que envolvem instâncias moralizantes, que serão articuladas de maneira exacerbada e caracterizadas pelo predomínio da visibilidade (reiterando imagens de fácil apreensão) que se articula em um sistema de simbolização intensa. Argumento, a partir da reflexão de Williams, que tal uso indicaria a dimensão espetacular do excesso que, cotejando com as ideias de Umberto Eco, em seu livro A vertigem das listas, apontariam uma estratégia e um desejo reiterativo.

Mas há ainda outra dimensão (que não passa totalmente desapercebida por Williams, embora não seja o foco de seu artigo) que ocorre de modo mais próximo das atrações, em que o excesso aparece como insert de choque e saturação. Tais inserts de atrações se dão sobretudo fora das tradições dos filmes de gênero, mas analogamente mobilizam – seja por um regime de alusões, seja por associação de êxtase, saturada e vertiginosa de imagens e sons – as paixões, afetos e sensações. Falar de excesso em um texto tão curto é uma contradição em si, mas, por outro lado, é um convite passional p ara o leitor engajar-se nesse universo de choros, gritos, cantos e gozos.

MARIANA BALTAR, doutora em Comunicação, professora da UFF e coordenadora do Nex – Núcleo de Estudos do Excesso nas Narrativas Audiovisuais.

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