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A formação do olhar no cineclubismo

TEXTO Raquel do Monte

01 de Outubro de 2012

Imagem Diogo Valente

Toda semana saltam em pequenos pontos dos cadernos de cultura dos jornais, nas redes sociais e nos nossos e-mails notícias sobre sessões de cineclube que ocorrerão em partes distintas de Pernambuco. Nessa amplitude de opções, há filmes que possibilitam, além de uma experiência estética, a reflexão sobre diversos temas que envolvem o mundo contemporâneo e vão do político ao existencial, passando pelo sociológico e o artístico. Diante da multiplicidade que envolve a cena cineclubista pernambucana, pensamos em tais ações como movimentos de resistência que não apenas promovem a formação do olhar, mas, acima de tudo, ressignificam a relação do espectador com a obra cinematográfica.

Se, antes, as exibições tinham como leitmotiv favorecer o contato com obras raras, acervos inéditos e cinematografias desconhecidas, hoje – com a cibercinefilia – a relação com os filmes e as expectativas dessas iniciativas mudaram bastante. As razões aqui citadas, que sempre nutriram a atividade cineclubista, continuam alimentando esse tipo de atividade, só que de modo secundário, pois contemporaneamente o nosso desejo como público encontra-se em outras vagas.

Talvez o que nos mobilize a sair de casa e assistir às sessões seja o fato de que, naqueles espaços, muitas vezes precários, temos a chance de partilhar experiências sensíveis e, sobretudo, apaziguar um pouco as nossas pequenas solidões. Nesses encontros, ao acender das luzes, podemos relatar as sensações que tivemos diante dos mundos exibidos nas telas. É possível que haja um pouco de nostalgia em nós quando aderimos a essas sessões. Ali, de alguma maneira, ansiamos para que floresçam oportunidades de troca e, sobretudo, para que o nosso olhar se nutra com a percepção do outro.

Nesses locais de exibição, experimentamos uma espécie de nomadismo existencial, viabilizado pelo contato com a obra fílmica, estética. Somos convocados a um jogo fluido, mutante, no qual o entrecruzamento de perspectivas e vivências alheias nos interceptam, formando várias linhas de força, e nos fazem saborear as múltiplas possibilidades de imergir nos universos fílmicos. No lapso de tempo entre a exibição, o debate e a volta para casa, somos compelidos às “desterritorializações” e “reterritorializações”... incessantemente. Entramos numa espécie de devir.

A história do cineclubismo pernambucano vem de longe e também foi constantemente alterada na sua forma de existir ao longo das últimas seis décadas. Nos anos 1980, por exemplo, as sessões realizadas em torno do Jurando Vingar foram responsáveis pela formação de diversos cineastas e profissionais da área, como Marcelo Gomes, Kleber Mendonça Filho, Lírio Ferreira, Adelina Pontual, Cláudio Assis. Passadas quase três décadas, encontros desse tipo, com o objetivo de reunir os apaixonados pela sétima arte, oferecem programas que vão desde eixos temáticos, como aqueles voltados às cinematografias que abordam questões raciais e históricas, àqueles que prestam homenagens às consagradas, como a francesa e a italiana.

Segundo a Federação Pernambucana de Cineclubes (Fepec), estão cadastrados e filiados à entidade no estado 72 grupos e há ainda os que se referem à relação cinema e literatura e os que buscam apresentar obras pouco conhecidas do público. Em todos, observamos que há uma preocupação curatorial, sendo que, nesse caso, o curador cumpre um papel privilegiado na atividade cineclubista. Ele não apenas escolhe os filmes que serão exibidos, mas viabiliza os debates e, muitas vezes, monta e articula mostras paralelas.

A presença do curador indica que houve uma redefinição na própria natureza da atividade, visto que rareiam os indícios de que havia ali algo de doméstico. Também percebemos que há uma preocupação ainda maior com as reflexões acerca da linguagem cinematográfica e suas infinitas possibilidades, por exemplo. Testemunhamos o ocaso do amadorismo e o processo de amadurecimento que, do ponto de vista dos debates empreendidos ao final das sessões, culmina com as idas aos limites da compreensão do fazer do cinema e de sua natureza.

A atual geração de cineclubistas pernambucanos, que se encontram semanalmente, evoca e reelabora a cinefilia de outrora, “uma religião produtiva”, de acordo com definição de Ismail Xavier. Essa “religião” favorece um certo espírito de corpo, apesar das diversas tendências internas. Isto é, na multiplicidade das práticas cineclubistas, somada à cinefilia, é que se produz um novo olhar que singulariza as trocas culturais contemporâneas e redefine estratégias políticas que abarcam o mundo das tecnologias das imagens. Somados a esta cartografia, nós, enquanto espectadores, vislumbramos também a busca da compreensão de algumas poéticas. Nas diversas experiências, o cineclubismo pernambucano busca encontrar um meio termo entre a observação exclusivamente apaixonada e o olhar excessivamente distante, moldado por altas doses de saber crítico. E é justamente nesse entrelugar que encontramos chaves de compreensão para o que venha a ser esse exercício hoje.

A cada exibição, sentimos, tal qual a espectadora russa relatada por Tarkovski, em Esculpir o tempo, num misto de reconhecimento e desencontro, que não estamos sozinhos. Na beleza da precariedade da infraestrutura que abriga as sessões, deparamo-nos com um chamamento que nos faz aderir a um processo contínuo, potencializando o olhar e ampliando, de forma lúdica, uma experiência estética que comove, inquieta, escandaliza, reverbera e, acima de tudo, substantiva a nossa existência. 

RAQUEL DO MONTE, jornalista, doutoranda em Comunicação pela UFPE e curadora do Cineclube Pasárgada.

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