Todo esse investimento vem sendo revertido positivamente para o mercado de entretenimento. Há muito fala-se que estamos vivenciando uma espécie de vanguarda da ficção televisiva, com séries, minisséries e filmes para a TV tratados com o mesmo respeito que outrora foi exclusividade do cinema. Esse cuidado na concepção, mais os citados orçamentos inflados, estão gerando resultados palpáveis, como alta audiência, anunciantes, críticas generosas e prêmios da indústria, fazendo a roda girar mais e melhor a cada ano.
Talvez, a mudança mais significativa dos últimos 25 anos tenha ocorrido em termos de narrativa. Até o final dos anos 1980, as séries de um modo geral seguiam modelos específicos de ambientação e narrativa, com gêneros fáceis de identificar: as clássicas sitcoms, as policiais, de ação, de ficção etc. Porém, Twin Peaks (1990-1991) quebrou paradigmas não apenas por ser coassinada por um importante autor de cinema – David Lynch, ao lado do roteirista Mark Frost –, mas também por trazer uma espécie de novela mórbida com muitos elementos “difíceis” para o público, como um cadáver envolto em plástico, uma entidade maligna que “possui” humanos, pesadelos e diversos personagens com comportamentos fora do convencional.
Episódio piloto de Lost custou entre US$ 10 e 14 milhões. Foto: Divulgação
Não que não tivessem havido outros seriados inovadores antes de Twin Peaks. I love Lucy (1951-1957), Além da imaginação (1959–1964), Jornada nas estrelas (1966–1969) e As Panteras (1976-1981) são só alguns casos das décadas anteriores que merecem menção. Mas o programa de Lynch e Frost foi o embrião de uma pequena revolução na TV que repercute e gera frutos até hoje. A partir dali, o público estaria pronto para receber, além das histórias de sempre, experimentos mais radicais na pequena tela.
Pouco depois veio Arquivo X (1993-2001), que era ao mesmo tempo policial, ficção científica e romance, com influências díspares como as séries A Gata e o Rato, Além da imaginação e Kolchak e os Demônios da noite; além da própria Twin Peaks e de filmes como O silêncio dos inocentes e Todos os homens do presidente. Paralelo ao sucesso de Arquivo X , houve o êxito dos seriados médicos E.R. (Plantão médico no Brasil) e de dois dos maiores expoentes das sitcoms, Friends e Seinfeld.
SEM FRONTEIRAS
A essa altura, as fronteiras entre a TV e a “sétima arte” estavam cada vez mais borradas. A Amblin, produtora de Steven Spielberg – que já havia se aventurado na televisão com os desenhos animados Tiny Toons e Animaniacs –, era uma das responsáveis por Plantão médico. Os escritores William Gibson e Stephen King chegaram a escrever episódios de Arquivo X. E, seguindo os passos de Robin Williams e Bruce Willis, que também começaram nos seriados, Jennifer Aniston (Friends) e George Clooney (Plantão médico) esticaram seu sucesso na sétima arte.
Aclamado diretor David Lynch assinou a série Twin Peaks ao lado de Mark Frost.
Foto: Divulgação
Veio o terceiro milênio e, após a queda das Torres Gêmeas, uma série captou o espírito da época como nenhuma outra produção do cinema conseguira. Estreando dois meses depois do ataque, 24 horas (2001-2010) abordou a tensão geopolítica da era George W. Bush, tendo como protagonista um herói torturante e torturador, Jack Bauer (Kiefer Sutherland, outro astro do cinema que se deu melhor na TV) e utilizando-se do recurso alucinante da história contada em “tempo real”, com cada episódio representando uma das 24 horas de um dia em que os Estados Unidos enfrentam sucessivas ameaças terroristas.
A colheita televisiva dos últimos anos rendeu fenômenos de público e/ou de crítica como 24 horas, Lost, Two and a half men (2003, ainda no ar), Desperate housewives (2004-2012), The Sopranos (1999-2007) e House (2004-2012) até chegarmos na safra atual, de The Big Bang Theory (que estreou em 2007), The walking dead (2010), Mad men (2007) e Game of thrones. Também transformou alguns de seus “faz-tudo” – sujeitos que acumulam funções de diretor, roteirista e produtor executivo – como J. J. Abrams (Lost, Alias, Fringe) e Chuck Lorre (Two and a half men, The Big Bang Theory) nos nomes mais badalados do entretenimento audiovisual.
Enquanto isso, o cinema viu a derrocada do chamado star system, no qual astros como Tom Cruise eram chamarizes de público e ganhavam salários astronômicos. Na tela grande, basicamente apenas os gêneros de ação e fantasia têm rendido dividendos, graças aos efeitos digitais. Vários dos grandes criadores e astros do meio cinematográfico – de Martin Scorsese e Frank Darabont a Al Pacino e Kate Winslet – estão cada vez mais aderindo às possibilidades comerciais e estéticas das narrativas da TV.
The walking dead foi onerosa por demandar muitos efeitos especiais. Foto: Divulgação
OUSADIA
The walking dead e Game of thrones são casos singulares dessa nova era das “super-séries”. Ambas são adaptações de histórias que repercutiram em mídias fora do audiovisual. A primeira é uma história em quadrinhos de Robert Kirkman; a segunda veio de uma série de livros de George R. R. Martin. Ambas possuem temática fantástica, o que exige produção onerosa e repleta de efeitos especiais. As duas séries trouxeram seus criadores no cargo de produtores executivos, o que, na prática, significa que eles têm voz ativa em decisões importantes no desenvolvimento dos programas.
