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“Nascemos das impossibilidades”

Figuras centrais do Odin Teatret, da Dinamarca, Eugenio Barba e Julia Varley contam como criaram uma companhia a partir de toda sorte de situações adversas, valorizando o contato com o público

TEXTO Christiane Galdino

01 de Agosto de 2012

Foto Patrícia Furtado de Mendonça/Divulgação

Muito já se disse sobre o poder transformador da arte, e também de sua vocação transgressora. Porém, com a popularização dos recursos tecnológicos e a tendência ao individualismo em alta, não faltam vozes para anunciar o fim das chamadas artes vivas, e entre elas, o teatro seria um forte candidato à extinção. Contrariando tais previsões, a arte teatral resiste, reinventando-se a cada momento. Nesse caminho de persistência, muitas vezes obscuro, alguns nomes inspiradores funcionam como farol. O italiano Eugenio Barba, radicado na Dinamarca, é um desses mestres que iluminam e inspiram atores e atrizes de todo o mundo.

Fundador e diretor do Odin Teatret desde 1964, ele permanece na ativa, mantendo acesa a mesma paixão pelo ofício teatral dos anos iniciais. Ao seu lado encontra-se a atriz Julia Varley, que nasceu em Londres e cresceu na Itália, país em que permaneceu até 1976, quando chegou à sede do Odin, em Holstebro, pequena cidade do interior da Dinamarca. Figuras centrais da Antropologia Teatral, eles estiveram pela primeira vez no Recife a convite do Sesc Pernambuco, para participar do 6º Festival Palco Giratório, em maio último. Em apresentação única, Julia fez uma demonstração de trabalho intitulada O eco do silêncio, seguida da palestra Aprender a aprender – A evolução técnica do ator, liderada por Barba, para um Teatro Apolo lotado. A simbiose total entre Julia e Barba faz crer que o pensamento de um completa o do outro. A atriz e o diretor comungam dos mesmos ideais, partilham o discurso a tal ponto que fica difícil separar suas falas.

E assim foi na entrevista à Continente. Ele chegou um pouco antes e, com um jeito simpático e informal, quis informações sobre o cenário político do estado, as questões culturais e o perfil dos meios de comunicação locais. Somente com a chegada dela, a entrevista foi oficialmente iniciada. Sempre juntos, eles falaram sobre as particularidades e o cotidiano do Odin Teatret; a relação com o Brasil; e o processo de formação de ator na atualidade, com a propriedade de quem dedicou toda a vida ao fazer teatral. “Você tem que pensar o Odin como uma cultura de culturas, diferentes realidades que resultam em uma realidade única e muito particular. Essa diversidade cultural é a riqueza do nosso grupo”, diz o diretor, referindo-se também às nacionalidades distintas dos atores do seu elenco. Lições de um mestre do teatro mundial.

CONTINENTE Quais os segredos para manter um grupo de teatro trabalhando junto por tanto tempo, como é o caso do Odin?
EUGENIO BARBA Nascemos das impossibilidades. Numa época em que teatro era sinônimo de um prédio, com um diretor e atores contratados por temporada para trabalhos comerciais ou subsidiados pelo governo, exclusivamente para fins de entretenimento, eu (um estrangeiro) não tive chance de atuar em Oslo, na Noruega. Então juntei-me a um grupo de jovens atores, também rejeitados nas escolas de teatro, e fundamos o Odin, para criar nosso próprio caminho. Não tínhamos prédio nem professores, então tivemos que inventar também uma pedagogia autoral; aprendemos fazendo. Algum tempo depois, conseguimos um local para nos abrigar, só que na Dinamarca, um país conservador e até xenófobo. Talvez a nossa disciplina e o horário intenso de trabalho diário – em uma jornada iniciada às sete da manhã, como a dos demais trabalhadores daquele país – tenham ajudado na nossa adaptação e na aceitação daquela comunidade. E até hoje continuamos com uma dinâmica de trabalho intenso, presencial e contínuo, apesar dos projetos independentes de cada integrante do Odin. Atualmente, a realidade é outra, e reina o que acredito ser um retorno à real natureza do teatro: a fugacidade das relações. Os atores se juntam por contrato, por espetáculo ou projeto, e depois se separam. Pensar o teatro como algo que junta as pessoas durante toda a vida, acredito que só o Odin mesmo teve essa obsessão. Ninguém tem paciência para processos muito longos, hoje em dia.
JULIA VARLEY Para ser um grupo, tem que haver continuidade, mesmo que os encontros não sejam mais presenciais. É preciso que se estabeleça uma relação de pertencimento, ainda que os grupos tenham virado redes. E o Odin também se relaciona com essa nova realidade. Temos, por exemplo, um grupo que está trabalhando muito conosco. Um integrante é brasileiro e mora na Alemanha; dois são italianos, sendo um do norte e o outro do sul da Itália; e um outro, espanhol, que mora na Bélgica. Então, como pode ser um grupo? Mas eles se encontram três vezes por ano, fazem espetáculos juntos, têm uma experiência coletiva, ainda que não se encontrem todas as manhãs como nós fazemos.

