“Durante os três anos e meio em que morei em São Paulo, especializei-me em jazz e dança moderna, especificamente na técnica da Marta Graham. Fazendo o máximo de aulas que conseguia na Escola da Renée Gumiel, com grandes mestres da área, como a professora Penha de Souza”, recorda a diretora da Vias da Dança.
Já Maria Paula, depois do início como discípula das técnicas de improvisação de Enila Rezende e María Fux, atuou no elenco do Balé Popular do Recife e passou 11 anos morando e estudando dança na França. Porém, mesmo antes disso, ela já experimentava sua vocação criadora, dirigindo e coreografando o grupo Apsaras (Deusas que dançam), formado inicialmente por alunas do Colégio Contato, no Recife.
Sobre essa fase, Maria Paula conta que “com a saída do elenco da sede do colégio, a falta de um espaço fixo para aulas e ensaios fez com que o Apsaras virasse um grupo de performances, solicitado para apresentações e intervenções por Jomard Muniz de Brito, que, à época, era um dos gestores de cultura da Prefeitura do Recife”.Também chegaram a desenvolver alguns trabalhos em parceria com o artista Paulo Bruscky.
Em suas aulas de jazz, a bailarina Heloísa Duque busca novos talentos. Foto: Divulgação
Depois de idas e vindas em busca de sólida formação em dança e de profissionalização, chegou para a bailarina Heloísa Duque o momento de ampliar os propósitos individuais e dar um passo adiante. Aprofundando seus estudos de jazz e tendo uma legião de alunos em escolas e academias do Recife, recém-saída do elenco fundador da pioneira Cia. dos Homens, ela decidiu juntar as melhores alunas e formar a própria companhia. “Procurando um nome apropriado, pensei que a nossa dança poderia nos levar por vários caminhos. Por isso, escolhi Vias da Dança”, explica a diretora.
AULAS DE JAZZ
Vinte anos depois, Duque continua dando aulas de jazz e buscando bailarinos para composição de elenco. Comprovou, na prática, que essa técnica de dança – que viveu seus dias de glória na década de 1980 e até meados dos anos 1990, sendo considerada ultrapassada nos dias de hoje – pode ser uma boa matriz para a formação de bailarinos.
Foram muitos os talentos descobertos nas turmas de jazz da “professora Helô”. Morando em Belo Horizonte desde 2000, Andréa Anhaia, hoje uma das intérpretes diretoras do coletivo Movasse, é exemplo disso. “Sou bailarina e profissional da dança pela experiência que tive ali. Conheci pessoas importantes que me fizeram trilhar esse caminho. A Vias, na figura de Helô, foi decisiva na escolha que fiz na vida. A companhia, na minha opinião, é uma referência em Pernambuco, principalmente para a formação de bailarinos. Não só tecnicamente, mas também pela forma otimista e esperançosa com que Helô a dirige. Ela acredita! Quem não precisa disso?”
Coreógrafa do Grial, Maria Paula Costa Rêgo adota um processo colaborativo para a escolha dos seus elencos. Foto: Divulgação
Segundo Duque, seu modo otimista de lidar com o trabalho – descrito por Anhaia – soma-se às técnicas e aos conhecimentos adquiridos na graduação em Psicologia, que contribuem para que aprimore as relações profissionais na companhia, regadas a afeto: “Eu era rigorosa e até intolerante com relação à disciplina, aos horários, mas sempre coloquei no colo. Cuidei e cuido deles como uma mãe mesmo. Muita gente critica, mas acredito que foi por isso que consegui construir essa história e estabelecer uma relação de respeito de que me orgulho muito”.
A ausência de cursos regulares de dança (nas academias existiam e existem apenas cursos livres, sem duração definida) fez com que as companhias se tornassem o local, por excelência, da formação de bailarinos. Se, por um lado, isso pode ser positivo à manutenção de grupos, por outro, pode tornar o processo criativo limitado, pelo fato de o professor assumir também a função de coreógrafo e diretor, sendo referência única para os alunos. Para fugir dessas restrições, desde os anos iniciais da Vias da Dança, Heloísa Duque convida coreógrafos para montar seus espetáculos. Mário Nascimento, Marcelo Pereira, Henrique Lima, Jorge Garcia, Giordani Gorki e Ivaldo Mendonça são alguns dos nomes que já assinaram as coreografias da companhia.
