FOTOS RICARDO MOURA
01 de Agosto de 2012
Varanda de Guita Charifker, amplamente registrada em suas pinturas e aquarelas
Foto Ricardo Moura
Como nos filmes, quando o herói adentra uma tenda enfeitiçada e se vê, surpreso, no saguão de um palácio. Nem tanto, mas é por aí a sensação de conhecer os quintais de Olinda. Acostumados que somos a transitar, sem nunca penetrar, na atmosfera da cidade alta, nem sempre nos atentamos à manifestação de um verde entre as frechas de um portão, ou de uma árvore que se ergue e faz as pontas dos galhos aparecerem sobre o telhado. Para os visitantes, Olinda só se exibe pela metade na conhecida silhueta que a transformou em Patrimônio Cultural da Humanidade (título concedido há 30 anos pela Unesco), enquanto guarda a outra metade do segredo para os moradores.
Evocando os versos de Carlos Pena Filho (Olinda é só para os olhos,/ Não se apalpa, é só desejo/ Ninguém diz: é lá que eu moro/ Diz somente: é lá que eu vejo), buscamos quem mora lá, que vê e apalpa uma Olinda fundada também na terra, com árvores, plantas, flores e frutos. A artista plástica Guita Charifker, por exemplo, é detentora de um dos quintais mais invejáveis da cidade; da Igreja de Nossa Senhora do Amparo até a Academia Santa Gertrudes, brota-lhe um verdadeiro matagal – incluindo bananeiras que dão banana toda semana e um cajuzeiro que nunca deu caju. “Eu adoro natureza, nunca morei num lugar que não tenha planta, por isso você vê que sai naturalmente no meu trabalho”, afirma a pintora, cultivadora de muitas mudinhas que, depois de 35 anos, já estão altas, bem mais próximas do céu.
Na casa de Zé Som, no inverno, a família procura evitar
desabamento de espécimes
Passando em frente à casa de Guita, lá vem o Trenzinho de Olinda – verde e miudinho, patrocinado por um parque de diversões –, marchando pelo Amparo. A pequena locomotiva sobre rodas faz um tour pelo Sítio Histórico e, no seu percurso, acaba passando na frente do ateliê de Iza do Amparo. Sua filha, a cantora Catarina Dee Jah, revolta-se: “Aqui pro trenzinho de Olinda! Aquilo ali é o maior safári. Vai mostrando o casario sem o menor olhar sentimental pela cidade”. Para Catarina, “a gringalhada está dominando tudo”, especulando o mercado imobiliário e dirimindo a identidade do local. “No tempo da gente, os muros entre os quintais eram bem baixinhos”, diz, “dava para pular e ir brincar com os meninos nas outras casas. Hoje em dia, estão subindo esses paredões”. Seu irmão, o artista plástico Paulo do Amparo, conta ter passado um terço da sua infância no quintal, inventando brincadeiras e ilusões. “Olinda, sem isso aqui, para mim, é impensável”, conta. E de ilusões seu quintal é cheio. Não acredite em tudo o que você vê por lá – não coma as uvas do pé, que podem ser de plástico; não pense que está louco, CDs e DVDs de fato não crescem em árvores. Tem até “pés de cinzeiro” espalhados pelos cantos, que são na verdade frutos secos do xixá (árvore também conhecida como pau-de-cortiça), comumente usados para bater cinzas de cigarro.
Francesco e Norma consomem ervas do próprio jardim
O xixá também cresce atrás da casa de Francisco Motta. Além de lichia, pau-brasil, pinha, pitanga e bambu. Antes deles, uma “torre” reinava no seu quintal: “era um pé de fruta-pão que tinha 28 metros e mais de 100 anos, mas estava ameaçando a cair por causa do cupim”. Sob a ameaça da praga, o artesão deu início a uma jornada para resolver o entrave legal que o impedia de cortar a árvore. “Fui ao Iphan em busca de autorização, porque as árvores também são tombadas. O Iphan me redirecionou para a prefeitura de Olinda, que me botou em contato com seu departamento de paisagismo”. A região onde Francisco, Guita e Iza moram faz parte do Setor Verde 3 da cidade e, de acordo com a legislação municipal, são áreas de “grande densidade de elementos naturais que envolvem monumentos tombados” . Portanto, não podem ser alteradas sem a autorização dos órgãos competentes da prefeitura. “É crime cortar as árvores aqui na cidade alta”, explica Francisco, “é o mesmo que cortar uma árvore na Amazônia”.
Família de Iza cuida da casa e do entorno com ludismo e arte
Quem também teve problemas com as plantas do quintal foi o artista plástico Zé Som, que mora nos Quatro Cantos. Quando caem no inverno, as chuvas formam um lamaçal no terreno e fragilizam as estruturas das plantas, que acabam desabando no chão. “Caiu um pé de coqueiro que era o maior de Olinda, duas árvores em cima do telhado e uma palmeira imperial”, conta Sutra da Cunha, filho de Zé. “Mas o lugar é bom e a gente tem muito espaço. Ultimamente, estamos pensando em começar uma horta”, acrescenta.
Na horta já existente do restaurante Dom Francesco você encontra manjericão genovês, hortelã, pimentão, rúcula e salsinha. “Eu começo o cultivo lá pras quatro da tarde”, conta Francesco, dono do estabelecimento, “a luz está caindo, os pássaros se recolhem, as cigarras passam voando, fazendo som de matraca, os saguis descem pra comer as larvas... é muito agradável”, discorre. Ele mora em Olinda há 12 anos com sua esposa Norma Siqueira, arando terra no fundo do quintal. “Semeamos em pequenos vasos e depois transplantamos para a hortinha”, explica Norma sobre o processo, “não podemos plantar as mesmas coisas nos mesmos lugares, por isso fazemos um sistema de rotatividade, para a terra não ficar pobre. Também temos uma composteira que alimentamos com restos de folhas. E desde sempre servimos o carpaccio com o manjericão da nossa horta”, completa. “É muito prazeroso, mas dá trabalho. Na Itália, a gente diz que se a terra fosse mais alta, e não no chão, todo mundo trabalhava nela”, brinca.
Muitos terrrenos da Cidade Alta se estendem em declive, como o de Guita Charifker
O cozinheiro italiano, inclusive, foi o único dos entrevistados que apareceu com uma razão que explicasse o porquê de as casas históricas de Olinda serem tão extensas: “No tempo da Colônia, os portugueses vinham cobrar impostos de moradia. O imposto era em cima da largura dos imóveis, e não da profundidade, por isso os habitantes foram construindo casas estreitas e que vão até lá atrás. Já aplicavam o jeitinho brasileiro”.
Além das crônicas da luz do dia, os quintais de Olinda reservam um mistério: a história do Homem da Meia-Noite. Diz-se que o boneco Cariri de dentes de ouro, terno verde e cartola comprida foi inspirado num galante senhor que atravessava sorrateiramente as casas pelos fundos para desposar as moças compromissadas. Outros afirmam que a figura foi inspirada num ladrão que agia quando soavam as 12 batidas da meia-noite e que, para não ser flagrado, escapava pelos muros, mata adentro. Histórias guardadas pelos “sítios” da Cidade Alta.
ANDRÉ VALENÇA, estudante de Jornalismo e estagiário da Continente.
RICARDO MOURA, fotógrafo.