Os canais a cabo norte-americanos AMC e HBO, que produzem The walking dead e Game of thrones respectivamente, são considerados pela crítica os líderes dessa revolução televisiva ao apostar pesado em histórias com temática adulta aliada à produção de alta qualidade. Vão na contramão das emissoras rivais ao investir em temporadas anuais menores, de 10 a 13 episódios, enquanto os demais seriados ficam na média dos 23 episódios por ano. A HBO tem no currículo sucessos variados como Sex and the city, The Sopranos (Família Soprano), Roma e Boardwalk empire, enquanto a AMC é a dona de Mad men e Breaking bad.
Outro ponto importante das recentes levas de seriados é a utilização da continuidade de episódios como elemento de atração. Nos anos 1960, nossos pais e avós se divertiam com Jeannie é um gênio e A Feiticeira, sem se preocuparem com o que haviam assistido nas semanas anteriores ou o que aconteceria nas posteriores, pois cada episódio era pensado isoladamente, como microfilmes com começo, meio e fim dentro daquele universo ficcional. Já quem acompanhou Lost desde o começo percebeu que cada cena e cada detalhe era um pedacinho de um quebra-cabeça maior que formaria uma grande história aos poucos, aumentando o suspense e exigindo bastante da memória do espectador.
Piloto do seriado Boardwalk Empire foi dirigido pelo cultuado diretor Martin Scorcese.
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Game of thrones divide sua narrativa por núcleos, focando nas castas dos reinos que estão em diversos pontos de um reino central. A variedade de personagens é imensa – uma lista na Wikipedia cita mais de 170 nomes – e a importância destes varia conforme o andar da trama. Por exemplo, após a morte do então protagonista, Ned Stark, o filho Robb, que até então mal aparecia na série, passa a conduzir o núcleo Stark e a batalha destes contra os Lannisters, que atualmente ocupam o disputado trono de Westeros. O anão Tyrion, que era um coadjuvante divertido na primeira temporada, ganhou mais destaque após assumir o posto de “Mão do Rei” (uma espécie de primeiro-ministro) e também após o seu intérprete, Peter Dinklage, ganhar o Emmy e o Globo de Ouro pelo papel.
As séries para a TV a cabo dos EUA também contam com maior liberdade para filmar cenas e temas que poderiam desagradar públicos mais sensíveis. Game of thrones abusa da nudez feminina e das cenas de decapitações, além de mostrar um incesto entre irmãos já no capítulo inicial. Boardwalk empire exibiu incesto de forma mais explícita, com mãe e filho mantendo relações sexuais na segunda temporada, encerrada neste ano. E séries como Breaking bad e Weeds mostram traficantes de metanfetamina e maconha na condição de protagonistas.
MÃO DUPLA
A simbiose entre cinema e TV também progride. Temos cineastas como Martin Scorsese dirigindo o piloto de Boardwalk empire, Frank Darabont (Um sonho de liberdade) como produtor em The walking dead e o veterano Steven Spielberg emprestando seu nome a uma infinidade de séries e minisséries recentes, como Band of brothers (2001), Taken (2002), Terra nova (2011) e Falling skies (estreou em 2011). Os atores, alguns com Oscar e Globo de Ouro no currículo, estão igualmente migrando: Steve Buscemi estrela Boardwalk empire, Kate Winslet protagonizou Mildred Pierce (2011), Meryl Streep e Al Pacino estiveram em Angels in America (2003), e Kathy Bates participou de The office (que estreou em 2005) e Harry’s law (2011-2012).
A série Madmen tornou-se sucesso da emissora AMC na concorrência contra a HBO.
Foto: Divulgação
Na mão inversa, diretores e roteiristas da TV também estão galgando posições no cinema. J. J. Abrams dirigiu o terceiro filme Missão impossível (2006) e não parou mais: produziu o terror Cloverfield (2008), dirigiu o novo Star Trek (2009) e o suspense juvenil Super 8 (2011). James Wong, roteirista de diversos episódios de Arquivo X, nos anos 1990, dirigiu dois filmes da cinessérie Premonição (2000 e 2006) e Dragonball evolution (2009), adaptação do famoso mangá.
E há ainda os criadores da TV que circulam há anos em produções diversas, tornando-se verdadeiros operários do meio. David Nutter já dirigiu tantos episódios-piloto – como os de Supernatural, Smallville, Millennium e Without a trace – que ficou conhecido como o “pilot whisperer”, ou seja, o cara que conhece todos os meandros para iniciar um seriado. Tim Van Patten é outro bastante “rodado” na área, com nome nos créditos de Roma, Boardwalk empire, Game of thrones, The Sopranos e outros. Casos como estes provam que não falta trabalho para quem está construindo uma carreira na TV e não quer se aventurar no cinema.
Esse panorama indica que, apesar dos seus mais de 60 anos de existência, o formato série de TV ainda tem muito a percorrer nos próximos anos e poderá, quem sabe, ser uma ameaça ao cinema enquanto arte audiovisual por excelência. Em entrevista ao site Collider, o cineasta Martin Scorsese dá seu pitaco sobre esse momento. “É certamente interessante o que está acontecendo agora, nos últimos nove ou 10 anos. Esperávamos que haveria [na TV] esse tipo de liberdade, essa capacidade de criar um outro mundo e de desenvolver personagens em uma história de narrativa longa. Isso não aconteceu nos anos 1970 e 1980 com a televisão. Eu tenho tentado, ao longo dos anos, estar envolvido em uma série. É uma nova oportunidade para contar histórias, que é muito diferente da televisão no passado.”
MÁRCIO PADRÃO, jornalista, redator do BOL e autor do blog Quadrisônico.