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Geraldo Maia: Quando a voz do autor se impõe

Com a coletânea 'Estrada', cantor apresenta velhas e novas canções, exibindo estilo que não se enquadra em gêneros e rótulos

TEXTO José Teles

01 de Novembro de 2012

Geraldo Maia

Geraldo Maia

Foto Glauce Oliveira/Divulgação

São cada vez mais raras as vozes masculinas na música brasileira. No caso, vozes masculinas de cantores que não são compositores interpretando as próprias músicas. Um fenômeno iniciado com a bossa nova, que desbancou o bel canto da MPB. Apesar da complexidade interpretativa de João Gilberto, até hoje insuperável, a bossa nova valorizou mais a canção do que a interpretação. Assim é que Sérgio Ricardo, por exemplo, que não possui o mais belo timbre de voz, pode cantar e fazer sucesso com a sua Zelão. Daí em diante, os autores passaram a gravar sua produção. Portanto, hoje em dia, contam-se nos dedos os grandes cantores na MPB. E, nessa contagem, certamente, o recifense Geraldo Maia é um dos destaques, embora ele também seja compositor.

Mas a maioria da já considerável e consistente discografia de Geraldo Maia enfatiza o intérprete. Em Estrada, nono disco (contando com o LP Cena de ciúme, de 1987, dividido com Henrique Macedo), ele deixa que as luzes destaquem o compositor, sem que o intérprete seja ofuscado. O disco é um projeto encampado pela revista Continente, que lhe sugeriu um álbum autoral. Geraldo reuniu canções que assina (só ou com parceiros), algumas delas já gravadas anteriormente, e umas poucas com nova interpretação. Incluiu também algumas inéditas, tornando o CD em mais um álbum de carreira.

Súplicas, louvores e afirmações são temáticas que – mais ou menos – cirzem o repertório das 13 canções. Súplica: “Ave-maria de todas as graças/ acuda no agora/ que o agora é a hora/ amanhã não tem paz” (De todas as graças). Louvor: “Ó fruto bendito do ventre/ sois vós os poetas/ altivos guerreiros de pedra e sal” (Bendito fruto), e afirmação: “Um amor tão grande assim/ só quer ser bom/ quer ter o dom/ de ser feliz” (Dom). Porém, este não é álbum conceitual. O repertório básico está montado sobre dois de seus discos: Lundum (2009) e Peso leve (2008). As faixas pinçadas de Lundum foram apenas transportadas para Estrada. As de Peso leve, regravadas, reinterpretadas com pouca instrumentação, valorizando a canção. Das 13 faixas, cinco são inéditas, o que reforça Estrada como um disco novo, não apenas uma compilação.

De uma moda de viola, a citada Bendito fruto, passando para Broto de semear, um choro com tempero de morna cabo-verdiana. E, mais à frente, o irromper numa canção tropicalista. Geraldo Maia consegue se impor original e “irrotulável”. É MPB, mas não a que utiliza cacoetes da bossa nova. O samba sutilmente emoldura a tela, mas não é carioca, nem pernambucano – geraldiano.

Quanto ao tropicalismo citado acima, entenda-se bem: tropicalismo não à Caetano, e sim à Hélio Oiticica (o artista plástico, autor de Tropicália, obra que emprestou o nome ao movimento dos baianos). Helioiticicando é uma parceria com o ex-Ave Sangria, Marco Polo: “Vamos helioiticicar esta vida/ deflagrar um festival cordon bleu/ vamos soltar o bloco na avenida/ dançando num parangolé colorê”.

Mas as palavras, contanto sejam obviamente parte intrínseca da canção, não são o mais importante em Estrada (pinçada de Peso leve). O que mais chamou a atenção nesta coleção de composições de Geraldo (só ou com parcerias) foi a força das canções. Elas como que se impõem no todo. Os versos não são meramente complementos decorativos. São ótimos versos. Mas as canções, elas prendem o ouvinte, por si mesmas. E aí conta também a interpretação. Mesmo que Geraldo Maia tenha pretendido destacar o autor, não o intérprete.

Ele toca com músicos com os quais tem se apresentado, gravado e composto: entre outros, Rodrigo Samico, Publius, Hugo Lins, Bráulio Araújo, Amarelo, Jerimum de Olinda e, sobretudo, o virtuoso Vinicius Sarmento, um violonista que reafirma Pernambuco como terra de grandes neste instrumento. Há faixas em que bastam voz, violão para que o recado seja dado. Das 13 canções, sete são apenas de Geraldo Maia, um autor que não se encaixa em grupos, blocos, gêneros. É MPB porque não faz rock, mas sua música é muito particularmente dele.

Em tempos de modernismos, de facilidades de estúdio, Geraldo Maia tem trilhado se não a contramão, pelo menos uma faixa própria na MPB em geral, e na MPP (música popular pernambucana). Já se utilizou de eletrônica em outros discos. Neste, aqui, acolá, ouve-se uma guitarra discreta (em Que doam-se os brios), ou programações (na faixa final, Palavra). Mas, no geral, é um artista reafirmando-se como autor, intérprete, criador.

Estrada é dedicado à Maria Bethânia. Uma frase que pode parecer redundante porque alhures, no encarte, consta a dedicatória. Ressalto-a porque há certas semelhanças entre o timbre de voz de Geraldo Maia e o de Caetano Veloso. O que leva desavisados a o considerarem mais um cantor influenciado pelo irmão de Bethânia. Influências existem, claro. Não apenas nele, nem na voz propriamente. É impossível a qualquer artista de música popular nos últimos, pelo menos, 40 anos, passar incólume pela influência do mano Caetano.

Masem Geraldo Maiamais forte são os poderes de Maria Bethânia. Ela “baixou” nele em pleno Ginásio de Esportes Geraldo Magalhães, o então popular Geraldão. O adolescente, filho de portugueses, foi assistir ao show Rosa dos ventos, e nunca mais foi o mesmo. A artista Bethânia “continua com ele até hoje”, e não irá largá-lo mais nunca. Foi por ela, pela magia daquele momento, que ele decidiu que seria cantor. A MPB deve mais uma à mana Bethânia.

JOSÉ TELES, crítico musical do Jornal do Commercio e pesquisador de MPB.

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