Arquivo

Colombo: Um chá da tarde na belle époque

Numa pequena rua do centro carioca, a confeitaria mais famosa do Brasil atravessa três séculos de história, unindo clientela ilustre, arquitetura luxuosa e gastronomia tradicional

TEXTO Talitta Corrêa

01 de Novembro de 2012

O salão do Colombo é um dos mais representativos exemplares da belle époque brasileira e da arquitetura art nouveau

O salão do Colombo é um dos mais representativos exemplares da belle époque brasileira e da arquitetura art nouveau

Foto Divulgação

"Orlando!”. Quando o nome do garçom dobrava os “Os” e ecoava pelo salão, seu cliente mais ilustre havia chegado. Era um freguês sorridente, que mirava na mesa 23 (cantinho iluminado pelos lampadários de cristal tcheco). Entre vitrais, piano de cauda e pilastras de mármore, ele desfilava na direção do peru fatiado com molho rôti, farofa de ovos e banana frita, sabendo que, vez ou outra, as baixelas de prata portuguesa vinham também guarnecidas de uma dobradinha de porco ou um linguado. Na Confeitaria Colombo – que há mais de um século coloca esplendor na estreita Rua Gonçalves Dias, no Centro do Rio de Janeiro –, o presidente Juscelino Kubitschek era presença constante.

Além de JK, visitantes célebres como Olavo Bilac, Machado de Assis, José do Patrocínio, Washington Luiz, Santos Dumont, Rui Barbosa, Chiquinha Gonzaga, a rainha Elizabeth, Villa-Lobos e Getúlio Vargas ajudaram a transformar a confeitaria numa suntuosa referência da cidade. “Servi muitas dessas pessoas”, orgulha-se Orlando Almeida Duque. Aos 72 anos, ele é o funcionário mais antigo da casa, na qual trabalha desde os 15. “O Getúlio, por exemplo, escolhia a mesa 38 e só comia o filé mignon à gaúcha: medalhão, arroz, batata frita, farofa de alho, torrada e molho à campanha. Por R$ 49,50, o prato ainda está no cardápio.”


Renato Freire, chef da confeitaria há 10 anos, montou o cardápio com
receitas clássicas. Foto: Divulgação

Foram os imigrantes portugueses Manuel Lebrão e Joaquim Meirelles que, em setembro de 1894, fundaram esse estabelecimento de luxo comparável, à época, aos melhores restaurantes de Paris. Um rico pedaço do Rio de D. Pedro II, exuberante de sobremesas sofisticadas, cujos proprietários – dizem muitos historiadores – criaram a famosa frase “O cliente tem sempre razão”. A Confeitaria Colombo é, até hoje, um lugar em que se vive certo tipo de alumbramento. Dentro de suas portas de madeira jacarandá e em dois andares espaçosos, um banquete de história, cultura e especial gastronomia se posta às mesas, elegantemente.

“A Colombo é uma das poucas casas que atravessaram três séculos. O segredo do sucesso é ter sido idealizada por homens de grande inteligência, visão do futuro e com um faro comercial inigualável, criadores de um negócio suntuoso numa época que o centro do Rio de Janeiro ainda era um local insalubre, com as ruas sujas e dominadas pelos cortiços’’, relembra Renato Freire, chef da confeitaria há mais de 10 anos. “No seu início, a Colombo instalou-se num sobrado antigo. Composta por uma fábrica de doces, restaurante, armazém e uma refinaria de açúcar. A refinaria trazia o açúcar bruto de Pernambuco, considerado, à época, o melhor do Brasil. Seus donos mandavam buscar as melhores mercadorias que pudessem existir. A banha vinha dos Estados Unidos, as manteigas eram trazidas da Holanda, França ou Dinamarca; os biscoitos vinham da Inglaterra, os chocolates da Suíça e da Bélgica”, completa o chef.

DIA E NOITE
A marchinha de carnaval Sassaricando, sucesso de 1952 na voz da vedete Virgínia Lane, lembra que a Colombo tinha movimento de dia e de noite (“Tá sassaricando/Todo mundo leva a vida no arame/ Sa, sassaricando a viúva, o brotinho e a madame/ O velho na porta da Colombo/ É um assombro/ Sassaricando/ Quem não tem seu sassarico sassarica mesmo só/ Porque sem sassaricar/ Essa vida é um nó...”).


