Muitos historiadores também apontam o caráter elitista da leitura como influente no valor atribuído à oralização até antes da Idade Média. Como na Antiguidade as leituras eram coletivas, e públicas, apenas um orador tinha acesso ao texto, enquanto aos interlocutores, geralmente analfabetos, cabia a escuta passiva. O senso comum apontava na oralidade o dom de contagiar com fervor o ouvinte, daí a valorização dessa modalidade.
Foi com a transição dos rolos de papiro para o códex que houve o primeiro grande passo para uma nova ordem de organização textual. Apontada por Roger Chartier, especialista em história da cultura escrita, como a primeira grande revolução da leitura, a transição do formato de papéis enovelados para uma organização estruturada em páginas e costuradas em cadernos, o livro, tal como conhecemos, foi o primeiro instrumento necessário para que o arquétipo silencioso de leitura ganhasse popularidade. O códex manuscrito, antes mesmo da imprensa, já oferecia uma flexibilidade maior, porque, ao mesmo tempo que deixava as mãos mais livres e o livro pousado na mesa, permitia, com o folheamento, uma paginação mais ágil, em oposição à rolagem.
A facilidade do códex, no entanto, não foi ainda suficiente para que as normas de leitura e escrita fossem completamente subvertidas; e foi apenas nos monastérios medievais que começou a se dar uma transformação no sentido de uma apreciação textual mais visual, e menos oral. Foi nas abadias, a partir do século 7, que monges bretões e irlandeses começaram a separar as palavras com espaços em branco e adicionar pontuação. Até ali, os textos eram escritos em scriptio continua, ou seja, não havia hiatos, bloqueios ou interrupções entre as palavras, daí a preleção pela oralidade na hora de ler, pois a configuração dos escritos já implicava numa narração fluida, definida pelas entonações da voz – razão pela qual, inclusive, muitos dos textos em prosa da Antiguidade eram metrificados. Objeto do seu famoso ensaio Space between words – the origins of silent reading (Espaço entre as palavras – a origem da leitura silenciosa), Paul Saenger considera a separação vocabular uma das invenções mais importantes da história da leitura, acusando também o desinteresse da elite alfabetizada de facilitá-la como fator cabal na demora para que se utilizasse a separação de palavras.
NOVA COGNIÇÃO
As frases, agora pontuadas e formadas por palavras desprendidas umas das outras, permitiram que redações complexas fossem mais facilmente absorvidas pelos leitores, e isso acarretou mudanças que incluíam leituras reflexivas, comparações de obras e anotações simultâneas, entre outros avanços que abriram cognitivamente a capacidade do ser humano de pensar o texto. “Nas línguas pioneiras, como o aramaico e o hebraico, não havia a vogal. Então a interpretação variava muito. Os gregos inventaram as vogais. Os medievais, a separação entre as palavras. Tudo isso facilitou a interpretação e abriu caminho para a leitura silenciosa”, comenta Marília Ribeiro. Sob as regras de conduta dos monastérios, compreende-se a mudança de uma prática coletiva (oral) para uma solitária (silenciosa).
Códice, conjunto de placas articulado por dobradiças, foi o protótipo do livro.
Foto: Reprodução
Um ponto interessante quando do estabelecimento da leitura silenciosa é que os escribas começaram, visando atingir uma maior concentração nos estudos, a reduzir ainda mais a oralidade nas suas relações. Para não causar incômodos, na sala de leitura a comunicação passou a ser por meio de gestos, como explica Alberto Manguel em Uma história da leitura: “Se queria um novo livro para copiar, o escriba virava páginas imaginárias; se precisava especificamente de um Livro dos salmos, colocava as mãos sobre a cabeça, em forma de coroa (referência ao rei Davi); um lecionário era indicado enxugando-se a cera imaginária de velas; um missal, pelo sinal da cruz; uma obra pagã, pelo gesto de coçar-se como um cachorro”, explica.
Outra curiosidade, esta descrita em A aventura do livro, de Roger Chartier, é que, mesmo depois disso, a leitura ainda não se tornou completamente silenciosa: “Os primeiros textos que impunham silêncio não datam senão dos séculos 13 e 14. É apenas nesse momento que, entre os leitores, começam a ser numerosos aqueles que podem ler sem ‘ruminar’, sem ler em voz alta para eles mesmos a fim de compreender o texto (...) Pode-se então supor que antes, nas scriptoria monásticas ou nas bibliotecas das primeiras universidades, ouvia-se um rumor, produzido por essas leituras murmuradas, que os latinos chamavam de ruminatio”, relata o historiador.
Para Ribeiro, vocalizar ou não as palavras é o menor dos problemas da leitura na contemporaneidade. “Existem duas leituras silenciosas atualmente: a leitura reflexiva e a ‘do computador’, que não é atenta. A leitura de boca fechada não quer dizer que é de alta concentração. O aluno tem dificuldade de fazer essa leitura interior, de extrair uma compreensão profunda do texto, como se buscava na Idade Média. Perdemos a capacidade de fazer uma leitura concentrada, é só silenciosa, mas mesmo assim, ruidosa.”
Sejam quais tenham sido as motivações para que se desenvolvesse, ou os entraves para que não viesse a se popularizar, a leitura silenciosa ainda tem no relato de Santo Agostinho a descrição mais misteriosa – tanto quando se espanta, como quando, de certa maneira, dessacraliza os estímulos do seu mestre enquanto pratica o ato curioso: “Lia em silêncio (...), talvez para evitar que algum ouvinte, suspenso e atento à leitura, encontrando alguma passagem obscura, pedisse explicações, ou o obrigasse a dissertar sobre questões difíceis. Gastaria o tempo em tais coisas, e impedido de ler todos os livros que desejava, embora fosse mais provável que lesse em silêncio para poupar a voz, que facilmente lhe enrouquecia”. Seria de uma simplicidade mística e assombrosa, se todo um alinhamento histórico que permitiu essa evolução pudesse ser substituído pela justificativa de que ficaríamos roucos se não lêssemos... em silêncio.
Leia também:
"Produzimos mais escritos. Já literatura, não sei"