CONTINENTE Se as escolas não formam os artistas e os grupos quase não existem, como pode se dar o processo de formação do ator?
EUGENIO BARBA O trabalho do Odin pode ser uma referência, pode servir como uma orientação para que cada um descubra seu próprio caminho, pois não existe um método único. Acho que uma das razões da popularidade do nosso grupo, sobretudo com os jovens, é a possibilidade de cada ator poder construir uma formação coerente consigo mesmo. E é isso que queremos proporcionar.
JULIA VARLEY Então, para ajudar nesse processo de formação, começamos a ministrar oficinas e oferecer alguns programas de intercâmbio como o Win-Workout for Intercultural Navigators, que promove cursos cíclicos, intervenções práticas e experiências sob a orientação do Odin Teatret e artistas residentes na nossa sede, em Holstebro. Porém, cada turma tem no máximo 20 alunos, e nos interessava também acompanhar o processo de desenvolvimento, de formação dos atores. Assim surgiram as demonstrações de trabalho, que podem ser vistas por cerca de 200 pessoas em cada apresentação, ampliando as possibilidades de formação. E ainda tem um grupo chamado Ponte dos Ventos, coordenado pela atriz do Odin, Iben Nagel Rasmussen, e formado por 10 atores de várias partes do mundo, que se reúnem na Dinamarca uma vez por ano e estão em contato permanente.


Foto: Rina Skeel/Divulgação

CONTINENTE Diante de todas as dificuldades e depois de 48 anos à frente de um grupo como o Odin, o que lhe faz continuar trabalhando com teatro?
EUGENIO BARBA Confesso que, passados tantos anos, a minha primeira reação diante de novas iniciativas, turnês, montagens é a de rejeição. Uma inércia causada pelo cansaço mesmo. Se nós somos carne vestida de anos, tenho vestidos muito pesados agora, não é? Porém, depois de vencida essa inércia inicial, sou tomado por um fascínio quase infantil, uma paixão que não consigo sequer definir em palavras. Falar em transcendência é muito solene, mas é como percebo esses momentos excepcionais. Outro forte motivo que me faz prosseguir são os atores do Odin. Muitos deles são jovens ainda e, se eu for embora (ou decidir me afastar, parar), o estado dinamarquês pode retirar os subsídios. Porque os governos, de uma maneira geral, funcionam com uma lógica de hierarquias. Eles não entendem que o Odin não é assim, muito pelo contrário, é profundamente descentralizado. Cada um dos atores, e alguns diretores têm projetos próprios. Odin não é só um planeta, é uma espécie de constelação.