BRINCANTES
No Grial, foram outros os caminhos e escolhas. Maria Paula sempre assumiu a função de coreógrafa, porém adotou um processo colaborativo e critérios bem definidos para a escolha dos seus elencos. Alguns dos bailarinos são o que ela chama de “brincantes de linhagem”, aqueles que pertencem à tradição, que aprenderam os passos da cultura popular com seus antepassados, trabalhando com mestres de cavalo-marinho e maracatu rural, em alguns dos seus espetáculos.
Espetáculo do Grupo Grial, Hemisfério sol utiliza elementos circenses e acrobacias.
Foto: Divulgação
Os outros bailarinos são o que ela denomina “brincadores de fora”, que frequentam ou participam de alguma maneira dos grupos de cultura popular, mas agregam também formação em alguma outra técnica de dança.
“Na verdade, selecionar bailarinos que tenham o perfil de que preciso é muito difícil. Porque não é adequado que sejam iniciantes, sem nenhuma experiência; e também não funcionam aqueles bailarinos que têm uma técnica muito cristalizada. E como a formação, em Pernambuco, se dá quase que exclusivamente nos grupos e companhias, os intérpretes ficam com a linguagem do coreógrafo muito presente, e, consequentemente, menos disponíveis para novos repertórios. Porém o que mais me interessa é a consciência corporal do bailarino, para que ele possa apreender, sem muita dificuldade, a linguagem do Grial”, detalha a coreógrafa, que continua atuando também como bailarina no grupo.
Popular e erudito: dessa mistura é feito o corpo do Grial, que se intitula um grupo de dança armorial. Foi criado em 1997, a partir de uma proposição do próprio mentor do movimento, Ariano Suassuna. A trajetória profissional de Maria Paula é tão ligada a do escritor, que, além do Grial, ela integra, desde 2007, a equipe de artistas que acompanha Ariano Suassuna na criação e apresentação das suas aulas-espetáculo.
O trabalho do Grial traz muitos elementos da cultura popular. Foto: Divulgação
BASES PARA ASSENTAR
Mas as duas guerreiras dessa história de dança já pensaram em parar, desistir. E quase foram vencidas pelo cansaço que costuma afetar os que decidem encarar a árdua luta contra a falta de estrutura e a ausência de políticas públicas na área cultural. Apesar disso, a energia e a dedicação oferecidas a elas pelos bailarinos que as acompanham foram mais fortes, então seguiram adiante, fazendo dos seus grupos oportunidades para o desenvolvimento da dança de Pernambuco.
Relatos como o da bailarina Andréa Salcedo, única do elenco fundador da Vias da Dança que continua na companhia, provam que a batalha não foi em vão. “No grupo, aprendi a me reinventar como bailarina. Descobri outras formas de dançar e sinto prazer nisso. Por que, então, tenho que abrir mão de minha escolha? É fundamental que os grupos continuem desempenhando seu papel. Deve haver espaço para vários tipos de dança, pois nem todos são criadores ou querem ser. O Vias não é só responsável pela minha formação como bailarina, mas também como ser humano.”
Ter uma sede é prioridade máxima para o Vias da Dança. Só assim Heloísa Duque afirma ter base para continuar forjando talentos.
“A palavra que define a fase atual do Grial é amadurecimento. Chegamos à linguagem de dança que pretendíamos. Porém precisamos de uma sede, e que as instâncias governamentais reconheçam o valor do que realizamos durante essa trajetória de 15 anos, criando políticas que garantam uma infraestrutura condizente com o trabalho do nosso grupo”, afirma Maria Paula.
A realidade mostra que, tanto para o Vias como para o Grial, o tempo agora é de conquistar um espaço para continuar escrevendo histórias de sucesso na dança pernambucana.
CHRISTIANNE GALDINO, jornalista, mestre em Comunicação Rural.