Os espelhos belgas e o mobiliário encantam os frequentadores. Foto: Divulgação

À tarde, enchia-se de madames para o chá. Depois, era tomada pelos boêmios. Um lugar com uma poesia tão própria, que virou cenário de diversas obras, sobretudo, televisivas. Na novela O casarão, de Lauro César Muniz, exibida em 1976, o personagem João Daniel (vivido por Gracindo Jr.) marca um encontro na confeitaria com a jovem Carolina (Sandra Barsotti). Apenas ele comparece. Muitos anos mais tarde, João Daniel, já idoso, volta à confeitaria e reencontra sua amada, com cabelos brancos, no emocionante capítulo final, embalado pelo valsa Fascinação, na voz de Elis Regina. Na atual novela das seis, da Globo, Lado a lado, a personagem Isabel, interpretada por Camila Pitanga, procura emprego na luxuosa “Confeitaria Colonial”, que reúne intelectuais no centro do Rio, no ano de 1904, numa clara referência à casa.

MAUS TEMPOS 
Os primeiros sinais de desaquecimento do negócio só vieram com a mudança da capital para Brasília, na década de 1960. Com o esvaziamento do Rio de Janeiro, a Colombo começou a viver um período de dificuldades. Seu momento mais crítico foi no início da década 1990, quando se especulava que ela se transformaria num bingo ou numa igreja evangélica. O estabelecimento só não foi fechado por ter sido tombado antes como patrimônio histórico da cidade. Em 1992, foi comprada pela marca Arisco, mais interessada nas suas fábricas de doces e de geleias. Sete anos depois, voltou ao ramo familiar, sendo comprada pelos irmãos Mauricio e Roberto Assis. Logo em seguida, Renato Freire foi escolhido para assumir o posto de chef executivo das suas cozinhas.

Foi quando itens tradicionais do passado voltaram às vitrines da casa, como o bolinho rivadávia, os gaufrettes, os pingos de tochas, as trouxinhas de ovos, os pastéis de nata, o famoso mil-folhas (doce preferido de Olavo Bilac) e os pãezinhos de miga, servidos à Rainha Elizabeth, em 1968 – embora a majestade tenha se encantado mais pelo sorvete de bacuri, armazenado em muitas caixas, e levado a bordo do seu navio para a Inglaterra.


Os pratos servidos hoje ainda preservam o charme de outras épocas.
Foto: Divulgação

A estreitíssima ligação de políticos, personalidades, intelectuais e artistas com a
confeitaria já foi detalhada no livro Colombo, 100 anos no dia a dia da cidade do Rio de Janeiro, editado e escrito por Batty Mattos, em 1994. A publicação conta, por exemplo, que, no início do século 20, a mãe do maestro e compositor Heitor Villa-Lobos, Dona Noêmia, lavava e engomava os guardanapos da confeitaria. Daí surgiu uma relação quase sentimental, dizia o músico, com um tal de escalopinho de filé à la Bouquetière. Não por acaso, quem visita o segundo andar da Colombo, atualmente, encontra um pequeno coreto para Villa-Lobos.

Esses atributos históricos atraem ao local visitantes de todo país. De segunda a sábado, suas cadeiras estão sempre ocupadas, com o fervilhar do centro da cidade. O que transforma clientes em espectadores boquiabertos são o belo mobiliário, esculpido pelo artesão Antônio Borsoi, os espelhos belgas e a claraboia imponente, colocando o público diante de um dos mais representativos exemplares dabelle époque brasileira e da arquitetura art nouveau. Em 1944, ao completar 50 anos, a casa abriu uma filial em Copacabana. A unidade funcionou até 2003, quando se mudou para o Forte de Copacabana, tornando-se ponto turístico que oferece, além de quitutes, uma bela vista da orla carioca.

Hoje, a casa principal atende, em média, três mil pessoas dia, ou cerca de um milhão de clientes por ano. A procura do público para realização de festas de casamento na confeitaria é tão grande, que só há vagas para os fins de semana no segundo semestre de 2014. Lá, dois mil doces e salgados são produzidos, diariamente, por quase 80 funcionários. Aos sábados, das 12h às 16h30, vale experimentar o bufê de feijoada (R$ 49,50 por pessoa, com salada e uma sobremesa). Opções como pastel de avelã com feijão branco, ou de chocolate com pimenta, incorporam novidade ao menu e conquistam novos cariocas, turistas e celebridades, como atores, atletas e jornalistas. A cúpula do Flamengo reúne-se ali todas as terças-feiras. É quando o garçom vascaíno Orlando forra, contrariado, uma das mesas do salão com a bandeira rubro-negra. 

TALITTA CORRÊA, jornalista e editora de conteúdo web da Rede Globo.

veja também

O design dos não designers

Um olhar sobre o tempo dos trambolhos

Os autores no centro do espetáculo