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Ele lia com os olhos colados ao papel

Hoje uma prática comum, a leitura silenciosa surgiu em contraste com a oratória e retórica da cultura greco-romana, atendendo a introspecção da religiosidade medieval

TEXTO André Valença

01 de Novembro de 2012

Santo Ambrósio foi um ávido leitor, grande intérprete da Bíblia

Santo Ambrósio foi um ávido leitor, grande intérprete da Bíblia

Imagem Reprodução

Avalie a perplexão de Santo Agostinho de Hipona ao descobrir que um irmão de “santidade”, Santo Ambrósio de Milão, o padre que lhe ministrara o batismo, conseguia ler... em silêncio. “Quando ele lia seus olhos conduziam através das páginas nas quais seu espírito percebia o sentido do texto, enquanto sua voz e sua língua repousavam”, relata um impressionado Agostinho, no sexto volume de Confissões, seu memorial e “guia ético” cristão, escrito durante a última década do século 5. Resultado do processo de alfabetização nos dias de hoje, a leitura silenciosa no Ocidente era uma prática heterodoxa àquela altura da Idade Média, desempenhada por uns poucos casos isolados, e, até ali, nunca fora a maneira hegemônica de se ler nessa sociedade.

O que passa a existir, então, é um testemunho desse tipo de leitura, um elogio que antes se direcionava à oratória e à retórica da cultura greco-romana, e que começa a se ligar diretamente à introspecção da religiosidade medieval. De acordo com a professora de História da UFPE Marília de Azambuja Ribeiro, “a leitura silenciosa sempre foi muito ligada a essa questão religiosa, de contato com uma leitura interior mais profunda, para buscar a salvação da alma”. Isso explica bem uma das causas fundamentais para que houvesse a mudança desse paradigma. Mas por que somente na Alta Idade Média?

Em um primeiro momento, vale a pena evidenciar a relevância do suporte físico na interpretação de uma obra. No Egito Antigo, por exemplo, os hieroglifos eram apoiados na superfície de rolos de papiro; ler um livro ali significava ter as duas mãos sempre ocupadas, já que cada uma segurava uma ponta do rolo. Isso impedia uma acepção dinâmica, e também a anotação simultânea, tornando-se imperativa a presença de um escriba que registrasse as reflexões do leitor acerca do texto, necessariamente ditadas.


Manuseio das folhas em rolo dos papiros dificultava tomada de notas, por ocupar as duas mãos. Imagem: Reprodução

Muitos historiadores também apontam o caráter elitista da leitura como influente no valor atribuído à oralização até antes da Idade Média. Como na Antiguidade as leituras eram coletivas, e públicas, apenas um orador tinha acesso ao texto, enquanto aos interlocutores, geralmente analfabetos, cabia a escuta passiva. O senso comum apontava na oralidade o dom de contagiar com fervor o ouvinte, daí a valorização dessa modalidade.

Foi com a transição dos rolos de papiro para o códex que houve o primeiro grande passo para uma nova ordem de organização textual. Apontada por Roger Chartier, especialista em história da cultura escrita, como a primeira grande revolução da leitura, a transição do formato de papéis enovelados para uma organização estruturada em páginas e costuradas em cadernos, o livro, tal como conhecemos, foi o primeiro instrumento necessário para que o arquétipo silencioso de leitura ganhasse popularidade. O códex manuscrito, antes mesmo da imprensa, já oferecia uma flexibilidade maior, porque, ao mesmo tempo que deixava as mãos mais livres e o livro pousado na mesa, permitia, com o folheamento, uma paginação mais ágil, em oposição à rolagem.

A facilidade do códex, no entanto, não foi ainda suficiente para que as normas de leitura e escrita fossem completamente subvertidas; e foi apenas nos monastérios medievais que começou a se dar uma transformação no sentido de uma apreciação textual mais visual, e menos oral. Foi nas abadias, a partir do século 7, que monges bretões e irlandeses começaram a separar as palavras com espaços em branco e adicionar pontuação. Até ali, os textos eram escritos em scriptio continua, ou seja, não havia hiatos, bloqueios ou interrupções entre as palavras, daí a preleção pela oralidade na hora de ler, pois a configuração dos escritos já implicava numa narração fluida, definida pelas entonações da voz – razão pela qual, inclusive, muitos dos textos em prosa da Antiguidade eram metrificados. Objeto do seu famoso ensaio Space between words – the origins of silent reading (Espaço entre as palavras – a origem da leitura silenciosa), Paul Saenger considera a separação vocabular uma das invenções mais importantes da história da leitura, acusando também o desinteresse da elite alfabetizada de facilitá-la como fator cabal na demora para que se utilizasse a separação de palavras.

