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Um olhar sobre o tempo dos trambolhos

TEXTO Maria Trajano

01 de Novembro de 2012

Foto Reprodução

Uma das características da modernidade é a constante busca pelo novo e, por conseguinte, a valorização de toda e qualquer novidade. No âmbito tecnológico, essa “modernização” se traduziu na preservação do corpo através da automação e na otimização do tempo. Inseridos nesse contexto, tendemos a valorizar tudo que é compacto e veloz; que nos poupa o corpo e tempo. Aqueles objetos que possuem maior massa ou menor velocidade não figuram nesses parâmetros, são indesejáveis, rejeitados, descartados – geralmente, chamamos-lhes de “trambolhos”.

No dicionário, “trambolho” é definido como “peso atado aos pés de animais domésticos para dificultar seu deslocamento”. Trata-se, portanto, de um obstáculo, um empecilho físico, geralmente volumoso, que nos desgasta fisicamente e que nos faz perder tempo. Mas sua natureza não é absoluta, pois ele só o é em relação a outro objeto que com ele contrasta. Assim, figuram como trambolhos a carruagem em relação ao automóvel, o fogão à lenha em relação ao fogão a gás, ou a caneta-tinteiro em relação à esferográfica. O trambolho também possui uma faceta histórica: ele foi a tecnologia de ponta de ontem. E a acelerada obsolescência das tecnologias, principalmente das midiáticas, faz com que topemos com mais exemplares desse tipo a cada dia.

A essa altura, lembro-me de Walter Benjamin e Marshall McLuhan que, em contextos e épocas diferentes, refletiram sobre como as transformações das tecnologias cotidianas influenciam nossa cognição e performance corporal. Quais as transformações que, por exemplo, o e-mail ou o celular impuseram sobre a nossa percepção do espaço e do tempo? Ou, mais propriamente, o que nos oferecem, nesse sentido, os trambolhos que coexistem com as atuais e pequenas maravilhas tecnológicas? Há pouco, entrevistando consumidores de discos de vinil, deparei-me com esse tipo de questão. Manter ativo no dia a dia o conjunto vitrola + caixas + discos significa estar disposto, antes de qualquer coisa, a negociar espaço e, principalmente, tempo.

Cada vez que um artefato se atualiza, executamos a mesma atividade com menos esforço e menor duração. As novas tecnologias tornam possível realizar um número maior de tarefas dentro do nosso absoluto e inexorável existir biológico; elas nos abrem janelas temporais, relativizando os cursos. Encontramos, cada vez mais, tempo e passamos a viver sob os auspícios do “enquanto”.

O estudo da vitrola e do disco de vinil – verdadeiros trambolhos diante do MP3 – me levou à ideia de tempo denso. Os trambolhos nos levam a essa temporalidade, pois, ao contrário dos “primos ricos”, tais objetos desaceleram nosso ritmo: sua massa e sua performance “antiquada” não nos permitem aquela justaposição de janelas temporais.

Para que um trambolho ocupe espaço e exerça a função a que se dispõe, ele precisa de nossa dedicação. Sua massa exige, por seu volume e, às vezes, por seu material, atenção sobre nosso corpo e nossos gestos. Nossos sentidos, progressivamente treinados a dar conta de inúmeros estímulos simultâneos, são forçados a fechar o foco e enxergar, mesmo que por um breve momento, apenas aquele objeto e sua performance. Tais objetos, que constantemente se formam e dos quais procuramos de vez em quando nos livrar – correspondências de papel, videocassetes, telefones com fio, máquinas de escrever –, são espécies de “ilhas” de tempo, massas que o atraem e o impedem de correr. Somos obrigados a parar e olhar, antes de seguir em frente.

Obviamente, há uma mudança qualitativa. Qualquer alteração no modo como utilizo meu corpo, espaço e tempo gerará, por conseguinte, alterações no como percebo e imponho significados a esses mesmos elementos. Correndo o risco de soar romântica, acredito que existe algo enriquecedor em escrever uma carta, de próprio punho, com letras caprichadas e, talvez, até perfumada, e vê-la sumindo na caixa de correios. E o que dizer da ansiedade gerada por esperar um disco chegar às lojas e do prazer de voltar com ele embaixo do braço? Se refletirmos sobre essas ações, veremos como elas aumentam nossos níveis de ansiedade, angústia e medo; fazem-nos criar novas soluções com maior frequência; obrigam-nos, enfim, a (re)aprender a dedicar tempo às coisas.

A antropóloga Janice Caiafa trata esse tema por outro viés. Em seu livro Nosso século XXI – notas sobre arte, técnica e poderes, ela chama a atenção para o presente como sendo a época da “disponibilidade”; uma época na qual os indivíduos são bombardeados por dispositivos que alimentam atitudes autoindulgentes. Hoje, tudo nos chega “com um clique”, tudo é “interativo”. A pessoa não se depara mais com aquilo que lhe é estranho ou que lhe impõe uma maior dose de trabalho; seu ambiente se torna cada vez mais um espelho, tudo o mais funciona para não o contrariar. As tecnologias cotidianas buscam o menor nível possível de ruído para quem consome seus produtos e conteúdos. O indivíduo contemporâneo perde a capacidade de lidar com o diferente, com o que o contesta, com o inesperado – e isso tudo, de certa forma, o infantiliza, empobrece-lhe a sensibilidade.

A questão não é tecnofóbica: escrevo muito satistoriamente essas palavras em um computador, e, quando aparece alguma urgência e estou no meio da rua, agradeço por ter um smartphone dentro da bolsa. Porém acredito na existência de algumas dimensões da nossa vida em que o tempo denso dos trambolhos – todos os percalços oferecidos por sua materialidade e performance – nos oferece experiências sensoriais mais ricas e necessárias (pelo menos) ao nosso amadurecimento emocional. Um viva ao iPad, mas não há preço que pague o prazer de ir a uma banca, comprar uma revista e correr-lhe nossos olhos e mãos. A vida nos exige praticidade ao mesmo tempo que nos pede o mínimo de cerimônia. 

MARIA TRAJANO, bacharel, mestre e doutora em Sociologia e professora de Sociologia.

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