CONTINENTE Essa é a primeira vez de vocês no Nordeste brasileiro, mas desde os anos 1980, o Odin Teatret é uma forte referência no Brasil. Como essa relação se estabeleceu?
EUGENIO BARBA Em 1984, conheci um jovem ator que estudava em Paris, Luís Otávio Burnier. Ele, que fundou o Lume Teatro, em Campinas; Paulo Dourado, diretor teatral e professor da Universidade Federal da Bahia; Aderbal Freire Filho, ator e diretor teatral residente no Rio de Janeiro; e Nitis Jacon, que por muitos anos dirigiu o Festival Internacional de Teatro de Londrina, o Filo, foram os responsáveis pelas primeiras turnês do Odin no Brasil, que incluíam espetáculos coletivos e individuais, demonstrações de trabalho, teatro de rua, palestras, oficinas, encontros com estudantes e grupos de teatro. Desde então, essa relação só se torna mais intensa. O Brasil é uma parte da casa não geográfica do Odin, faz parte da família. É como se tivéssemos o mesmo tipo de sangue. Somente no Brasil – na cidade de Londrina – foi realizada uma Ista (International School of Theatre Anthropology). Em nenhum outro país latino-americano foi organizado um Odin Festival como o que aconteceu, em 2006, no Rio de Janeiro, com um mês integral de atividades ininterruptas abertas ao público. E temos ainda a presença do ator-dançarino baiano Augusto Omolu, no elenco do Odin desde 1993.
JULIA VARLEY O Odin chegou ao Brasil pela primeira vez em 1978, quando os atores Roberta Carreri e Francis Pardeilhan passaram dois meses em Salvador estudando capoeira e dança dos orixás, convidados pelo Grupo Teatro Livre da Bahia. De lá para cá, as trocas entre o Odin Teatret e vários artistas brasileiros só fizeram aumentar, em quantidade e constância. Todos os anos, eu e Eugenio visitamos o Brasil para atividades do projeto A Arte Secreta do Ator, uma formação de caráter intensivo que conta com a participação de um grupo seleto de atores, diretores e professores de todo o país, que se reúnem em Brasília para reciclagem, apuro e uma aproximação diferenciada com as técnicas do Odin. A Patrícia Furtado, que é nossa tradutora oficial, mantém a rede Odin Teatret Brasil, e organiza a nossa agenda por aqui. Participo também anualmente do Festival Internacional de Teatro Feito por Mulheres – Solos Férteis, realizado no Brasil e ligado à Rede Internacional de Mulheres de Teatro, The Magdalena Project.

CONTINENTE Na era em que reina a cultura de massa, e o sucesso dos espetáculos costuma ser medido pela quantidade de espectadores, por que o Odin escolhe se apresentar, na maioria das vezes, para públicos reduzidos?
EUGENIO BARBA Começamos nossa trajetória de grupo em uma sala de escola emprestada para nós. Então, tínhamos o público não só reduzido como muito próximo dos atores. Isso fez com que desenvolvêssemos uma forma diferenciada de utilizar o espaço cênico. E percebemos que o movimento de mudança acontece é na intimidade, ou por causa dessa relação próxima que se estabelece. Deixa eu te dar um exemplo: se você tem um filho, você prefere que ele estude numa sala com 20 alunos ou com 200? (Risos.) À distância, nas multidões, você não consegue perceber as mudanças do corpo, as sutilezas.
JULIA VARLEY As dificuldades são um estímulo criativo muito forte para nós. Fazemos espetáculos de rua e para grandes públicos também, mas só a intimidade nos dá possibilidades de trabalhar com nuances muito finas. É isso que nos interessa.

CONTINENTE Quais são as principais lições que o ofício teatral pode oferecer às sociedades contemporâneas?
JULIA VARLEY O teatro oferece a possibilidade do encontro, de relacionar-se. Para fazer teatro, precisamos de ator e espectador. Essa presença é física, concreta. Tem uma cultura que pertence ao corpo, e é como se, na sociedade contemporânea, essas possibilidades estivessem desaparecendo. O fazer teatral é baseado na inteligência do corpo, a maneira de pensar do corpo, que é mais que intuição. Isso permite às pessoas virem completamente a sua realidade. Em Holstebro, onde vivemos, temos a possibilidade de criar, através do teatro, relações entre pessoas que normalmente não se encontrariam: pacifistas e o exército, por exemplo.
EUGENIO BARBA Eu posso fazer o melhor espetáculo da minha vida, e isso não mudar a vida de ninguém. Pode emocionar, porque a beleza sempre pode emocionar, mas para transformar tem que ir além. Cada um vive o espetáculo à sua maneira. O que nos interessa é saber como podemos deixar rastros, marcas no espectador. Acredito que atores e diretores, quando realmente juntos, podem descobrir algo muito maior, que vai além de tudo que poderiam imaginar sozinhos. Quando o espetáculo acaba, é que o teatro começa na memória e nos sentidos do espectador, que vai para casa, refletir sobre a sociedade, à luz da experiência quase espiritual que viveu no teatro. 

CHRIS GALDINO, jornalista, produtora cultural, crítica e pesquisadora em dança.

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