NOVA COGNIÇÃO
As frases, agora pontuadas e formadas por palavras desprendidas umas das outras, permitiram que redações complexas fossem mais facilmente absorvidas pelos leitores, e isso acarretou mudanças que incluíam leituras reflexivas, comparações de obras e anotações simultâneas, entre outros avanços que abriram cognitivamente a capacidade do ser humano de pensar o texto. “Nas línguas pioneiras, como o aramaico e o hebraico, não havia a vogal. Então a interpretação variava muito. Os gregos inventaram as vogais. Os medievais, a separação entre as palavras. Tudo isso facilitou a interpretação e abriu caminho para a leitura silenciosa”, comenta Marília Ribeiro. Sob as regras de conduta dos monastérios, compreende-se a mudança de uma prática coletiva (oral) para uma solitária (silenciosa).


Códice, conjunto de placas articulado por dobradiças, foi o protótipo do livro.
Foto: Reprodução

Um ponto interessante quando do estabelecimento da leitura silenciosa é que os escribas começaram, visando atingir uma maior concentração nos estudos, a reduzir ainda mais a oralidade nas suas relações. Para não causar incômodos, na sala de leitura a comunicação passou a ser por meio de gestos, como explica Alberto Manguel em Uma história da leitura: “Se queria um novo livro para copiar, o escriba virava páginas imaginárias; se precisava especificamente de um Livro dos salmos, colocava as mãos sobre a cabeça, em forma de coroa (referência ao rei Davi); um lecionário era indicado enxugando-se a cera imaginária de velas; um missal, pelo sinal da cruz; uma obra pagã, pelo gesto de coçar-se como um cachorro”, explica.

Outra curiosidade, esta descrita em A aventura do livro, de Roger Chartier, é que, mesmo depois disso, a leitura ainda não se tornou completamente silenciosa: “Os primeiros textos que impunham silêncio não datam senão dos séculos 13 e 14. É apenas nesse momento que, entre os leitores, começam a ser numerosos aqueles que podem ler sem ‘ruminar’, sem ler em voz alta para eles mesmos a fim de compreender o texto (...) Pode-se então supor que antes, nas scriptoria monásticas ou nas bibliotecas das primeiras universidades, ouvia-se um rumor, produzido por essas leituras murmuradas, que os latinos chamavam de ruminatio”, relata o historiador.

Para Ribeiro, vocalizar ou não as palavras é o menor dos problemas da leitura na contemporaneidade. “Existem duas leituras silenciosas atualmente: a leitura reflexiva e a ‘do computador’, que não é atenta. A leitura de boca fechada não quer dizer que é de alta concentração. O aluno tem dificuldade de fazer essa leitura interior, de extrair uma compreensão profunda do texto, como se buscava na Idade Média. Perdemos a capacidade de fazer uma leitura concentrada, é só silenciosa, mas mesmo assim, ruidosa.”

Sejam quais tenham sido as motivações para que se desenvolvesse, ou os entraves para que não viesse a se popularizar, a leitura silenciosa ainda tem no relato de Santo Agostinho a descrição mais misteriosa – tanto quando se espanta, como quando, de certa maneira, dessacraliza os estímulos do seu mestre enquanto pratica o ato curioso: “Lia em silêncio (...), talvez para evitar que algum ouvinte, suspenso e atento à leitura, encontrando alguma passagem obscura, pedisse explicações, ou o obrigasse a dissertar sobre questões difíceis. Gastaria o tempo em tais coisas, e impedido de ler todos os livros que desejava, embora fosse mais provável que lesse em silêncio para poupar a voz, que facilmente lhe enrouquecia”. Seria de uma simplicidade mística e assombrosa, se todo um alinhamento histórico que permitiu essa evolução pudesse ser substituído pela justificativa de que ficaríamos roucos se não lêssemos... em silêncio. 

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