O que se tornaria uma peça-cânone do Teatro do Absurdo contaria também com a cacofonia de outro casal (Martin), bombeiros e demais criações saídas duplicadas do livro-texto ionescamente transformado numa “anticomédia”, também extraída das primeiras experiências do jovem Ionesco.
Não havia comédia nas situações bizarras que o filho do catedrático em Leis vivera, algumas vezes, nos bancos do liceu francês e, depois, na Universidade de Bucareste (na qual fez amizade com o lúcido pessimista Cioran e com o místico Mircea Eliade, o criador da cátedra de Religiões Comparadas).
DESCONCERTO
O emprego num banco que o fazia anotar duas vezes o movimento do seu lote de contas de clientes vips não pareceu nada engraçado ao futuro escritor, e o primeiro texto que ele escreveu, intitulado Nu! (Não!), provocou estranheza, mesmo na redação da revista literária que o publicou, em 1934. A sua “estética do desconcerto” já estava em marcha desde as brincadeiras domésticas, e continuaria pela vida afora, com foco central no labirinto da linguagem (“o horror de um labirinto sem centro”), frequentemente levando da falta de sentido para a incomunicabilidade que pode gerar pequenas e grandes catástrofes do “irracional pleno, numa simples esquina ou numa frenética declaração de guerra”.
Com um único ato, A cantora careca consolidou, em 1950, o Teatro do Absurdo enquanto gênero. Foto: Divulgação
Por rigor cronológico, cabe lembrar que a base antes das bases do Teatro do Absurdo, provavelmente já despontara, no final do século 19, na obra do francês Alfred Jarry (1873-1907), cuja peça Os poloneses trazia o personagem emblemático do Ubu-Rei, a criação mais conhecida de Jarry como autor teatral e também de um excêntrico modo de viver (baseado na herança de pequena fortuna). Alfred Jarry está presente no imaginário das primeiras reuniões parisienses do Surrealismo, mas a base do seu teatro, eminentemente visual, inicialmente de marionetes, fornece chave mais para gags do que para o bem-fundamentado teatro que se firma com as obras de Eugène Ionesco, do irlandês Samuel Beckett e dos franceses Arthur Adamov (de origem russa) e Jean Genet, escritas não unicamente para o palco, mas também na forma de romances, contos e ensaios.
Diferentemente de um Gestos e opiniões do Doutor Faustroll do “patafísico” Jarry, com eles não estamos no território da comédia, mas da seriedade existencial que põe em cheque a comunicabilidade humana através de situações comuns do dia a dia que “mascaram” o sentido dos gestos cotidianamente repetidos de forma no mais das vezes automática.
Na literatura e no Teatro do Absurdo, há um fio narrativo que logo se desata, e não uma “história” cômica construída com os itens tradicionais de apresentação-resolução, embora subsista a perfeita observação de trejeitos e maneiras de ser dos senhores e senhoras “Smith” que Ionesco seguiu desenvolvendo surrealisticamente, como num pesadelo que se adensa, desde o começo até a ausência de fim. A ação, esvaziada de sentido “lógico”, apenas ressalta nossas incongruências, à maneira do Tomorrow, o conto de Joseph Conrad que prenuncia o vazio instalado nos diálogos assim como Bartleby de Herman Melville prenunciava Kafka diante do muro bianco-nero do abismo da rotina.
Divulgação de montagem francesa recente de texto de Ionesco.
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Essa questão, então, dos “antecessores” do gênero do Absurdo poderia ser objeto de lições e ligações inúmeras – algumas talvez absurdas. O que há de claro (e obscuro), pelo menos no teatro, é amise-en-scène da angústia metafísica no centro da observação da condição humana, insuficientemente assistida da base racional. “Base racional”? Essas duas palavras não fariam sentido para o célebre romeno de formação francesa que visitou o Recife, em 1982, com o semblante de um Akim Tamiroff ainda perplexo com alguma escala inesperada do avião.
Dezenove peças se seguiram à primeira do mestre reconhecido pela Academia Francesa, ao longo dos anos (até 1975). Entre elas, as já clássicas A lição, As cadeiras, O mestre, Vítimas do dever e a obra-primaRhinocéros – essa suma nada teológica do teatro de Ionesco, encenada exatamente no início de uma década (1960).
Na pacata cidade que lhe serve de cenário, coisa nenhuma permanecerá igual após a passagem de um rinoceronte por ruas surpreendidas pelo animal inesperado. De onde poderia ter vindo aquela criatura cujo fascínio irá se tornando força de transformação insidiosa?
Imagem: Reprodução
Rinoceronte começa – como não poderia deixar de ser – por diálogos estúpidos entre os habitantes da cidadezinha, a partir da passagem do ser estranho que primeiro motiva a intensa curiosidade daquela população de gente comum e indecisa quanto ao rumo de suas vidas sem brilho. Uns recusam admitir que o rinoceronte não seja um sonho, uma visão; outros o aceitam imediatamente, e passam a discutir o desleixo das autoridades que deixam circular livremente um animal daqueles. Por fim, há quem ignore a passagem dele, continuando no mundinho interior da monotonia. Um personagem não se abala com o rinoceronte (Bérenger) enquanto se preocupa apenas com o objeto do seu amor (Daisy) e sente ciúmes do colega de escritório. Quando o animal reaparece em meio aos diálogos de surdos – e seu peso esmaga um gato desprevenido –, a conversa inútil passa a ser sobre a natureza do mamífero perissodátilo: “Bicórnio ou unicórnio? Veio da Ásia ou da África?”...
A besta se espalha pelas casas e surge uma obsessão de Ionesco – os bombeiros (a força vinda “de fora”). As confusões se sucedem e as mentes paralisadas dão chance ao mimetismo que é o centro da peça: aquelas pessoas irão se transformando naquilo que temem, desenvolvendo uma carapaça a mais, perdendo a fala e, pouco a pouco, a humanidade. Em palestra no Recife, o dramaturgo contou que seu ponto de partida foi o relato que lhe fez Denis de Rougemont, escritor francês que se encontrava em Nuremberg por ocasião das impressionantes reuniões nazistas de massa, conduzindo a multidão à histeria que quase contagiava o próprio Rougemont. “Ele se achava já próximo de render-se àquela estranha magia, quando parou para se perguntar sobre que espécie de demônio estaria agindo sobre o seu alto senso crítico”...
Só o tímido Bérenger pretende também resistir à transformação em animal urrante, embora o faça ainda medrosamente: “Eu me defenderei contra todo o mundo... Eu sou o último homem. Não me rendo”. Eugène Ionesco também não se rendeu, e levou a expressão do Absurdo tão longe quanto pôde, antes de falecer no dia 28 de março de 1994, em sua residência parisiense, aos 82 anos. Ou melhor, aos 85 anos, porque o grande romeno diminuiu três anos da sua idade, durante muito tempo, no qual enciclopédias e outras obras de referência deram a data de 26 de novembro de 1912 como a do seu nascimento, por informação do vaidoso autor careca de saber que havia nascido no mesmo dia e mês de 1909. Coquetterie nada absurda...
FERNANDO MONTEIRO, escritor e cineasta.