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Quem come os males espanta

Sociedades antigas e contemporâneas utilizam-se da comida como estratégia para atrair a sorte e evitar o mal

TEXTO Eduardo Sena

01 de Agosto de 2012

Biscoito da sorte surgiu em episódio de guerra na China

Biscoito da sorte surgiu em episódio de guerra na China

Foto Corbis

Reza a sabedoria popular que “agosto é o mês do desgosto”. E se tem uma coisa que acaba fazendo sentido no mundo é o clichê mundano. Historicamente, a sentença vai além da perspicaz força de expressão. Senão, vejamos. Foi no oitavo mês do ano que o primeiro homem foi eletrocutado em uma cadeira elétrica; começaram a 1ª e a 2ª Guerras Mundiais; as cidades japonesas de Hiroshima e Nagasaki foram destruídas pela bomba atômica. É um mês negativamente carregado pelo tempo, não há como se negar.

Para passar incólume a esse agouro de 31 dias, vale tudo: reza, meditação, banho de sal grosso e comida – por que não?. “Comer não é apenas um ato complexo biológico. É, antes de tudo, um ato simbólico e tradutor de sinais. É um ato que une memória, desejo, fome, significados, sociabilidades e ritos”, sintetiza o antropólogo Raul Lody, que se dedica aos estudos da relação humana com os alimentos. É por meio das panelas que se estabelece, portanto, um dos elos mais atávicos do homem com a sorte.

Embora desprezadas solenemente por vários comensais durante todo o resto do ano, quem nunca se rendeu a um pouco de lentilhas cozidas no Ano-Novo, na intenção de trazer bons fluidos? “É uma tradição italiana que estabelece que comer uma colher delas durante o réveillon é certeza de fartura à mesa; já que durante o cozimento o grão dobra de tamanho. Além disso, era a comida preferida do rei Midas, aquele que transformava em ouro tudo o que tocava”, explica a pesquisadora gastronômica Maria Lectícia Cavalcanti.

Também na passagem do ano, a carne de porco é um item bastante presente na ceia. Aqui, o simbolismo passa pelo gestual do animal que fuça para frente. Aliás, nesse momento, dizem, as aves devem ser evitadas, porque ciscam para trás. Fortemente marcado por aspectos gastronômicos, o judaísmo também apresenta alguns rituais de sorte. Segundo a escritora e antropóloga Tânia Kaufman, o que marca verdadeiramente a cozinha judaica como ritual de transformação é a comida doce. A tentativa? Trazer uma vida cheia de dulçor.

Para isso, os acepipes feitos à base de muito açúcar são fundamentais nas principais cerimônias religiosas dos judeus: no batismo, no ritual de dar o nome, a maioridade religiosa dos meninos, o casamento e os procedimentos fúnebres. “Na grande maioria delas, sempre é servido chalá (pão trançado), bolo de mel e flúden (pequena massa folhada recheada de frutas secas). O doce excessivo significa uma vida açucarada para o praticante”, explica Tânia Kaufman.

BISCOITO CHINÊS
Igualmente milenar, a sabedoria oriental foi incorporada e popularizada, no que diz respeito à relação entre comida e bons presságios. Para grande parte dos ocidentais, o elemento comestível que mais corporifica essa “felicidade do acaso”, digamos assim, é o famoso biscoitinho da sorte, cuja origem remonta à China, há 800 anos, em uma circunstância de guerra. Para livrar parte de seus territórios do domínio do guerreiro mongol Genghis Khan, o exército chinês elaborou uma estratégia de ataque e de transmissão, que finalmente o levaria à reconquista das terras perdidas.


Tradição de preparo da lentilha no Ano-Novo nasceu na Itália. Foto: Divulgação

À época, havia um doce chamado de “bolo da lua”, cujo sabor era detestado pelos mongóis. Valendo-se disso, os chineses esconderam os planos bélicos dentro desses bolos, que foram enviados a todos generais. Por meio dessa ação, o povo chinês reconquistou sua autonomia, dando início à dinastia Ming. E, para comemorar tal feito, anualmente os chineses passaram a trocar mensagens de felicitação da mesma forma em que as mensagens secretas foram enviadas, dentro do que pode ser chamado de “bolinhos da vitória”. As frases que vêm dentro do biscoito normalmente são tiradas do I Ching, livro de sabedoria baseado na filosofia chinesa.

Mas não se encerra aí o casamento representativo entre comida e sorte para o povo oriental. O guioza, tipo de pastel japonês, é bastante popular e pode ser recheado com legumes ou carne de boi. “Na véspera do Ano-Novo, as cozinheiras colocam moedas dentro dele. Quem as encontrar terá mais sorte”, detalha o sushiman Yoshi Matsumoto, egresso de Nagasaki, no Japão. Já na China, uma curiosidade: mesmo no dia a dia, é importante não cortar o peixe nem retirar sua cabeça e, ao comê-lo, não virá-lo quando acabar a carne de cima, o que pode ocasionar má sorte nos negócios, acredita-se.

O Brasil não fica atrás quando o assunto é superstição alimentar. Por aqui, o ritual e a etiqueta à mesa estão permeados de simbolismos. No livro História da alimentação no Brasil, o escritor e folclorista Câmara Cascudo nos lembra alguma delas. “Comer despido é ofender o anjo da guarda. Comer com chapéu ou afins é deselegante. Quando cai comida no chão, da boca ou do garfo é sinal de parente passando necessidade. Não se levanta comida do solo porque é das almas. Vinho derramado é alegria. Sal derramado é agouro. Donzela não serve sal, não corta galinha, nem passa palitos. Beber sobejos é ficar sabendo dos segredos dos outros. Não se oferece o primeiro nem o ultimo bocado. Deve deixar-se sempre um pouco de comida no prato. Não se joga pão fora, é o corpo de Cristo. Antes de findar o repasto, não se cruza o talher. Donzela não deve ficar na ponta da mesa senão fica solteira. Dinheiro em mesa de comida provoca miséria.” E quem ousa contrariar uma desses ditados, tendo a profecia do povo como principal certeza? 

EDUARDO SENA, jornalista.

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